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Segunda reflexão terrestre sobre a democracia

Alguns acham que a democracia é assim como um tipo de construção ideológica, que depende de um corpo de crenças teoricamente articulado e do qual se possa inferir consequências. Eles têm uma apreensão cognitivista – e não interativista – da democracia. Superavit de Platão ou deficit de Protágoras.

A adesão à democracia não é o resultado de uma inferência lógica de um sistema doutrinário. É, simplesmente, uma escolha que se dá em outra zona de significação epistemológica. A opção pela democracia contra a autocracia antecede, ontologicamente falando, às derivações que se pode fazer a partir de um corpo de crenças.

Como então poderíamos definir – em termos terrestres, quer dizer, não ideais – a democracia? Em primeiro lugar, reconhecendo que ela não é uma utopia, como já foi dito na Primeira reflexão terrestre sobre a democracia.

A democracia é um processo de desconstituição de autocracia (onde quer que ela se manifeste): mas no presente, não no futuro. Isso significa que, em qualquer área ou setor da atividade social (e não apenas no Estado), toda vez que você desconstitui autocracia – tornando modos de regulação de conflitos menos guerreiros e mais compatíveis com padrões de organização menos hierárquicos – está gerando democracia.

A democracia é gerada, usinada, produzida, não de uma vez e sim por golfadas. A dinâmica é intermitente. E o quantum de democracia gerada em um evento, não cresce por manutenção do que foi realizado, por uma prorrogação ou desenvolvimento do que aconteceu, tipo assim: uma plantinha que você vai regando até se tornar uma frondosa árvore. Não! Aconteceu, durou o que durou, e pronto! Nada garante que vai ficar ali para sempre, que aquela plantinha que virou árvore soltará sementes até termos uma grande floresta.

Infelizmente – ou felizmente, como veremos – a coisa não funciona assim. A democracia cresce, mas não como uma planta. Talvez uma metáfora melhor, para ficarmos nos reinos de seres vivos, seria a do fungo. Cada processo de democratização realizado solta esporos. Esses esporos podem florescer em seguida, mas também podem – o que não é infrequente – passar anos, séculos, milênios, soltos por aí, até perdidos no espaço sideral e… de repente, encontrando ambientes favoráveis, dar origem a um novo fungo, ou melhor, a uma rede miceliana, uma floresta de clones fúngicos subterrânea, toda interligada por hifas… no espaço-tempo dos fluxos!

A metáfora do fungo é melhor do que a da planta, porque, ao que tudo indica, a democracia – quer dizer, um processo de democratização ou de desconstituição de autocracia realizado – se esporaliza, não cresce para cima (como um pé de feijão), para baixo (como o cedro do Líbano) ou para os lados (como os ramos da abóbora).

Tudo depende, portanto, do ambiente adequado. Quem diria que os esporos usinados na Agora ateniense do século 5 AEC iriam encontrar um ambiente adequado para florescer na Inglaterra do século 17 da nossa era? De um ponto de vista do processo de democratização do Estado, essa explicação parece fazer sentido, pois a oposição à tirania dos psistrátidas em Atenas mantém muitos isomorfismos com a oposição ao poder despótico de Carlos I – mas só desse ponto de vista. Se considerarmos a democracia como modo-de-vida (ou de convivência social), os esporos produzidos na koinonia política dos antigos democratas gregos (durante quase dois séculos: um tempo incrivelmente longo para a democracia), floresceram em muitos lugares durante os dois últimos milênios (ainda que as experiências democráticas que eles ensejaram tenham sido, na sua maior parte, muito fugazes).

Que ambientes seriam esses, onde a democracia pode ser experimentada por tempo suficiente para produzir esporos? Como há um condicionamento recíproco entre modo de regulação (político) e padrão de organização (social), pode-se afirmar que tais ambientes são aqueles caracterizados pela abundância de caminhos, ou cuja topologia – mesmo que temporariamente – seja mais distribuída do que centralizada. Desde que tais ambientes sejam constituídos dentro de campos hierárquicos regidos por modos autocráticos. Sim, não há nenhum sentido falar em democracia para povos que não se organizavam hierarquicamente e não regulavam seus conflitos de modo guerreiro (e onde isso era determinante para a reprodução do seu modo-de-vida ou convivência social): a comunidade política dos democratas atenienses foi constituída sob a tirania de Hípias, o autocrata filho de Psístrato. Não haveria o menor sentido falar de democracia entre o povo Vinca (que floresceu às margens do Danúbio no sexto milênio), assim como não há o menor sentido falar de democracia entre os nossos Yanomamis dos dias atuais.

Mas como então tratar da democracia em países (quer dizer, Estados: no caso dos gregos a cidade-Estado de Atenas e no caso dos modernos o Estado-nação)? Estados, seja qual for a sua forma, não são ambientes adequados à democracia (pois sua topologia é sempre mais centralizada do que distribuída). Se a Pólis do século 5 AEC fosse a cidade-Estado de Atenas, não poderia ter havido democracia (e, como sabemos, só houve democracia porque ela, a Pólis, não era o Estado e sim a koinonia – a comunidade – política). No entanto, como a democracia dos modernos foi reduzida a um modo de administração política do Estado-nação, a questão permanece: considerando a predominância do modo de agenciamento chamado Estado, como poderíamos dizer se um regime político é ou não é democrático?

Colocada nesses termos, a questão só admite uma resposta. Quando um regime se diz democrático, isso quer dizer apenas que o funcionamento de suas instituições não está impedindo a continuidade do processo de democratização.

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