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Seis mentiras sobre a ditadura militar no Brasil

Este artigo lista e comenta, a partir de um depoimento pessoal, as seis mentiras sobre a ditadura militar no Brasil (1964-1984) – urdidas por olavistas, bolsonaristas, militaristas-intervencionistas e militantes da chamada “nova direita” – que estão sendo compradas e espalhadas por pessoas sem experiência política e democrática:

1) A de que não houve ditadura (o que equivale, mais ou menos, a negar o Holocausto).

2) A de que a ditadura no Brasil foi uma “ditamole” (já que matou menos gente do que as ditaduras de esquerda). Como se o número de mortes fosse critério para condenar ou absolver ditaduras (ou para avaliar algumas como melhores do que outras).

3) A de que houve ditadura, sim, mas que foi o único meio que os militares patriotas encontraram de evitar uma ditadura marxista ou comunista (e que foi bem feito ter perseguido, prendido, exilado, torturado, ferido e matado terroristas). Como se já estivéssemos, em março de 1964, na antessala da ditadura do proletariado.

4) A de que o que houve foi uma guerra entre duas forças armadas. Como se tivesse havido uma guerra civil no Brasil entre 1964 e 1977.

5) A de que os militares deram o golpe de 64 atendendo ao clamor da maioria da população. Como se as tais marchas da família com deus representassem a população brasileira.

6) A de que os que se opunham à ditadura militar eram terroristas.

Vamos comentá-las a seguir.

CAPÍTULOS 1, 2 E 3 – NÃO HOUVE DITADURA, FOI UMA “DITAMOLE” OU FOI O ÚNICO JEITO DE EVITAR UMA DITADURA COMUNISTA

Comecemos com as farsas de que não houve ditadura militar no Brasil, de que ela foi uma “ditamole” ou de que ela foi necessária para evitar uma ditadura comunista

Fico indignado com artigos que muitos idiotas têm escrito e reproduzido sobre a ditadura militar no Brasil (1964-1984). Vejamos as três principais alegações revoltantes que estão circulando.

1) Alguns dizem que nem houve ditadura, o que equivale, mais ou menos, a negar que houve o holocausto. Sobre isso, posso dar o meu depoimento pessoal. Se não houve ditadura militar no Brasil devo ter contraído uma doença mental grave, tipo aquela que acometeu a mente brilhante de John Forbes Nash Jr. Sem nunca ter aderido à luta armada, vivi anos achando que era perseguido, sendo preso várias vezes, sobrevivendo clandestinamente. Era tudo delírio.

2) Outros dizem que a ditadura no Brasil foi uma “ditamole” quando comparada às ditaduras da Argentina, do Chile e do Uruguai. Ou, pior, quando comparada às ditaduras implantadas pela esquerda, como os regimes cubano, coreano do norte, soviético ou chinês.

Este é um argumento insano, típico dos tolos que, sem saber, engoliram a baba da esquerda (comprando o esquema interpretativo esquerda x direita como universal e eterno) e resolveram se dizer de direita. O fato das ditaduras ditas de esquerda terem sido mais violentas do que as ditaduras ditas de direita, elide o principal: as forças que implantaram esses regimes autocráticos eram igualmente estatistas. É verdade que as ditaduras da chamada esquerda (dos que se diziam comunistas) matou mais (mais até do que os ditadores que se diziam nazistas ou fascistas), mas o que tem o U a ver com a ALÇA? Ditaduras, sigam os seus próceres as doutrinas que quiserem, são atentados mortais à democracia. Usar o termo “ditamole” é uma ofensa à democracia e uma ofensa grave a pessoas que, como eu, foram perseguidas pela ditadura. Mesmo que não tivesse ocorrido nem uma morte, teria sido uma ditadura. As ditaduras não são feitas para matar pessoas (um efeito colateral) e sim para matar a rede. Para reduzir liberdades civis e direitos políticos, por menores ou mais básicos que sejam (começam sempre com pequenas proibições ou restrições ao fluxo interativo da convivência social). Analfabetos democráticos não entendem que nenhuma ditadura pode ser boa e que as restrições às liberdades não podem ser medidas pelo número de cabeças cortadas. Que a perfeição do controle é atingir um estágio supostamente “pacífico” ou “harmônico” em que as pessoas nem mais precisem ser mortas, porque passam a pensar sob comando.

3) Por último, há os que dizem que houve ditadura, sim, mas que foi o único meio que os patriotas militares encontraram de evitar uma ditadura marxista ou comunista e que foi bem feito ter perseguido, prendido, exilado, torturado, ferido e matado terroristas.

Mentira. Não havia condições objetivas para a implantação imediata de uma ditadura marxista (ou comunista) no Brasil. O perigo não era iminente. Havia grupos que queriam isso, sim, porque fazia parte do programa inspirado por sua ideologia (que previa a ditadura do proletariado como uma etapa de transição para a sociedade sem classes). Mas eram muito poucos os seus contingentes e, mesmo assim, sem força político-militar e sem apoio de parcelas expressivas da população, muito menos da maioria. Outro ponto a considerar é que, conquanto qualquer violência seja condenável, assassinatos promovidos pelo Estado (que deveria ser público) não podem ser comparados a crimes semelhantes cometidos por grupos (privados) que não têm em suas mãos o aparato estatal (financiado pela sociedade).

Para concluir. Os ditadores brasileiros não perseguiram, prenderam, torturaram, exilaram, feriram e mataram apenas aqueles que pegaram em armas. Todos os que nos opusemos, mesmo pacificamente – como eu, por exemplo – à ditadura, sofremos as consequências da sua atuação ilegal (segundo suas próprias leis fajutas) e ilegítimas (do ponto de vista democrático). O Estado brasileiro no período 1964-1984 era um Estado fora-da-lei (do ponto de vista democrático). Não tínhamos nenhum dever ético-político de obedecê-lo.

CAPÍTULO 4 – FOI UMA GUERRA ENTRE DUAS FORÇAS ARMADAS

Vamos comentar agora a quarta mentira: a de que o que houve foi uma guerra entre duas forças armadas.

Ora, é evidente que, em grande parte, a política estava sendo praticada no Brasil, sobretudo nos idos de 1964-1977, como uma continuação da guerra por outros meios, mas não é verdade que era guerra no sentido de conflito violento entre duas forças armadas, ou seja, não era uma guerra civil, como a que ocorreu no Afeganistão (contra o Talibã e a Al Qaeda) ou no Iraque e na Síria (contra o Estado Islâmico), ou mesmo como a guerra civil americana (chamada Guerra de Secessão, travada de 1861 a 1865 entre os Confederados e os Yankees).

Nada disso. Havia grupos que de fato pegaram em armas para derrubar a ditadura (e, possivelmente, tentar – caso conseguissem seu intento – implantar uma outra ditadura, a chamada ditadura do proletariado). Mas esses grupos eram extremamente minoritários (não perfaziam nem 1% da população), não tinham força político-militar para deslegitimar o aparato legal-institucional do Estado e, muito menos, para enfrentar as forças armadas e policiais. Assim, praticavam assaltos (para financiar a sua revolução), sequestros (idem ou em troca da libertação de presos políticos), pequenas escaramuças (ataques a quartéis e delegacias para roubar armas e munições), assassinatos (de torturadores, militares e, até, de pessoas inocentes) etc. Tentaram também instalar uma guerrilha rural na região do Araguaia. Mas nunca chegaram a rivalizar forças com os aparatos de segurança. Nunca conquistaram (ou “libertaram”) territórios significativos. Seu arsenal (somando as armas dos vários grupos, que não se entendiam entre si) era pífio, risível até. Não tinham comando unificado nacional e nem estratégia militar para tomar o poder, nem pela via do foco revolucionário, nem pela via insurrecional clássica (uma vanguarda conduzindo as massas para a tomada do “Palácio de Inverno”), nem pela guerra popular prolongada – os diferentes caminhos escolhidos pelos grupos que aderiram à luta armada e rivalizavam entre si.

Não havia, portanto, a dualidade de poder que caracteriza situações de guerra civil.

Querer chamar isso de guerra é uma forçação de barra para justificar a repressão violenta (atingindo inclusive pessoas comuns que não faziam parte desses grupos), as perseguições, as prisões e os julgamentos sumários de opositores (nem todos, diga-se, adeptos da luta armada e nem todos marxistas), execuções, torturas, mutilações, banimentos e mortes de prisioneiros sob a guarda do Estado e, sobretudo, para justificar o assassinato da verdade (que é sempre, como se sabe, a primeira vítima em qualquer guerra).

Foi guerra (no sentido mais geral – filosófico-político – do termo, de construção e manutenção de inimigos para alterar a configuração de ambientes sociais, com o fito de organizá-los de modo hierárquico e regê-los por modos autocráticos – pois isto é a guerra, por definição), mas não foi guerra no sentido comum da palavra, de confronto violento entre contingentes equiparáveis (em força político-militar), como no caso da chamada guerra civil. Foi repressão do Estado (que já não era Estado democrático de direito e, nem mesmo, Estado de direito) a vários grupos armados (que também não eram democráticos e que possivelmente não reconheceriam, nem respeitariam, se houvesse, um Estado de direito).

Claro que, no mundo, estávamos no auge da guerra fria. Mas isso não significa que houvesse guerra civil no Brasil.

A caracterização do que houve naquele período (1964-1977) como guerra civil tem por objetivo legitimar ações fora-da-lei (do ponto de vista democrático, não das leis urdidas pelos ditadores, como o AI-5 e os atos institucionais anteriores). Do ponto de vista democrático, ninguém tinha o dever ético-político de obedecer as leis feitas pelos ditadores (posto que elas não eram legítimas).

Nada disso significa concordar com as ações dos grupos que pegaram em armas contra a ditadura. Foram ações reprováveis do ponto de vista ético, mas não porque violavam as leis fajutas do regime (que, em si, era ilegal) e sim porque atentavam contra a vida e a liberdade de pessoas e infligiam voluntariamente sofrimentos aos semelhantes. Diz-se que os grupos que aderiram à luta armada mataram (ou criaram situações que levaram diretamente à morte) de 119 pessoas, 19 das quais antes da decretação do AI-5. É condenável em qualquer circunstância, tivesse ou não a ditadura decretado novas leis.

Em contrapartida, os militares mataram entre 300 a 400 pessoas, muitas das quais já rendidas e, pior, algumas que já estavam colaborando com a repressão. Condenável também em qualquer circunstância, mas com um agravante: eles fizeram isso a partir do poder de Estado, eliminando pessoas que estavam sob a sua guarda e decidindo quem devia morrer e quem devia viver. Para a democracia, crimes de Estado não podem ser comparados a crimes de pessoas ou grupos que não têm em suas mãos os aparelhos de Estado.

O problema é que os grupos armados de oposição ao regime militar encararam sua atuação como guerra revolucionária. E que, simetricamente, os ditadores também encararam a repressão, que deveria ter caráter policial (como na atual intervenção na área de segurança do Rio de Janeiro, conduzida por militares – que igualmente combate grupos armados do narcotráfico e das milícias), como um confronto de natureza militar (aliás, foi para isso que deram o golpe de 1964, violando a Constituição e as instituições da democracia: para fazer guerra, quer dizer, para hierarquizar a sociedade e autocratizar a democracia).

A maioria dos grupos armados, no período considerado, só passou a atuar de forma violenta depois do golpe militar. A ditadura instaurou um regime preemptivo (e uma justiça idem – o que espanca as normas do direito). Ou seja, os militares (e civis aliados) deram um golpe para prevenir uma revolução violenta que avaliaram que estaria sendo gestada, durante o governo de João Goulart, para implantar uma ditadura comunista no Brasil. Alguns grupos (marxistas-revolucionários, em geral marxistas-leninistas) pensavam realmente assim. Mas isso é muito diferente de reagir violentamente, em legítima defesa da sociedade, diante de perigo flagrante. Não há, portanto, justificativa ética para o que os militares fizeram. Não existe legítima defesa preventiva. A defesa só se justifica perante ameaça real ou iminente, do contrário a palavra (defesa) é apenas um eufemismo para guerra (que em nada de essencial se distingue da preparação para a guerra).

Não é a toa que os ministérios da guerra são hoje chamados de ministérios da defesa. Condiz com o lema insano, ainda pintado nos muros dos quarteis: “Si vis pacem, para bellum”, ou seja, Se queres a paz, prepara-te para a guerra. Ora, é um contrassenso. Se queremos paz, devemos nos preparar para a paz, não para a guerra. Quem se prepara para a guerra, acaba fazendo guerra (ainda que não violenta), pois guerra, no sentido mais geral, não é exercício de violência, como até Thomas Hobbes (1651) – que era autocrata, mas não era burro – percebeu: “a guerra não consiste apenas na batalha ou no ato de lutar, mas naquele lapso de tempo durante o qual a vontade de travar batalha é suficientemente conhecida… [já que] a natureza da guerra não consiste na luta real, mas na conhecida disposição para tal…”. Ou seja, a guerra é o chamado ‘estado de guerra’ e foi isso que os militares fizeram: a propósito de redimir o Brasil da ameaça comunista, instalaram um estado de guerra no país, o que foi legitimado pela ação violenta e tresloucada dos grupos que aderiram à luta armada.

Não se pode implantar uma ditadura (estatista) para evitar outra ditadura (que também seria estatista, mas ainda inexistente). Medidas preemptivas são ilegítimas, tanto aqui quanto no mundo de Minority Report, o formidável conto de Philip K. Dick (1956) levado ao cinema por Steven Spielberg (2002).

Um estado de guerra deforma brutalmente o campo social, altera os fluxos interativos da convivência e espalha uma espécie de terror difuso que se torna sistêmico e acaba atingindo os que não querem fazer guerra alguma, os que concordam, os que são indiferentes e os que discordam do regime. Estes últimos, os que gostariam de fazer oposição à ditadura para valer, mas em termos pacíficos, ficaram impedidos de exercitar esse direito democrático universal de resistir à tirania. E muitos que não aderiram à luta armada, apenas por escrever um texto jornalístico, compor uma música ou dirigir um filme, foram ameaçados, censurados, perseguidos, encarcerados (sem mandato judicial, quer dizer, sequestrados), torturados, mutilados, mortos ou exilados.

O pior das ditaduras não é a guerra violenta que travam contra quem pensa diferente, contra seus opositores manifestos ou mesmo o assassinato dos que julgam subversivos e sim a paz dos cemitérios que acaba vincando, esgarçando e destruindo o tecido social de cima a baixo. O horror é o Estado-policial que se erige, o reino do medo, o medo do policial da esquina, o medo de que aquela pessoa que se dirige a você na rua ou senta do seu lado no ônibus, possa ser o agente Smith.

A alegação de que a ditadura militar foi um mal menor, porque a ditadura comunista (imaginada, posto que não existia ainda) mataria mais gente, continua sendo espalhada pelos zumbis nas mídias sociais. Ontem mesmo (13/05;2018) uma pessoa de boa-fé me perguntou no grupo aberto Dagobah do Facebook:

“Todas as ditaduras são ruins. Mas se tivesse que escolher entre uma que mata mais e uma que mata menos qual seria menos pior?”

Respondi:

“Para mim a pior ditadura seria aquela em que os cidadãos não são presos, torturados ou assassinados, mas vivem sob o domínio do medo em tal grau que só conseguem pensar sob comando”.

Também persiste a tentativa de dizer que a recente revelação do documento da CIA, já comentada no post Documento do governo americano: o que assusta é a reação de alguns militares brasileiros, não tem valor, é uma invencionice interessada em desmoralizar os bravos militares que nos salvaram do comunismo ou o candidato Bolsonaro (que defende a ditadura e, inclusive, a tortura, quando se trata de neutralizar os inimigos da pátria, de deus e da família). Não é isso, porém, o que pensam os estudiosos sérios do problema, como Elio Gaspari, autor da mais famosa série sobre a ditadura militar brasileira: A Ditadura Envergonhada (2002), A Ditadura Escancarada (2002), A Ditadura Derrotada (2003),  A Ditadura Encurralada (2004), A Ditadura Acabada (2016). Reproduzimos abaixo o artigo publicado por ele na Folha de São Paulo:

A CIA achou que Geisel dominaria a ‘tigrada’

O general sabia que havia uma matança, autorizou que continuasse e os americanos acharam que ele a controlaria

Elio Gaspari, Folha de São Paulo, 13/05/2018

A história do Brasil continua a ser escrita pelos americanos. O documento da CIA que revelou o encontro do presidente Ernesto Geisel com três generais para discutir critérios para os assassinatos de dissidentes políticos avacalha os 40 anos de política de silêncio que os comandante militares cultivam em relação às práticas da “tigrada” dirigida pelo Centro de Informações do Exército, o CIE.

O documento mandado pelo diretor da CIA ao secretário de Estado Henry Kissinger revelou que, duas semanas depois de sua posse, Geisel fez uma reunião com o chefe do Serviço Nacional de Informações, João Baptista Figueiredo, e os generais Milton Tavares de Souza, comandante do CIE, e seu sucessor, Confúcio Avelino. Tavares de Souza, o “Miltinho”, era um asceta, radical, porém disciplinado. Confúcio, um medíocre.

Na reunião, “Miltinho” revelou que já haviam sido executadas 104 pessoas. Segundo a narrativa da CIA, a matança ficaria restrita aos “subversivos perigosos” e cada proposta de execução deveria ser levada ao general Figueiredo, para que ele a referendasse. Esse projeto de controle do Planalto sobre o CIE ficou na teoria, ou na imaginação da CIA.

No dia 11 de abril, quando o telegrama foi transmitido a Washington, circulava no Planalto um documento desconhecido, do qual sabe-se apenas a reação do general Golbery do Couto e Silva, chefe da Casa Civil de Geisel: “Estamos sofrendo uma ditadura dos órgãos de segurança. (…) toda vez que a cousa começa a acalmar o pessoal decide e cria troço, prende gente. Porque, você compreende, é para permanecer, para mostrar serviço. (…) A verdade é que eles fazem o que querem.”

Depois de abril, pelo menos 15 guerrilheiros do Araguaia foram mortos, e tanto Geisel como Figueiredo, “Miltinho”, Confúcio e Golbery sabiam que essa matança estava em curso desde outubro de 1973. (Executavam-se inclusive os jovens que atendiam ao convite de rendição e colaboravam com a tropa.)

Em janeiro de 1974, Geisel ouviu de um oficial do CIE uma narrativa das operações no Araguaia, onde haviam sido capturados 30 guerrilheiros. Geisel perguntou: “E esses 30, o que eles fizeram, liquidaram?” Resposta do tenente-coronel: “Alguns na própria ação. E outros presos depois. Não tem jeito, não.”

Semanas depois, ao convidar o general Dale Coutinho para o Ministério do Exército, ouviu dele que “o negócio melhorou muito, agora, melhorou, aqui entre nós, foi quando nós começamos a matar. Começamos a matar.” Geisel respondeu: “Esse negócio de matar é uma barbaridade, mas eu acho que tem que ser.”

A metodologia narrada pelo serviço americano foi seguida no extermínio da direção do Partido Comunista Brasileiro. Antes de 1974 os comunistas eram perseguidos ou presos, mas não eram assassinados. Em abril, três dirigentes comunistas haviam sido capturados e mortos pelo CIE. No ano seguinte, outros sete.

Com a destruição das siglas metidas em terrorismo, o CIE neutralizou a única organização esquerdista que agia na esfera política. Para isso, dispunha de pelo menos uma preciosa infiltração e conhecem-se casos de tentativas de recrutamento, pela CIA, de capas-pretas que viviam na clandestinidade.

À falta de dirigentes, em 1975 a “tigrada” continuou matando militantes em sessões de tortura. A ideia de controlar o CIE colocando-o sob a supervisão do Planalto simplesmente não funcionou.

Em 1976, depois da morte do operário Manoel Fiel Filho no DOI de São Paulo, Geisel demitiu o comandante do 2º Exército, general Ednardo D’Ávila Mello, e defenestrou Confúcio. Mesmo assim, só restabeleceu o primado da Presidência sobre as Forças Armadas em 1977, quando mandou embora o ministro do Exército, Sylvio Frota. (No dia da demissão de Frota, doidivanas do CIE pensaram em atacar o Palácio do Planalto.)

Para as vivandeiras e napoleões de hospício de hoje, o documento da CIA ensina que na ditadura praticaram-se crimes, e aquilo que pretendia ser ordem era uma enorme bagunça.

De certo modo, o episódio do tal relatório da CIA foi bom. Não pelo que revelou, que já sabíamos (como mostra o Gaspari, que investiga o assunto, no artigo acima). E sim porque encorajou os esqueletos a sair do armário. Multidões de zumbis autocratas – admiradores da ditadura – vagam agora pelas ruas virtuais. O desinfetante da democracia é a luz do dia.

CAPÍTULO 5 – FOI UMA RESPOSTA AO CLAMOR DA MAIORIA DA POPULAÇÃO

Comentemos agora a quinta mentira: a de que os militares deram o golpe de 64 atendendo ao clamor da maioria da população.

Ao que se saiba a população brasileira nunca implorou por uma intervenção militar. Quem viveu aquela época – como eu vivi – não constatou nada disso. Claro que muitas pessoas estavam preocupadas com a instabilidade do governo João Goulart. Em alguns setores havia de fato um temor da radicalização à esquerda, sobretudo depois do célebre comício da Central do Brasil, em 13 de março.

Setores conservadores quiseram então dar uma resposta menos de uma semana depois, em 19 de março de 1964, fazendo uma grande marcha em São Paulo, batizada com o estranho nome de Marcha da Família com Deus pela Liberdade. Esse movimento foi organizado pelo clero, por setores ruralistas e industriais (incluindo a FIESP) e outras articulações de mulheres católicas, tudo sob a orientação de um tal Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES), dirigido pelo general Golbery do Couto e Silva, que centralizava uma verdadeira conspiração para derrubar o presidente Goulart por meio de um golpe de Estado.

Havia também outro aparelho, chamado IBAD (Instituto Brasileiro de Ação Democrática), financiado com capital nacional e, sobretudo, dos USA, para combater o avanço do comunismo no Brasil (e este, sim, ao que tudo indica, com ligações com a CIA). Foi o IBAD que criou e sustentou a tal Ação Democrática Popular (ADEP), que tinha por missão recrutar, formar e lançar candidatos anticomunistas. Uma constelação de entidades fajutas, como a CAMDE (Campanha da Mulher pela Democracia) e a UCF (União Cívica Feminina) – movimentos que usavam as mulheres, mas na verdade eram antifeministas – estiveram por trás das tais marchas pela família e com deus, que continuaram mobilizando setores conservadores das classes médias depois do golpe (passando então a ser chamadas de Marchas da Vitória) para tentar dar legitimidade popular à grave violação do Estado de democrático de direito que acabara de acontecer.

Tinha muita gente nas tais marchas pela família, com deus e, depois, nas marchas da vitória? Tinha, mas e daí? Marcha por marcha, Mussolini também marchou sobre Roma, em 1922, liderando uma multidão de crápulas para implantar o fascismo na Itália.

Sim, a Constituição Federal vigente na época, a de 18 de Setembro de 1946, previa no seu Artigo 89:

“São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentarem contra a Constituição federal e, especialmente, contra: I – a existência da União; II – o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário e dos Poderes constitucionais dos Estados; III – o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais; IV – a segurança interna do País; V – a probidade na administração; VI – a lei orçamentária; VII – a guarda e o legal emprego dos dinheiros públicos; VIII – o cumprimento das decisões judiciárias.”

Se a avaliação dos descontentes com o governo Goulart era a de que essas disposições constitucionais estavam sendo desrespeitadas, deveriam ter feito uma mobilização (legal) para impedir o presidente e não depô-lo pela força (manu militari).

Não deixa de ser curioso constatar que o modus operandi dos conspiradores de 64 era muito parecido com o das organizações de esquerda que combatiam: construir aparelhos para mobilizar e conduzir as massas em prol de objetivos antidemocráticos. Claro que, depois, do lado dos que se consideravam anticomunistas, entraram também em cena os tanques e canhões, desequilibrando definitivamente o confronto. Mas, atenção! Não havia grupos armados de esquerda em atuação quando o golpe preemptivo dos militares foi desfechado. Não havia nem a guerra civil que, depois, tentou-se inventar para justificar a quartelada (a guerrilha do Araguaia só começou em 1967 e a maioria dos grupos da luta armada não tiveram atuação significativa antes do AI-5, já no final do ano seguinte).

CAPÍTULO 6 – FOI UMA LUTA CONTRA O TERRORISMO

Por último, a sexta mentira: a de que os que se opunham à ditadura militar eram terroristas.

Ora, eu me opunha – e também meu pai (o velho Chico, uma doce alma, sapateiro e alpinista, que nunca fez mal a uma mosca) e todos meus amigos de infância, idem – e não éramos terroristas.

Comecei a minha atividade política com 14 anos, no grêmio do Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, combatendo a ditadura militar. O que fazíamos? Reuniões, panfletagens, faixas e cartazes com dizeres contra a ditadura, pequenos comícios, interrupções de trânsito, luta pela meia-entrada para estudantes nos cinemas e meia-passagem dos bondes, publicação de jornais e revistas (que logo viraram clandestinos), passeatas, grupinhos para assistir e debater “filmes de arte”, sobretudo franceses (da Nouvelle vague), no Cinerama (na rua Paissandu).

Certa vez a sede do Pedro II foi invadida pela polícia, em conivência com o diretor Wandick Londres da Nóbrega (uma péssima figura, colaborador da repressão, que depois denunciou meu mestre em filosofia da ciência Plínio Sussekind Rocha, um dos nossos pensadores mais importantes e que, em virtude disso, foi cassado pelo AI-5), e tive de escapar pelo telhado do colégio para não ser preso (enquanto os moradores dos prédios de apartamentos da rua Humaitá viam tudo em silêncio – e não me denunciaram). Plínio, coitado, não tinha nada a ver com política: era um kantiano tardio, que me iniciou nos Problems (1912) e no Human Knowledge (1948) de Bertrand Russell, na mecânica de D’Alembert, na Escola de Viena e nos Fundamentos da Física de Mario Bunge (1967). Mas a ditadura não quis saber: expulsou-o da universidade.

A maioria de nós jamais pegou numa pistola ou carabina, jamais fez uma bomba, jamais feriu ou matou qualquer pessoa ou animal, jamais roubou um tostão e jamais restringiu a liberdade de ninguém. E mesmo assim fomos perseguidos, presos (eu mesmo fui detido cinco vezes), alguns tivemos de viver clandestinos ou deixar o país.

Por que? Porque fazíamos oposição – no meu caso, e no de muitos, pacífica – a um regime que não admitia oposição.

Então, que papo de terrorismo é esse?

Houve, sim, a partir de 1967, a guerrilha do PCdoB no Bico do Papagaio (na época Goiás), a Corrente dentro do PCB (com Marighella, que depois fundaria a ALN e Mario Alves, que fundou o PCBR) e uma infinidade de grupos menores ou maiores (como a AP e a APML, a Ala Vermelha do PCdoB, a VPR, a VAR Palmares, a POLOP, o POC etc.) que, sobretudo depois de dezembro de 1968 (com o AI-5), resolveram pegar em armas contra a ditadura. Poder-se-ia dizer que alguns destes, sim, lançaram mão do terrorismo como forma de luta.

Mas é bom ver que nem toda forma violenta de luta é terrorismo. Do contrário todas as pessoas que, ao longo da história, se insurgiram violentamente contra a opressão e a dominação de que foram vítimas, todas as revoltas de escravos, todos os levantes de camponeses submetidos à servidão antiga (até mesmo contra os Faraós), deveriam ser julgados como terroristas.

Se for assim, toda guerra – entre Estados-nações ou dentro de um país – deveria ser classificada como terrorismo, pois guerra (quente) sempre implica ações político-militares violentas contra pessoas não-combatentes (civis inocentes) e propriedades.

E as ditaduras, como Estados de exceção que não se curvam ao império da lei e ao direito, quando cometem atentados contra a vida humana e as liberdades fundamentais, com o intuito de instalar o medo generalizado na população para dissuadir qualquer oposição, não seriam também terroristas?

A questão não é trivial. O terrorismo é caracterizado por seu propósito e pelos seus métodos. O propósito do terrorismo é instalar, infundir ou difundir, o terror em populações, atingindo inocentes, com objetivos políticos. Os métodos do terrorismo são as ações violentas que atentam contra a vida, restringem brutalmente a liberdade ou impõem sofrimentos aos semelhantes, mas também visam causar perdas materiais e desorganizar a economia.

A ONU discute sem sucesso, desde 2004, um acordo para chegar a uma definição política de terrorismo. Um texto de 1996 o caracteriza como “o ato intencional e ilegal que provoca mortes, ferimentos e danos à propriedade pública ou privada, com o objetivo também de causar perdas econômicas, intimidação da população e de forçar um governo ou uma organização internacional a tomar ou se abster de uma decisão”.

Mas as definições não colam. Sobretudo porque, quem está no governo (legitima ou ilegitimamente do ponto de vista da democracia), tem o monopólio da definição de quem é terrorista. Assim como os ditadores militares brasileiros, o ditador Maduro classifica seus opositores como terroristas, da mesma maneira que o ditador turco, Recep Tayyip Erdogan, faz com dissidentes e separatistas turcos. De maneira parecida operam regimes autoritários, como no Zimbábue, no Egito, na Arábia Saudita e em várias partes do mundo.

O terrorismo só pode ser caracterizado no plano ético-político, quando um agente individual ou coletivo pratica, principalmente, ações contra a vida e a liberdade e inflige voluntariamente sofrimentos aos semelhantes com objetivos de propaganda política, para tanto instalando o terror em populações, mas não no plano estritamente legal, quando as leis violadas são ilegítimas (e, do ponto de vista da democracia, uma lei só é legítima se for aprovada por representantes eleitos). Não há dúvida de que a Al Qaeda e o Estado Islâmico, assim como cerca de vinte organizações do jihadismo ofensivo islâmico, praticam terrorismo. Mas há dúvidas fundadas de se os opositores de Erdogan seriam terroristas.

Quem mata uma pessoa – sem ser em legítima defesa – com objetivos de propaganda política ou de permanência no poder, pratica terrorismo. Quem coloca uma bomba (na sede de um quartel ou no Rio Centro), quem sequestra uma pessoa (para pedir um resgate, para soltar seus comparsas ou para desbaratar grupos opositores) com objetivos políticos, pode ser considerado terrorista se seus métodos tiverem como propósito infundir o terror.

Mas nem todo revide violento a um ataque violento pode ser caracterizado como terrorismo. Se um agente do antigo Dops sacasse um revolver para me matar e eu revidasse acertando sua cabeça com uma pedra, isso não seria terrorismo. Ele, por certo, era um agente do Estado, mas somente Estados democráticos de direito possuem o monopólio legítimo do uso da força. Mesmo que a ação do policial fosse legal (segundo as leis da ditadura), ela seria ilegítima e a minha ação seria legítima diante do direito universal. E seria também legítima do ponto de vista ético.

Não basta estar no controle do Estado para praticar ações terroristas e não poder ser caracterizado como terrorista. Depende do Estado e do regime prevalecente. Do contrário, Idi Amin Dada, que foi ditador militar e terceiro presidente de Uganda entre 1971 e 1979 e praticava as maiores barbaridades contra seus opositores e contra a população indefesa em geral, não era terrorista, mas os que lutavam contra ele de forma violenta eram terroristas. O que é um absurdo.

No caso da guerra de secessão americana (1861-1865), quem era terrorista: os confederados ou os yankees? A pergunta procede porque ambos praticaram atentados contra a vida e contra propriedades com objetivo político de infundir o terror em populações indefesas (arrasando comunidades de não-combatentes, queimando plantações, abatendo o gado), mas aí não era terrorismo. Quer dizer que a guerra absolve o terrorismo? A rigor, como dissemos anteriormente, toda guerra é terrorista, na medida em que infunde – de forma deliberada e com objetivos políticos – o terror em populações não-combatentes, inocentes e indefesas, desde que controladas pelos inimigos. O crudelíssimo bombardeio de Dresden, cometido pelos aliados entre 13 e 15 de fevereiro de 1945, com o lançamento de mais de 3.900 toneladas de dispositivos incendiários e bombas altamente explosivas na cidade, causando, na média das estimativas, cerca de 85 mil mortos (civis inocentes), foi ou não foi um ato terrorista? E o bombardeio de Hamburgo em 1943, matando 50.000 civis? E o bombardeio de Pforzheim em 1945, que matou aproximadamente 18 000 civis?

Voltemos, porém, ao tema em tela. Sim, não há desculpa (nem mesmo a desculpa de que gente dos porões da ditadura militar praticou atos de terrorismo de Estado, com ou sem consentimento dos governantes): os grupos armados que se opuseram ao regime praticaram, muitas vezes, atos terroristas. Mas o ponto aqui é outro: eles estavam longe de ser maioria. A maioria das pessoas que se opuseram ao regime militar não aderiu à luta armada, à guerrilha rural (guerra popular prolongada), ao foquismo ou à insurreição popular. No entanto, todos fomos colocados como foras-da-lei (da ditadura) e acusados de terrorismo. Ou seja, toda oposição à ditadura foi criminalizada (pela justiça política dos militares).

É claro que, nestas circunstâncias, passamos a ter uma atuação clandestina, inclusive porque a ação oposicionista pacífica ofensiva (que negasse a legitimidade do regime) não era permitida (e foi colocada na ilegalidade). Quando a repressão recrudesceu, no governo Médici, alguns passamos a viver clandestinos ou escaparam pelas fronteiras. Eu era inicialmente simpático à Dissidência da Guanabara, mas nunca pertenci à direção de nenhum grupo organizado da esquerda marxista, marxista-leninista, castrista ou maoista. A maioria de nós, mesmo alguns que já estávamos nas listas dos procurados, jamais praticou qualquer violência.

Não éramos democratas, isso é certo. Ninguém nasce democrata. E não tivemos nenhuma oportunidade de conversão à democracia. O mundo vivia na guerra fria e tomávamos o lado que era contra o que imaginávamos que fosse o imperialismo norte-americano. Era a cultura predominante nos meios em que vivíamos. Assim, mesmo sem ter praticado qualquer ato violento contra pessoas, outros seres sencientes ou propriedades, fomos uma geração estraçalhada pela ditadura.

Saí de cena em 1972, para o Sul de Minas, onde vivi incógnito e voltei ao Rio somente no segundo semestre de 1974 (quando avaliei que a Era Médici tinha acabado). Não vendo nenhuma possibilidade de atuação política, me embrenhei em Goiás a partir do final de 1976. Em 1977 fui morar numa favela bem pobre, nos limites de Goiânia com Aparecida, onde fiquei 7 anos fazendo o chamado “trabalho de base”, em grupos de evangelho (que depois foram chamados de Comunidades Eclesiais de Base). Mesmo neste período, nem eu, nem meus colegas, jamais praticamos qualquer ato violento. Mas atuávamos ainda meio clandestinos e sempre com medo, medo, medo, de ser sequestrados pelo Estado ditatorial, julgados e condenados sumariamente. Já contei, em outro artigo, parte da história da minha conversão à democracia.

Então, dizer que quem lutou contra a ditadura foi terrorista e que foi bem-feito o governo militar ter perseguido, detido, encarcerado, torturado, mutilado, matado ou banido os seus opositores – posto que eram terroristas – é mais uma mentira sórdida que continua sendo vendida por autocratas e malfeitores ideológicos que, em sua maioria, apoiam a eleição do capitão Bolsonaro, o qual – pasme-se! – é olhado com simpatia neste momento por milhões de pessoas (que acreditam e replicam essa falsa versão).

Por isso o tema voltou à ordem do dia.

Os artigos reunidos acima foram publicados separadamente neste site (Dagobah), em 2018.

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