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Sobre a ideia perversa de elite

Ser minoria não significa ser elite. Iniciativas de poucos não são necessariamente elitistas.

Se consultada, a maioria da população de Atenas no século 5 a. E. C., não concordaria com a democracia (provavelmente, nem mesmo se a consulta fosse feita entre os homens livres). Sim, os democratas eram minoria, mas não por causa disso a democracia dos atenienses foi um projeto da elite, ou elitista, de Clístenes, Efialtes, Péricles, Protágoras e tantos outros.

É que esse conceito de elite é, no fundo, platônico. Platão, um aristocrata e inimigo declarado da democracia, este sim era elite. Os que ele chamava de filósofos e que, segundo sua visão, deveriam governar a cidade, estes sim, seriam elite.

A democracia só pegou porque se configurou na Agora uma rede de conversações. Se os netweavers dessa rede foram poucos (e foram mesmo), isso não significa que eram uma elite. Eram apenas poucos.

A ideia de elite é perversa, porque pressupõe uma diferenciação e uma separação em termos de riqueza, conhecimento ou poder já dadas.

Os democratas são agentes fermentadores da formação da opinião pública, mas ser fermento é ser pouco (em relação à “massa” a ser fermentada), e não ser elite.

Com base nessa ideologia platônica – que apenas repetia a concepção autocrática tradicional (a visão hierárquica de castas, segundo a qual os seres humanos podem ser separados, em razão de atributos extra-políticos, como se estivessem nos diferentes degraus de uma escada) – surgiram muitas teorias das elites (que contaminam, até hoje, a sociologia e a política).

Mas a questão é a diversidade de papeis na rede que surge com a interação e não a pré-existência de uma estrutura conformada ex ante à interação propriamente política. Se houver igualdade política (não socioeconômica) – quer dizer, liberdade -, esses papeis podem ser desempenhados por qualquer um (dado, é claro, o grau de universalização da cidadania existente, que não é determinado pela política propriamente dita, quer dizer, pela democracia).

Entre os homens livres de Atenas, ninguém precisava ter atributos diferenciados em termos de riqueza, conhecimento ou poder para agir como democrata. Todos os netweavers da rede de conversações (ou seja, na polis, não a cidade-Estado, mas a koinonia, a comunidade política) que se formou na praça do mercado, eram democratas: pelo que faziam e não pelo que eram (ou foram).

Os populistas de hoje – assim como, possivelmente, os demagogos na antiga Grécia democrática – adotam a divisão povo x elites porque ela é funcional para seus projetos políticos. Em geral, segundo a sua própria classificação, os que lideram e conduzem o povo seriam elite, mas aí eles argumentam (lançando mão de uma espécie de duplipensar) que neste caso não: eles seriam apenas os representantes do povo contra as elites. Seriam uma elite que não é elite porque a serviço do povo. Assim, Lula só viaja de jatinho, bebe Romanée-Conti e tem mais de 9 milhões em previdência privada, além de se internar no Sírio e Libanês para qualquer tratamento médico, mas não é elite (nem mesmo no sentido econômico do termo), pois sua identificação com o povo pobre tem o condão de apagar todos os vínculos e características da elite. A ideologia atropela a sociologia (qualquer critério objetivo, minimamente aceitável pela ciência) e neutraliza a antropologia (a cultura que se reproduz na sua rede de relacionamentos recorrentes atual e real).

Não só, porém, os populistas atuais lançam mão da noção de elite. Conservadores de todos os matizes acham que estão na elite os que se diferenciam, quer pelo seu conhecimento, quer pela sua riqueza, quer pelo seu poder e, decorrentemente, pela sua fama.

Os conservadores mais brandos e benignos dizem que somente algumas pessoas, em virtude das condições que cercaram seu nascimento e dos eventos fortuitos que ocorreram durante sua vida, conseguem exercer um protagonismo diferenciado (o que as coloca na elite) nos campos intelectual, moral, político, econômico e cultural. A associação, que fazem os conservadores norte-americanos, entre sucesso e virtude é uma evidência, embora subsumida no seu discurso, de que vencerão os que forem melhores do ponto de vista moral, diferenciando-se da massa dos loosers.

Os conservadores mais retrógrados e malignos – como o autocrata religioso Olavo de Carvalho (repetindo a tradição da cultura patriarcal) – afirmam que em todas as sociedades, do presente, do passado ou do futuro, existirão as mesmas castas – como a sacerdotal e a aristocrática, representando a autoridade espiritual e o poder temporal – e que isso seria uma espécie de “código secreto no fundo de todas as constituições políticas, sejam democráticas ou oligárquicas, monárquicas ou republicanas, liberais ou socialistas, porque estão imbricadas na constituição ontológica e até mesmo biológica do ser humano e são compatíveis, funcionalmente, com qualquer organização nominal do poder político. Elas são uma “constante do espírito humano”, que nenhuma constituição, lei ou decreto, ainda que fundado na vontade da maioria, pode revogar”. Portanto, segundo esse pensamento retrógrado, a condição para ser elite é constitutiva do humano (de alguns humanos) e está inscrita, inclusive, na sua natureza biológica. Seria algo como aquele  “sangue azul” dos monarquistas. É claro que aqui já ultrapassamos todos os limites da perversão autocrática e hierárquica.

Qualquer teoria das elites, benigna ou maligna, é incompatível com a democracia. Sim, democratas serão sempre minoria, mas não serão elite. A democracia é uma subversão da ideia de elite (ou seja, das crenças na existência de castas ou grupos que, por razões – ou pré-determinações – extra-políticas, se diferenciem de algum modo da massa, do populacho, da turbamulta vil, dos demais seres humanos).

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