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Sobre a lei Escola Sem Partido

Análise preliminar do PROJETO DE LEI DO SENADO Nº … DE 2016, apresentado pelo senador Magno Malta.

Minhas observações pontuais e preliminares seguem interpoladas ao texto.

Inclui entre as diretrizes e bases da educação nacional, de que trata a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, o “Programa Escola sem Partido”. O Congresso Nacional decreta:

Art.1º. Esta lei dispõe sobre a inclusão entre as diretrizes e bases da educação nacional, de que trata a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, do “Programa Escola sem Partido”.

Art. 2º. A educação nacional atenderá aos seguintes princípios:

I – neutralidade política, ideológica e religiosa do Estado;

No que tange à religião, há mais do que neutralidade. O Estado democrático de direito é laico (não-religioso e não pluri-religioso) e isso precisa ser dito com todas as letras.

II – pluralismo de ideias no ambiente acadêmico;

III – liberdade de aprender e de ensinar;

É preciso esclarecer o que seria liberdade de ensinar. Se o ensino é compulsório (posto que obrigado por lei, ao menos no nível fundamental), então a liberdade de ser ensinado (ou não) não existe, ou não é incondicional. Liberdade incondicional seria liberdade de desobedecer, ou seja, de não ser ensinado. Mas tal liberdade não existe para as crianças. Por outro lado, a liberdade de ensinar também não pode ser absoluta, do contrário não teria cabimento uma lei como esta.

IV – liberdade de consciência e de crença;

V – reconhecimento da vulnerabilidade do educando como parte mais fraca na relação de aprendizado;

A formulação é tão estranha quanto reveladora. Se há uma “parte mais fraca” na relação de aprendizagem, alguma coisa está errada. As pessoas aprendem nas relações com outras pessoas e não pode haver critérios de força envolvidos nessas relações.

VI – educação e informação do estudante quanto aos direitos compreendidos em sua liberdade de consciência e de crença;

VII – direito dos pais a que seus filhos recebam a educação religiosa e moral que esteja de acordo com as suas próprias convicções.

Não se sabe até que ponto os pais devem ter respeitado o direito de ministrar aos seus filhos qualquer educação moral (ou seja, sobre o que é certo e o que é errado). A família não tem o poder de contrariar, sem ser contraditada, com o assentimento do Estado (já que se trata aqui de uma lei), o que é socialmente aceito em uma sociedade democrática. Por exemplo, uma família islâmica vivendo em uma sociedade como a brasileira, pode até ensinar aos seus filhos que apedrejar uma mulher adúltera até a morte ou extirpar o clitóris de uma menina impúbere são atitudes corretas, mas não pode se insurgir (com o respaldo do Estado) contra os juízos, expressados em uma escola ou em qualquer outra instituição social, de que tais ações – violadoras dos direitos humanos – são incorretas. Da mesma forma, uma família de fortes convicções nazistas (como talvez ainda existam algumas no sul do Brasil) não pode ter respeitado, nem pela escola, nem por qualquer outra organização, o seu direito de educar seus filhos com a ideia de que os judeus (ou os ciganos, ou os homossexuais, ou os portadores de certas deficiências, ou os comunistas) devem ser exterminados.

Parágrafo único. O Poder Público não se imiscuirá na opção sexual dos alunos nem permitirá qualquer prática capaz de comprometer, precipitar ou direcionar o natural amadurecimento e desenvolvimento de sua personalidade, em harmonia com a respectiva identidade biológica de sexo, sendo vedada, especialmente, a aplicação dos postulados da teoria ou ideologia de gênero.

A expressão “em harmonia com a respectiva identidade biológica de sexo” é estranha. Seres humanos são seres biológico-culturais (ou seja, sociais) e não apenas biológicos. Liberdade é poder ser infiel à sua origem. Ou seja, não pode haver uma determinação epigenética, uma disposição biológica imune à opção do sujeito social. Desse ponto de vista, seres humanos, enquanto seres biológicos, são seres sexuais, mas tanto o chamado heterossexualismo quanto o homossexualismo são construções culturais (quer dizer, invenções sociais). Ou seja, sujeitos sociais (i. e., pessoas) podem optar por alterar o que foi chamado de “identidade biológica de sexo” e, assim, a expressão “em harmonia” não cabe. 

Ademais, não há propriamente um “natural amadurecimento e desenvolvimento de sua personalidade”: esse processo é social, não natural (e tanto é assim que ele se dá de modo diferente entre os Pirahás e Yanomamis, uma tribo de beduínos no Saara, uma família religiosa tradicional do interior de Minas Gerais e uma família homossexual que mora em Copacabana, assim como era diferente na Esparta de Leônidas e na Creta Minoica: ou seja, não se manifesta, nessas diferentes realidades sociais e épocas históricas, nada como uma mesma “natureza”). 

A expressão “sendo vedada, especialmente, a aplicação dos postulados da teoria ou ideologia de gênero” é imprecisa por não definir o que seria “aplicação”. Se aplicação compreender a não apresentação dos postulados (que são apenas ideias) de uma teoria (sendo que toda teoria é um conjunto de hipóteses, quer dizer, de ideias), então a lei é obscurantista e autoritária. Em uma democracia, não se pode vedar a exposição de ideias, mesmo que não concordemos com elas.

Art. 3º. As instituições de educação básica afixarão nas salas de aula e nas salas dos professores cartazes com o conteúdo previsto no anexo desta Lei, com, no mínimo, 90 centímetros de altura por 70 centímetros de largura, e fonte com tamanho compatível com as dimensões adotadas.

Parágrafo único. Nas instituições de educação infantil, os cartazes referidos no caput deste artigo serão afixados somente nas salas dos professores.

Art. 4º. As escolas confessionais e também as particulares cujas práticas educativas sejam orientadas por concepções, princípios e valores morais, religiosos ou ideológicos, deverão obter dos pais ou responsáveis pelos estudantes, no ato da matrícula, autorização expressa para a veiculação de conteúdos identificados com os referidos princípios, valores e concepções.

Parágrafo único. Para os fins do disposto no caput deste artigo, as escolas deverão apresentar e entregar aos pais ou responsáveis pelos estudantes material informativo que possibilite o pleno conhecimento dos temas ministrados e dos enfoques adotados.

Art. 5º. No exercício de suas funções, o professor:

I – não se aproveitará da audiência cativa dos alunos, para promover os seus próprios interesses, opiniões, concepções ou preferências ideológicas, religiosas, morais, políticas e partidárias;

A expressão “audiência cativa dos alunos” também é tão estranha quando reveladora. Melhor seria dizer que os alunos não podem ser presos (cativos) e devem ter o direito de sair de uma sala onde os professores estão se aproveitando da sua autoridade docente para doutrina-los (a partir de suas preferências ideológicas, religiosas, morais, políticas e partidárias). Mas o texto do projeto, infelizmente, não define o que é doutrinação. Eis o ponto! Eis a sua grande falha. 

Não fica claro o que quer dizer a expressão “promover seus próprios interesses, opiniões e concepções”. É impossível, a rigor, uma pessoa não promover seus interesses e é descabido exigir isso por força de lei. Por outro lado, proibir o professor de apresentar suas próprias opiniões não é compatível com a democracia (que é, fundamentalmente, liberdade – de proferimento – de opiniões).

II – não favorecerá nem prejudicará ou constrangerá os alunos em razão de suas convicções políticas, ideológicas, morais ou religiosas, ou da falta delas;

III – não fará propaganda político-partidária em sala de aula nem incitará seus alunos a participar de manifestações, atos públicos e passeatas;

Aqui o projeto deveria ser mais claro e mais explícito, em consonância com a sua inspiração no movimento chamado Escola Sem Partido. Deveria enumerar o que o professor não pode concretamente fazer. Por exemplo: a) não pode fazer campanha eleitoral para candidatos de um partido ou de uma coligação de partidos; b) não pode promover (ou induzir os alunos a aderir a) movimentos estudantis seguindo orientações partidárias ou de organizações estudantis aparelhadas por partidos; c) não pode convocar os alunos para manifestações partidárias ou manifestações sociais promovidas por partidos; d) não pode promover filiações a partidos ou movimentos aparelhados por partidos.

IV – ao tratar de questões políticas, socioculturais e econômicas, apresentará aos alunos, de forma justa, as principais versões, teorias, opiniões e perspectivas concorrentes a respeito;

A expressão “de forma justa” é inaplicável. Quem poderá dizer qual a “forma justa” de apresentação de diferentes ideias? Por outro lado, teorias políticas que se contraponham aos direitos humanos não podem ser apresentadas “de forma justa” ao lado de teorias que defendam os direitos humanos. Por exemplo, o eugenismo não pode ser apresentado como uma versão válida (ou tão válida quanto) outras visões que rejeitam o eugenismo. O mesmo vale para teorias que foram invalidadas pela ciência: o criacionismo não pode ser apresentado como uma teoria tão válida quando a biologia da evolução. Ou a explicação dos miasmas como causadores de doenças não pode ser apresentada, de “forma justa”, ao lado da hipótese dos micróbios.

V – respeitará o direito dos pais dos alunos a que seus filhos recebam a educação religiosa e moral que esteja de acordo com as suas próprias convicções;

O direito dos pais sobre a educação religiosa de seus filhos não pode ser estendido para a educação moral (como já foi comentado acima).

VI – não permitirá que os direitos assegurados nos itens anteriores sejam violados pela ação de estudantes ou terceiros, dentro da sala de aula.

Art. 6º. Os alunos matriculados no ensino fundamental e no ensino médio serão informados e educados sobre os direitos que decorrem da liberdade de consciência e de crença assegurada pela Constituição Federal, especialmente sobre o disposto no art. 5º desta Lei.

Art. 7º. Os professores, os estudantes e os pais ou responsáveis serão informados e educados sobre os limites éticos e jurídicos da atividade docente, especialmente no que tange aos princípios referidos no art. 1º desta Lei.

Art. 8º. O ministério e as secretarias de educação contarão com um canal de comunicação destinado ao recebimento de reclamações relacionadas ao descumprimento desta Lei, assegurado o anonimato.

Parágrafo único. As reclamações referidas no caput deste artigo deverão ser encaminhadas ao órgão do Ministério Público incumbido da defesa dos interesses da criança e do adolescente, sob pena de responsabilidade.

Abre-se aqui um precedente perigoso (que inviabiliza o presente projeto de lei). Não se pode conferir ao Ministério Público o papel – que ele não tem (nem pode ter) – de julgar o que é doutrinação ou o que não é. O MP nem é um tribunal epistemológico (papel assumido pela corporação medieval meritocrática que chamamos de Universidade), nem uma alfândega ideológica, capaz de dizer quais as ideias que podem passar e quais não podem passar pelas fronteiras de pensamento colocadas como (mais uma) cerca em torno da escola. O MP tem obrigação de se manifestar quando um crime previsto, tipificado e sancionado em lei, for cometido, mas não se pode criar outra ordem de crimes de pensamento (o “crimideia” – thoughtcrime – aventado por George Orwell no romance distópico 1984). Assim, não cabe ao Estado (seja por meio do MP ou de qualquer outro poder), por exemplo, qualificar, enquadrar ou punir um suposto “gayzismo” (porquanto não estaria “em harmonia com a respectiva identidade biológica de sexo” dos meninos). A regulação, nesses casos, deve ser social, não estatal, cabendo aos pais ou aos próprios alunos, se insurgir (ou não) contra orientações escolares ou docentes que julguem inadequadas.

Art. 9º. O disposto nesta Lei aplica-se, no que couber:

I – às políticas e planos educacionais e aos conteúdos curriculares;
II – aos materiais didáticos e paradidáticos;

III – às avaliações para o ingresso no ensino superior;

IV – às provas de concurso para o ingresso na carreira docente;

V – às instituições de ensino superior, respeitado o disposto no art. 207 da Constituição Federal.

Art. 10. Esta Lei entra em vigor no prazo de sessenta dias, a partir da data de sua publicação.

CONCLUSÃO

As observações acima são apenas pontuais. Em artigo a ser publicado em breve vamos analisar com mais profundidade e abrangência a problemática da doutrinação nas escolas.

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