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Terceira reflexão terrestre sobre a democracia

Na Segunda reflexão terrestre sobre a democracia vimos que “alguns acham que a democracia é assim como um tipo de construção ideológica, que depende de um corpo de crenças teoricamente articulado e do qual se possa inferir consequências. Eles têm uma apreensão cognitivista – e não interativista – da democracia. Superavit de Platão ou deficit de Protágoras”.

Isso precisa ser desenvolvido e melhor explicado.

A opção pela democracia não exige a adesão a um corpo de crenças como filtro para transformar caos em ordem, mas em uma ordem estabelecida pregressamente ou antes da interação propriamente política – transcendente, natural ou imanente: seja porque estaria de acordo com desígnios extra-humanos já estabelecidos (supra-humanos ou sobre-naturais) por uma ordem pré-existente, seja porque derivaria da natureza, seja porque se sintonizaria com a marcha da história ou com suas leis. Este parágrafo é muito sintético, mas provavelmente contém tudo (ou quase).

Ou seja, nada de transcendente, natural ou imanente. Em outras palavras:

1) nada de visão esotérica ou religiosa;

2) nada de visão liberal-econômica (segundo a qual existiria algo como uma natureza humana: e. g., a hipótese de que o ser humano – tomado como indivíduo – seria inerentemente ou por natureza (?) competitivo e faria escolhas racionais buscando sempre maximizar a satisfação dos seus interesses ou preferências, ao fim e ao cabo egotistas); e

3) nada de visão determinística (baseada em alguma imanência: a história grávida que vomitaria – por meio das ações humanas – um sentido já existente antes que os seres humanos escolhessem um caminho ou simplesmente fossem para onde querem ir ou não.

DEUS, NATUREZA E HISTÓRIA

Se essas noções – Deus, Natureza e História – forem reificadas para fornecer à política alguma razão, não estamos mais no terreno da política propriamente dita, quer dizer, da democracia (tal como a conceberam ou experimentaram – no caso é a mesma coisa – os democratas atenienses). É por isso que o único sentido compatível com a democracia que se pode atribuir à política é a liberdade.

Do ponto de vista da democracia, liberdade significa que Deus não é capaz de dar nenhum sentido à política, a Natureza (seja o que for) também não é capaz de dar nenhum sentido à política e, ainda, que a História também não é capaz de dar nenhum sentido à política.

Deus

A adesão confessional ou teologal à uma potência extra-humana (como fazem as filosofias religiosas ou teosóficas) capaz de intervir nos assuntos coletivos humanos (ou, mais exatamente, sociais) não pode fornecer uma razão para a política e é por isso que povos como os hebreus (a turba dos hapirus, quer dizer, dos sem-reino que invadiram ou se insurgiram em Canaã na primeira metade do primeiro milênio AEC), que acreditavam num plano divino para a humanidade (ou para o seu próprio povo, tomado como povo de um deus: o seu deus IHVH), mesmo tendo todas as condições objetivas para inventar a democracia (basta ler os relatos da Assembléia de Siquém e Samuel 8), não o fizeram. Isso não tem a ver propriamente com acreditar em deuses (ou em um deus) e sim com contar com esses deuses (ou deus) para intervir nos conflitos humanos, para regular esses conflitos ou para resolver os dilemas da ação coletiva.

Os democratas atenienses não aboliram os deuses (da cidade), pelo contrário: conviveram com eles, mas sem deles esperar nada além da proteção ao funcionamento das suas instituições democráticas nascentes (como o Zeus Agoraios, nume tutelar das conversações na praça do mercado) e de inspiração para as práticas (e procedimentos) democráticos que experimentavam (como a deusa Peitho, a persuasão deificada). Mas eles não substituíram essas instituições e práticas pela intervenção sobre-humana ou sobre-natural (dos seus deuses).

Se há deuses (ou um deus) que intervem nos assuntos propriamente humanos (quer dizer, na rede social), então para nada serve a política como modo de auto-regulação ou de comum-regulação (e nem ela teria surgido no entre-os-humanos, já que o Zoon Politikon – o animal político – é uma invenção de Aristóteles incompatível com a democracia), como uma forma específica de interação (a política). Onde há deuses (ou um deus) intervindo, não pode haver lugar para a liberdade, que é sempre a liberdade de ser infiel a um desígnio, de não seguir um plano (já traçado por qualquer potência humana ou extra-humana), de não se conformar a uma ordem (preexistente, ex ante à interação). Deuses (ou um deus) podem existir, desde que não nos obriguem a ser fiéis a eles (ou a ele) ou aos seus desideratos. A democracia é coisa de kafirs (e por isso lhe é tão avessa a cultura islâmica), é uma desobediência ao que já está disposto, à obrigação de seguir um rumo: porque a liberdade é, fundamentalmente, poder sempre escolher um novo rumo e mudar de rumo, ou melhor, poder não ter rumo, como disse o poeta – Manoel de Barros (2010), em Menino do Mato – “Livre, livre é quem não tem rumo”.

Se há uma ordem, uma hierarquia, uma fraternidade ou sociedade encarregada de conduzir ou orientar coletividades humanas (grupos, cidades, nações, povos) em uma determinada direção, para cumprir algum plano cósmico (engendrado ou não por um deus que apenas quer se reconhecer no espelho da existência ou por vários deuses ou, ainda, por seres superiores não-humanos, autóctones ou alienígenas, do passado, do presente ou vindos do futuro), é a mesma coisa. Todas essas visões esotéricas levam à autocracia, não à democracia. Pois como alguém, na condição humana, poderia ser infiel à vontade ou às leis estabelecidas por esses seres superiores sem violar algum tipo de moral? E como os direitos humanos poderiam se equiparar (ou se contrastar) aos direitos desses seres mais evoluídos ou melhores, mais puros ou mais perfeitos?

Quando Ésquilo (472 AEC), em Os Persas, escreveu que os atenienses (democráticos) “não são escravos nem súditos de ninguém”, ele estava dizendo que eles (como povo, quer dizer, coletivamente) não eram escravos nem súditos de ninguém mesmo: nem de humanos, nem de deuses. E, poderíamos acrescentar, nem de leis naturais. Isso nos leva ao próximo ponto.

Natureza

O estudo da natureza ou os modos de observação-investigação-explicação dos fenômenos naturais que chamamos de ciência (a partir do século 17, mas especialmente na passagem do século 19 para o século 20, quando entraram em cena os epistemólogos racionalistas que acreditaram que a filosofia da ciência era uma espécie de ciência ou de ciência da ciência), também não pode fornecer uma razão para a política. O assunto é difícil porque fomos acostumados a olhar a ciência como uma espécie de pansofia. Mais do que a ciência, a ciência autorizada pela filosofia da ciência foi, por sua vez, autorizada a fornecer uma explicação válida para tudo. E se seus métodos são válidos para tudo, por que não o seriam também para a política?

Ocorre que, se existe uma ciência aplicável à política ou, a rigor, uma ciência política, então não pode haver democracia. Pois neste caso os que possuem a ciência (política) ou agem de acordo com seus métodos válidos (quer dizer, validados por algum tribunal epistemológico válido) não se situarão no mesmo patamar dos demais. Haveria uma desigualdade (não sócio-econômica, mas política) levando diretamente à desliberdade. Como a matéria da política não é a episteme (o conhecimento filosófico ou científico), nem a techné (o conhecimento – ou know how – técnico) e sim a doxa (opinião), então algumas opiniões seriam mais válidas do que outras (aquelas proferidas por quem tem mais conhecimento reconhecido como válido). No limite isso levaria ao governo dos sábios de Platão, baseado numa diferença de conhecimento convertida em separação entre sábios e ignorantes. Os ignorantes seriam governados pelos sábios, independentemente da justeza de suas opiniões e, o que é pior, ao largo do processo interativo de formação da vontade política coletiva. Não haveria propriamente opinião pública, composta por emergência (pois se alguém já pode saber o que é correto, de que valeria o entrechoque e a polinização cruzada de uma variedade de opiniões?) e, assim, também não haveria esfera pública (em termos sociais, quer dizer, geração de commons). Ora, sem isso, não pode haver democracia.

O apelo à natureza ou a introdução de um corpo de crenças derivadas do conhecimento sobre os fenômenos naturais – pouco importa se validadas ou não pela ciência – como recurso para validar uma visão da política, traz problemas semelhantes aos da ideia de um ou vários deuses com papel regulador dos dilemas da ação coletiva. Se a natureza (quer dizer, o conhecimento dos fenômenos naturais) pode dizer o que deve ou não ser feito em termos políticos, então para nada vale a democracia.

Um exemplo de imposição de um corpo de crenças – de “como as coisas são” – pode ser fornecido pelo liberalismo-econômico (sobretudo o da chamada Escola Austríaca: Carl Menger, Eugen von Böhm-Bawerk, Ludwig von Mises, Henry Hazlitt, Israel Kirzner, Murray Rothbard e Friedrich Hayek, dentre outros). O individualismo metodológico desses pensadores é tomado como uma ciência, ou seja, é um conhecimento, um saber sobre o indivíduo portador de uma mente (que seria o ser humano) e sobre a ação humana, que seria, por sua vez, capaz de explicar o comportamento coletivo a partir dos comportamentos dos indivíduos. Ora, se existe essa ciência, se é possível adquirir esse conhecimento, então os que são nela versados (nessa ciência) ou possuem tal conhecimento, estão mais preparados do que os demais para entender os processos de regulação de conflitos (a política propriamente dita) e, por decorrência, para intervir de forma correta (ou mais correta) nesses processos. Isso é um cognitivismo (com raízes bem fincadas no meritocratismo e no platonismo), não um interativismo.

Assim, a ideia de uma natureza humana, a ideia de que o ser humano é, por natureza (ou inerentemente) competitivo, a ideia de que é possível explicar o comportamento coletivo a partir do comportamento dos indivíduos, a ideia de que os indivíduos se movem buscando sempre melhorar a sua vida, ou tentando maximizar a satisfação de seus interesses ou, ainda, buscando realizar plenamente suas preferências – ao fim e ao cabo egotistas – todas essas ideias, sejam ou não validadas pela ciência (e boa parte delas não o são, se considerarmos, por exemplo, as ciências da complexidade e a chamada nova ciência das redes, e pelo menos Hayek teve lampejos de presciência – ou seria pré-ciência? – sobre isso), são ideias que em nada favorecem, quando não dificultam, a apreensão da democracia. Em primeiro lugar porque são absolutamente desnecessárias para a opção pela democracia. Em segundo lugar porque erigem uma instância de validação extra-política. Novamente, se há um conhecimento que explica “como as coisas são”, inclusive em termos políticos, quem possui tal conhecimento não se iguala aos que não o possuem – o que gera necessariamente desliberdade.

Não há nada natural na política. A política é um tipo de interação (social). O social não é natural. Não há uma natureza humana, a não ser para descrever características da espécie biológica Homo Sapiens (ou, com boa vontade, do gênero Homo) – que é apenas humanizável, não o humano consumado: com perdão pelo mau-jeito do neologismo, há uma “socialeza” humana (isto é, precisamente, o que significa dizer que não existe nada como o Zoon Politikon aristotélico: não há uma substância política original associada à condição da espécie, mas um fenomenologia que se manifesta na entreidade, porquanto só se revela quando os humanos interagem uns com os outros).

Os seres humanos tornados políticos (quando interagem coletivamente para regular seus conflitos) não precisam ser fieis a características herdadas da sua suposta natureza, não estão subordinados a qualquer epigênese (como as 8,7 milhões de espécies de seres vivos que existem no planeta Terra), podem ser – na sua esfera propriamente política de ação – infiéis à natureza (no sentido mais ampliado do conceito, de como as coisas são). Do ponto de vista da democracia, assim como os seres políticos não são escravos nem súditos de seres humanos, de deuses ou de leis naturais, também não o são de leis da história. Isso nos leva ao terceiro e último ponto.

História

As visões de que há uma história, de que a história tem leis que podem ser conhecidas por quem tem o método correto de interpretação da história, de que há uma ciência, ou melhor, uma filosofia da história, de que a história vai para algum lugar, em razão de uma imanência (alguma substância que carregaria em seu ventre) e, portanto, de que a história tem um sentido que pode ser apreendido antes dos eventos (que ainda não aconteceram), também leva diretamente à autocracia, não à democracia.

Embora filosofias da história tenham aparecido na antiguidade e na idade média, por exemplo, com Joaquim de Fiore (c.1132-1202), com sua teoria dos três tempos (do Pai, do Filho e do Espírito Santo), inspirando talvez o Sebastianismo e, no Renascimento, com pensadores como Giambattista Vico (1725) e sua Scienza Nuova e ainda que haja sempre uma forte raiz hegeliana na construção posterior de qualquer ontologia da história, o marxismo foi o principal responsável pela difusão de um corpo de crenças que tem como postulado fundamental (evidente por si mesmo, que dispensa provas – só corroborações discursivas) a ideia de que a luta de classes é o motor da história. Daí saem todos (ou quase todos) os marxismos (do marxianismo do primeiro Marx, passando pelo Marx de 1859, ao marxismo-leninismo, ao marxismo-gramscismo e a praticamente todos os outros).

A luta entre grupos sociais (chamados de classes) que move a história pressupõe uma filosofia da história. A história passa a ser, nessa filosofia, uma consequência de algo imanente guardado em seu corpo, que a leva para um lugar (e não para outro). Mas a história (supondo que se possa falar de “a” história, no sentido de uma história – e não se pode) não vai para lugar nenhum. Nós é que vamos, ou não vamos. E vamos ou não vamos escorrendo por creodos que estão presentes no campo social e que dependem das configurações dos fluxos interativos da convivência social. Se acreditamos que existe uma história com um mecanismo embutido que lhe dá sentido, também podemos acreditar que o conhecimento desse mecanismo será capaz de nos revelar as suas leis. E aí já estabelecemos uma distinção geradora de poder, separando os que conhecem essas leis dos que não as conhecem. Os que não as conhecem devem ser então conduzidos pelos que as conhecem para que possa se cumprir o desiderato histórico. Note-se aqui que não é uma interação de opiniões que conduz a história (seja o que for) e sim um saber sobre a história que confere a alguns agentes a capacidade distintiva de orientar os demais. O agente tem a episteme que o coloca num patamar diferente da massa que só possui a doxa. Isto é, rigorosamente falando, um platonismo que, como todo platonismo, só pode levar à autocracia, não à democracia.

Dizendo o mesmo de outra maneira para resumir. Se a história tem um sentido antes dos seres humanos atribuírem-lhe tal sentido com suas ações, então não pode haver liberdade (que é sempre liberdade de atribuir sentidos e de mudar a atribuição de sentidos). Se a história tem um sentido e se esse sentido puder ser conhecido de antemão, então alguns (que conhecem tal sentido) estarão sempre mais corretos do que outros por razões extra-políticas.

É tudo a mesma coisa

Tanto a ciência de deus (ou o conhecimento de desígnios supra-humanos), quanto a ciência da natureza (ou o conhecimento de como as coisas são), quanto a ciência da história (na verdade de qualquer filosofia que lhe dê sentido) são corpos de crenças colocados como filtros para transformar o caos da experiência humana comum em ordem autocrática. É por isso que a adesão à democracia não pode depender dessas crenças (sejam teológicas, teosóficas, científicas ou filosófico-ideológicas). Não pode haver conteúdo a ser assimilado como condição para alguém preferir a democracia à autocracia. Se houver, essa pessoa que se transformou em seguidor de uma visão, será um fiel, não um infiel. E, como tal, será um agente – ou uma peça – de um sistema autocrático.

Eis as razões pelas quais os seguidores de vertentes míticas, sacerdotais e hierárquicas do chamado ocultismo ocidental, assim como os fiéis religiosos do catolicismo tradicional e de outras religiões, sobretudo de religiões políticas como o islamismo, têm tanta dificuldade com a democracia. Embora suas elaborações – e visões de mundo – sejam muito diferentes, de um ponto de vista interativista, essas razões são as mesmas pelas quais seguidores de von Mises e de Marx têm dificuldades com a democracia. Em primeiro lugar porque são seguidores e a democracia é para não-seguidores: é um erro (no script da Matrix), não um acerto, quer dizer, um trilhar por um caminho certo. Em segundo lugar porque, todos eles, colocam a adesão a um codex como condição para se fazer (a correta, a boa, a desejável) política. Mas a democracia não é a política ideal, não é a utopia da política: é justamente o contrário. A utopia da democracia é uma topia: é a política feita pelos seres humanos que erram, aprendem com seus erros e continuam errando e aprendendo quando não há ninguém – ainda bem – para lhes dizer, a partir de qualquer instância extra-política, o que é certo.

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