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The winter is coming? No. The winter is here.

Para entender a situação em que estamos no final desta segunda década do século 21 é necessário acompanhar as análises sobre a recessão e a desconsolidação democrática em curso no mundo e no Brasil. É necessário entender também que já estamos sob a influência de uma terceira onda de autocratização. E, por último, é preciso perceber que a democracia não é mais o único caminho para a prosperidade, como se acreditava (e propagava a ideologia neoliberal). Modernização e autoritarismo passaram a andar juntos. Países autocráticos estão se aproveitando dos mecanismos e processos econômicos liberais, próprios do capitalismo, sem adotarem, entretanto,  instituições e procedimentos políticos liberais, ou seja, sem percorrerem a transição para a democracia. E países democráticos estão começando a tentar fazer uma transição inversa, capitaneada por alianças entre economistas-liberais e populistas-autoritários.

Isso tudo sendo o básico, não é todavia suficiente.

Para quem investiga a democracia já está claro que a terceira onda de autocratização é mais profunda do que parece. Ela está desabilitando nada menos que o processo eleitoral como mecanismo de verificação da vontade política coletiva.

THE WINTER IS COMING

Um dos exemplos é a manipulação das mídias sociais que está possibilitando que a interação e a polinização mútua de opiniões privadas que produz, por emergência, uma opinião pública, sejam falsificadas pela disseminação, por replicação, de opiniões privadas.

O debate político não tem mais capacidade de ser um campo discursivo de referência geral, com a modificação das opiniões privadas que nele entram e sua consequente publicização porque foi invadido por miríades de esferas privadas onde as mesmas opiniões se replicam, mas não se modificam e não se aperfeiçoam (ou seja, se mantêm as mesmas). Por exemplo, ideias anticientíficas, ideias avessas aos direitos humanos, ideias preconceituosas, intolerantes e anti-humanizantes, que não perdurariam muito caso comparecessem na esfera discursiva da política, agora passam tranquilamente como mortos-vivos atravessando a derruída grande muralha do norte (para usar uma metáfora de Game of Thrones).

Assim, opiniões incivis viram elementos da “nova política” (quer dizer, da antipolítica) criando um grande ruído de fundo que anuncia a chegada da barbárie, impedindo que as pessoas ouçam o bom-senso ou mesmo a razão e não há como “civilizar” essas opiniões porque as proteções democráticas contra a sua proliferação foram desativadas.

Sim, é uma destruição da esfera pública que está em curso, estilhaçada por miríades de esferas privadas que a poluíram a ponto de neutralizá-la: o grande reino do debate vai então sendo substituído por micro-feudos replicantes.

Teóricos como Hannah Arendt e Jurgen Habermas evidenciaram que esse reino público só poderia ser constituído pela argumentação discursiva. Mas isso está ficando cada vez mais impraticável. Como a democracia está sendo vítima de um ataque de clones, a formação democrática da vontade política – como previu John Dewey – terá mais como fonte originária a cooperação voluntária, com a convergência comunal de desejos pessoais para contender com um problema ou realizar um projeto, do que a liberdade individual de opinar protegida da interferência do Estado (segundo a clássica visão liberal) ou do que o reino público constituído pela argumentação discursiva (segundo as visões do republicanismo político e do procedimentalismo democrático).

Isso significa que os democratas deverão, cada vez mais, pensar a democracia não apenas como modo político de administração do Estado e sim também como modo-de-vida.

THE WINTER IS HERE

Vejamos o caso do Brasil, onde os democratas, imprensados entre dois populismos i-liberais – o bolsonarismo e o lulopetismo, ambos perigosos e extremamente agressivos -, tendem a ficar meio sem lugar nos tempos que estão vindo e que, na verdade, já chegaram.

Para sobreviverem como tais, quer dizer, se comportando como democratas – agentes fermentadores do processo de formação da opinião pública – eles (os democratas) terão que se aglomerar em pequenos grupos, sem hierarquia, altamente tramados por dentro e conectados para fora (com muitos atalhos para outros clusters semelhantes), segundo um padrão distribuído (que dizer, mais distribuído do que centralizado).

Para continuarem resistindo de maneira ativa e criativa, inovadora mais do que conservadora, exercida na e a partir da sociedade, os democratas terão de experimentar a democracia em não-países, quer dizer, nas suas próprias comunidades de vizinhança, de aprendizagem, de prática e de projeto. Esta será a melhor forma (dependendo de como vai se desenrolar a guerra fria que já se instalou, talvez seja a única eficaz) de resistir ao avanço de ideias e práticas autoritárias na sociedade (sejam ditas de direita ou de esquerda).

Um democrata solto por aí, como um íon social vagando num meio gelatinoso, pode até sobreviver pessoalmente, mas terá imensa dificuldade de atuar com efetividade na cena pública. Será bombardeado de todos os lados. Na medida em que cresce a polarização entre duas forças autocratizantes, se transformará numa espécie de corpo estranho a ser eliminado num jogo adversarial entre inimigos simétricos.

Como sempre, a rede é a solução (não uma organização hierárquica, como um partido, uma corporação ou uma seita) e o papel dos democratas agora é configurar suas ilhas na rede. Talvez seja esta a única maneira de evitar que as democracias acabem no século 21.

Não existe democracia sem democratas. Os democratas que forem capazes de entender isso num glance ou num blink, sintonizando-se com esse tipo de mensagem, quem sabe consigam alcançar graus de sinergia suficientes com outras pessoas para conformar novos aglomerados desse tipo, por própria conta e risco dos que se aventurarem na criação desses mundos-bebês. Não adianta perguntar por que, onde, quando e como – até porque não há resposta pronta para nada disso (os bebês são futuríveis, quer dizer, ainda precisam ser gerados para nascer).

A aliança entre bolsonaristas e economistas-liberais quer fazer a transição inversa

Sobre a insuficiência de se dizer conservador