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Todas as velhas doutrinas políticas são conservadoras

Serve como quinta reflexão terrestre sobre a democracia (*)

Na verdade só existem três grandes troncos de doutrinas políticas hoje: o marxismo, o conservadorismo e o liberalismo-econômico.

São troncos, não doutrinas específicas, na medida em que existem vários marxismos (os marxianismos do jovem e do velho Marx, o marxismo-leninismo, o marxismo-gramscismo e uma infinidade de variantes como as inventadas pelos filósofos franceses – como o foucaultismo), existem vários conservadorismos (dos laicos aos religiosos e teosóficos: aqueles que adotam uma visão esotérica da história) e existem vários liberalismos-econômicos (os da chamada Escola Austríaca, como o von-misesismo e o hayekismo, os libertarianismos e os individualismos à la Ain Rand et coetera).

O anarquismo original e as diversas formas de libertarianismo não-marxista estão quase extintos ou são vestigiais ou marginais.

Os fascismos são comportamentos políticos que podem ser adotados por quaisquer estatistas, sejam conservadores ou revolucionários. E há várias combinações de conservadorismo com liberalismo-econômico.

Pois bem. Afirmamos aqui que todas essas doutrinas são conservadoras no sentido de que não são inovadoras.

Não raro, revolucionários (marxistas), conservadores (de qualquer matiz) e até uma parte dos liberais-econômicos costumam ter posições conservadoras (no sentido de não-inovadoras). Examinemos dois exemplos:

Conservadores e liberais-econômicos costumam ser contra a doutrinação marxista nas escolas. Tudo bem. Mas a escola (como burocracia do ensinamento, baseada na separação de corpos docente x discente) vai continuar doutrinando – seja qual for o conteúdo hegemônico que está na cabeça dos professores da vez – basicamente infundindo noções de ordem, hierarquia, disciplina, obediência, punição e recompensa e fidelidade impostas top down e matando a criatividade? Ah! Mas isso é necessário, dirão todos. E até mesmo os marxistas (revolucionários) – que, por óbvio, não são contra a doutrinação marxista nas escolas – não concordariam em adotar uma posição contra a escola (visto que nos países onde têm hegemonia a escola continua sendo, basicamente, a mesma escola doutrinadora dos países capitalistas, como já havia percebido, em 1970, o maldito Ivan Illich).

Parte dos liberais-conservadores e quase todos os revolucionários marxistas são a favor do casamento gay (ou de quaisquer combinações formadas por pares LGBT) com a adoção de filhos e tudo mais. Conservadores são contra. Mas a família (como cluster fechado, que privatiza capital social) vai continuar existindo e doutrinando – seja qual for a ideologia de gênero dos pais ou mães – basicamente infundindo noções de ordem, hierarquia, disciplina, obediência, punição e recompensa e fidelidade impostas top down e matando a criatividade? Pronto! Agora todos (ou quase todos) estão novamente juntos para dizer que não se pode criticar a família.

Eis que, quando a questão é o padrão civilizatório (ou a cultura patriarcal), marxistas (revolucionários), conservadores (contrarrevolucionários) e liberais-econômicos (quer se digam ou não libertários), não são inovadores. Os inovadores fazem questionamentos como os dos dois exemplos acima, os conservadores e os liberais-econômicos (ditos de direita) e os revolucionários (ditos de esquerda) não fazem.

Em uma sociedade-em-rede, que está estilhaçando o mundo único – e, pela primeira vez, tornando possível o questionamento da multimilenar cultura patriarcal – não cabem mais narrativas totalizantes, que expliquem tudo. Em primeiro lugar, pelo simples motivo de que elas não podem mais explicar tudo (posto que o todo social que precisavam explicar por meio de uma descrição única, se desfez). Em segundo lugar porque descobriu-se que o comportamento coletivo não pode mais ser explicado a partir do que pensam os indivíduos: independentemente das crenças (ou da adesão à doutrinas ou credos por parte) dos sujeitos, eles se comportam sempre de acordo com os fenômenos interativos que estão ocorrendo nos emaranhados sociais onde estão e são.

Esses credos políticos não são mais necessários, senão apenas para os que acham que precisam acreditar em alguma mega-narrativa que explique o mundo para se situar no mundo: são uma espécie de conforto espiritual para os indivíduos, mas não têm poder de determinar o fluxo interativo da convivência social. O problema é que alguns desses credos são claramente avessos à democracia.

Sim, a democracia não precisa de credos e, além disso, falar sobre a democracia não é “fazer” democracia (que pode se exercer, inclusive, com pessoas que são contra a democracia ou que não têm capacidade de explicá-la: a imensa maioria dos atenienses que viveram no século 5 AEC, não sabia justificar, com argumentos, por que a democracia seria preferível, o mesmo valendo para os que vivem em países democráticos atuais). Mas contingentes de pessoas conformados a partir de um pensamento antidemocrático, têm influência negativa sobre a democracia, não em razão do que eles pensam ou falam sobre a democracia e sim das ações concretas de autocratização da democracia que porventura pratiquem.

O liberalismo-político (como o de Spinoza) – essencialmente anti-autocrático – não chegou a ser uma doutrina (no sentido de credo), senão um conjunto de idéias capazes de inspirar (ou melhor, capazes de se sintonizar com) comportamentos políticos compatíveis com a democracia dos modernos, na medida em que não levou à formação de corpos de militantes que praticam a guerra (quente, fria ou como política pervertida como arte da guerra ou continuação da guerra por outros meios) como modo de regulação de conflitos. Este é o ponto. A democracia é um modo não-guerreiro de regulação de conflitos e por isso pode ser definida como um processo de desconstituição de autocracia (já que guerra é autocracia). Todos os que – esposando qualquer doutrina política – não adotam modos guerreiros de regulação de conflitos, podem ser players válidos da democracia. E todos os que – mesmo que sigam a vertente mais anárquica do liberalismo-econômico – formam contingentes para combater, em nome de suas ideias, os que adotam outros credos, realizando ações práticas para tanto e criando lados em confronto, desqualificam-se como atores democráticos.

O liberalismo-político é compatível com a democracia porque está baseado na ideia de que o sentido da política é a liberdade, não a ordem geral que regeria o universo (a criação), a natureza, a sociedade ou o ser humano e nem a ordem do Estado orientado por um conjunto de princípios já estabelecidos ex ante à interação (sejam estes princípios derivados de alguma instância transcendente ou imanente, revelados por deus, desvendados por uma teologia, descobertos por uma filosofia da história ou mesmo pela ciência ao investigar a natureza).

A validação extra-política de qualquer regime político é incompatível com a democracia. Por que? Porque os princípios de qualquer validação extra-política não estão submetidos à interação democrática: eles já valem antes e sempre, independentemente dos fluxos interativos da convivência social que mudam comportamentos e pensamentos. Ideias não mudam comportamentos, só comportamentos mudam comportamentos e, inevitavelmente, pensamentos (mas a recíproca não é verdadeira: se fosse, bastaria doutrinar as pessoas seguindo um codex para construir a boa sociedade, quando a experiência mostra que não é assim, do contrário milênios de pregação religiosa e utópica sobre o bem, o belo e o verdadeiro já teriam construído o paraíso na Terra).

Toda pregação, toda doutrinação, todo seguimento de credos e constituição de corpos de fiéis (e, simultaneamente, de infiéis) são conservadores na medida em que tentam conservar e reproduzir um conteúdo determinado contra a mudança (desse conteúdo), contra o contingente, contra o descoberto, contra o inventado, contra o feito por desejo e sem necessidade, contra o erro, a falha e o acaso que incidem na sempre provisória e precária vida comum.

A democracia, toda vez que acontece (ou seja, toda vez que é ensaiada, sejam quais forem as crenças mais profundas que estão nas cabeças dos que a ensaiam), é inovadora. E é inovadora em relação ao que há de mais antigo a ser conservado: a cultura patriarcal, hierárquica e autocrática, do que chamamos de civilização. Não por ter uma outra cultura (como transmissão não-genética de comportamentos inspirados em um conjunto qualquer de ideias, ou melhor, em circularidades inerentes às conversações que ocorrem no seio dessa cultura e que são capazes de reproduzir um determinado modo de vida ou de convivência social) para colocar no lugar da velha e sim porque é vazia de conteúdos determinados imunes à interação.

A natureza da democracia não é a de ser mais uma edificação para trancar os fluxos ou condicioná-los a ficar rodando da mesma maneira na rede e sim a de ser uma brecha no muro da cultura patriarcal.

(*) Para ler as outras reflexões terrestres sobre a democracia clique nos links: Primeira, Segunda, Terceira, Quarta.

 

A política da pureza ou é autocrática ou leva sempre à autocracia

O principal imperativo democrático é impedir a volta do PT ao poder