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Turquia: uma lição de democracia pelo avesso

O golpe desastrado desfechado anteontem por alguns militares turcos serve como um curso prático de democracia para os que pediam intervenção militar no Brasil. Mais do que isso, porém. Serve também como uma lição básica de democracia, pelo avesso.

Ainda não sabemos exatamente o que aconteceu. Não sabemos, por exemplo, em que medida a parte do estamento militar que se rebelou estava animada por ideias do movimento islamita Gulen. Ou se Erdogan, agora, quer fazer crer que estivessem, aproveitando a ocasião para destruir seus inimigos gulenistas.

Mas mesmo que não conheçamos todos os detalhes dessa última quartelada turca mal-sucedida, algumas coisas já sabemos sobre o governo de Erdogan.

E sabemos o fundamental. Que Erdogan estava autocratizando o regime turco. Que ele reprimiu duramente as grandes manifestações sociais de 2013 em Istambul. Que ele estava fazendo – e foi o próprio que declarou – uma limpeza nas instituições do Estado, inclusive nas forças armadas, afastando os oficiais que podiam ameaçar o seu projeto (não apenas os gulenistas, mas os kemalistas e os laicistas). Que ele estava intervindo no poder judiciário, substituindo os antigos juízes independentes por pessoas fieis ao governo. Que ele estava cerceando a liberdade de imprensa, intimidando e prendendo jornalistas críticos ao regime. Que ele estava, portanto, descumprindo os critérios da legitimidade democrática: além de violar a liberdade, Erdogan colocou em marcha um processo de degeneração da institucionalidade (base da independência dos poderes) e de falsificação da rotatividade ou alternância (tentando converter o parlamentarismo numa espécie de presidencialismo imperial: antessala para a transformação da democracia representativa formal que vigia há décadas na Turquia em uma ditadura). Até aqui ele seguiu a fórmula clássica das protoditaduras contemporâneas que viraram ditaduras, como a Venezuela e a Rússia. Além disso, porém, Erdogan se aproximou do fundamentalismo islâmico, contrariando a tendência laicizante que caracterizou os regimes anteriores e isolando e combatendo as forças representantes da tradição republicana, democrática, laica, anti-islamista e kemalista que ainda existem na Turquia.

Nada disso, por certo, justifica um golpe militar. Mas é necessário analisar até onde foi o processo de autocratização da democracia promovido por Erdogan.

Os democratas, somos contra qualquer golpe, sobretudo militar e, sobretudo, desferido contra uma democracia (mesmo que apenas formal). No entanto, Erdogan já era um protoditador. Não é porque foi eleito que é democrata, ao contrário do que disse ontem, em um tweet solerte, a presidente afastada Dilma Rousseff:

A tentativa de golpe na Turquia é preocupante. Um governo eleito não pode ser derrubado. Nem por violência. Nem por artimanhas jurídicas.

Dilma, como tantos outros analfabetos democráticos e autocratas, quer nos empulhar com a ideia de que democracia é igual à eleição. Se fosse, a maioria dos quase 60 ditadores que remanescem no mundo atual não promoveria eleições.

A eletividade é um dos critérios da democracia representativa. Mas não é suficiente para caracterizar a legitimidade dos regimes democráticos. Além da eletividade, outros critérios são necessários: a liberdade, a publicidade ou transparência, a rotatividade ou alternância, a legalidade e a institucionalidade.

Isso significa que não basta a um governo ter sido eleito para ser democrático. É necessário, além de ser eleito, governar democraticamente. Maduro, o neoditador venezuelano, foi eleito. Putin foi eleito. A despeito disso, Venezuela e Rússia são hoje regimes ditatoriais.

Quais são as lições que podemos tirar do episódio?

Bem, a primeira delas é que um golpe militar contra um regime em processo de autocratização produz mais autocracia, não democracia. É o que, tudo indica, Erdogan fará agora. Aproveitando-se do golpe mal-sucedido, dará continuidade à sua limpeza política (demitindo de qualquer posição no Estado, quando não prendendo, mutilando e matando, os que discordam dele) e, inclusive – se não for contido pelas potências democráticas ocidentais – poderá avançar para algum tipo horrível de limpeza religiosa (embora a Turquia seja um país grande demais para fazer isso impunemente, sem sofrer consequências desastrosas no campo econômico).

No mínimo, Erdogan fará o que fez Chávez após a tentativa frustrada de golpe que sofreu em 11 de abril de 2002 (avançando na bolivarianização do regime com efeitos horríveis para a democracia e para a estabilidade econômica do país, como se comprova hoje pelo apodrecimento da Venezuela sob Maduro). Por isso os democratas são contra qualquer golpe de força, como, por exemplo, o que tentaram dar contra Chavez, independentemente de se concordar ou não com Chávez, que também foi, por sua vez, um militar golpista: como se sabe, em 4 de fevereiro de 1992, o tenente-coronel Hugo Chávez (mancomunado com outros oficiais do exército: Francisco Arias, Jesus Miguel Ortiz e Francisco Urdaneta) promoveu uma quartelada (semelhante à que viria a sofrer dez anos depois) para tentar depor o presidente Carlos Andrés Pérez. Ambos os golpes militares fracassaram em poucas horas, como o que ocorreu ontem contra Erdogan.

Tudo isso, entretanto, é muito diferente do que aconteceu no Egito em 30 de junho de 2013 (a maior manifestação social de toda a história humana), quando Morsi, o jihadista da Irmandade Muçulmana eleito, foi derrubado pelas ruas (e os militares assumiram porque não havia outra força política nacional organizada para tanto). Basta assistir o filme The Square para entender.

A segunda lição é a seguinte: se não há democracia fora do respeito à lei (que sempre é quebrada pelos golpistas), só o respeito à lei não assegura a democracia. Erdogan pode dizer que respeita as leis (sobretudo as leis que ele faz). A despeito disso está transformando a Turquia em uma ditadura.

A questão que se coloca aqui é crucial para a democracia. Até que ponto de autocratização do regime o império da lei pode ser aceito como um critério democrático? Não é uma questão trivial. Se um governante democraticamente eleito não governa democraticamente e viola boa parte dos critérios democráticos (além dos critérios da eletividade e da legalidade) – como a liberdade, a publicidade ou transparência, a rotatividade ou alternância e a institucionalidade – isso significa que ele passa, em grande medida, a ditar as leis (que é o que fazem os ditadores). Pois bem, nestas circunstâncias, o respeito às leis permanece como critério democrático? Ou, colocando a mesma questão de outra forma: nessas circunstâncias, o Estado de direito significa Estado democrático?

Não há uma resposta inequívoca e geral para essa questão. Depende de até onde chegou o processo de autocratização da democracia. Do ponto de vista teórico – de uma teoria social da democracia – essa questão não tem solução sem admitirmos que o que chamamos de democracia não é um estado (por exemplo, um modelo de administração política do Estado) e sim um processo de democratização. No artigo O que é democracia, resolvi a questão, desse ponto de vista, da seguinte maneira:

Não há um modelo de democracia que possa servir de referência para se dizer o que é e o que não é democracia. Toda vez que o processo de democratização consegue, mesmo intermitentemente, prosseguir, dizemos que estamos numa democracia, devendo-se entender por isso o seguinte: estamos conseguindo tornar modos de regulação de conflitos menos autocráticos e padrões de organização menos hierárquicos, nada garantindo, porém, que vamos definitivamente para o céu: sempre pode haver retrocesso quando – no caso da democracia dos modernos (a democracia representativa realmente existente nos países que a adotam) – restringe-se a liberdade, viola-se a publicidade, frauda-se a eletividade, falsifica-se a rotatividade, descumpre-se a legalidade e degenera-se a institucionalidade. Quando algumas dessas coisas são feitas a partir de certo grau que começa a inviabilizar a continuidade do processo de democratização, dizemos que não estamos mais numa democracia (ou seja, que a democracia que temos não está mais conformando-se como um ambiente favorável a caminharmos em direção à democracia que queremos). Mas os limites não são fixos.

A terceira lição é que a democracia nunca nasce da guerra. Um golpe é uma ação de guerra, não apenas em razão do emprego da violência, como acreditam tolamente os que acham que guerra é o conflito violento (e este tema já foi tratado no texto A democracia nunca nasce da guerra e, mais resumida e incisivamente, no artigo Quinze declarações sobre a guerra). Por mais que um governo esteja engajado em um processo de autocratização d0 regime político, uma guerra movida contra ele não obterá como resultado a sua democratização.

O que não é o caso, ao contrário do que muita gente afirma, da Tunísia, do Egito e de outros países cujas populações se sublevaram na chamada Primavera Árabe. Ali não foi guerra o que aconteceu. Não houve contingentes armados, destacamentos de combate que se mobilizaram para derrubar governos autocráticos. Foram grandes enxameamentos de pessoas, um incremento súbito e surpreendente da interatividade social que constelou multidões nas ruas e aumentou a fermentação na base da sociedade. E os resultados foram claros: as sociedades onde ocorreram essas revoluções (sociais, stricto sensu) se democratizaram mais e não menos. É o caso, inconteste, da Tunísia. O mesmo ocorreu no Egito: embora os sublevados que derrubaram Mubarak (o ditador reinante) em 11 de fevereiro de 2011 e, inclusive, Morsi (o protoditador que foi “democraticamente” eleito) em 30 de junho de 2013, não tivessem tomado o poder (que recaiu nas mãos dos militares), o fato do poder (de Estado) não ter sido “tomado” pela sociedade sublevada não significa que não tenha ocorrido um vigoroso processo de democratização (na sociedade). Pelo contrário, o que aconteceu foi uma prova de que não havia um destacamento guerreiro, um grupo querendo dar um golpe de força para se apossar do governo.

Outro exemplo eloquente é a Síria. Os sublevados contra Assad em janeiro de 2011 não fizeram guerra nenhuma contra ele. Pelo contrário, foi Assad que iniciou a guerra para matar a rede (que é o objetivo de qualquer guerra) e interromper o processo de democratização da sociedade que estava sendo desencadeado pelas manifestações sociais.

A incompreensão das raízes sociais da democracia – ou seja, do condicionamento recíproco entre padrão de organização (social) e modo de regulação (político) – tem levado várias pessoas a questionar a validade da democracia diante de eventos como o recente e frustrado golpe turco.

Vamos examinar um exemplo. Uma pessoa publicou ontem, no grupo aberto Dagobah do Facebook, a transcrição do seguinte post de Mauricio Noblat, também no Facebook:

Eis como a democracia foi deformada ao ponto de ser irreconhecível. Digamos que um líder democraticamente eleito se torne um tirano e condene sua população a um horror nível URSS, Coréia do Norte, Venezuela, Cuba ou Alemanha Nazista. Ainda sim deve se encarar os fatos de modo a preservar primeiramente a democracia em detrimento das pessoas, como se a democracia fosse um valor em si mesmo superior a todos os outros? Claro que não. Democracia é um método de escolha dos representantes, que em sociedades estáveis politico e institucionalmente se adota por ter provado ser o menos imperfeito dos modelos. Em dados momentos históricos de cada povo se terá as condições ideais para um democracia como base do pacto social que rege os homens daquele lugar. Em outros momentos históricos não será viável a democracia, esta terá que ser quebrada em prol de retirar tiranos que se apropriaram do modelo e subvertem-o, usando a democracia exatamente para destruí-la. Sempre que grupos revolucionários assume o poder deformam o sistema e as leis usando a farsa de terem sido eleitos democraticamente como passe livre para destroçar os indivíduos. A democracia não é um valor em si mesmo, não é atemporal e aplicável a qualquer momento histórico. Em dados momentos deve se agir de todos as formas para se libertar as pessoas da tirania que nos dias de hoje se esconde na roupagem democrática. Destituir um Hitler, intervir numa Coréia do Norte, em Cuba, Venezuela e em tantos regimes anti humanos não viola a democracia e exemplificam o quão delicada é esta como valor. A democracia como valor só é viável em momentos de solidez institucional. Não, a democracia não é um dado atemporal e constante na história humana, apenas é o melhor ( menos pior) método de representatividade em períodos de prosperidade política,moral e institucional. Sem resguardar princípios e valores intrínsecos ao conceitos clássico de democracia, esta é apenas uma farsa.

O texto acima é um exemplo perfeito e acabado de analfabetismo democrático (e é – mesmo que não intencionalmente – uma profissão de fé na autocracia).

Em primeiro lugar toma a democracia como um modelo de governo (quando ela é – geneticamente – um processo de democratização, quer dizer, de desconstituição de autocracia).

Em segundo lugar confunde democracia com eleição (esquecendo todos os outros critérios sem os quais apenas a eletividade não basta para caracterizar um regime como legitimamente democrático).

Em terceiro lugar, deriva dessas duas premissas incorretas a conclusão de que a democracia não é um valor em si mesmo (confundindo o valor universal do modo de regulação não-guerreiro com algum conteúdo substantivo, como “princípios e valores intrínsecos”) e que, portanto, a democracia só seria “viável em momentos de solidez institucional” (o que é uma gravíssima afirmação anti-democrática: pois então, neste caso, teríamos que ter autocracia durante o tempo suficiente para construir uma “solidez institucional” para, só depois, podermos ter democracia).

Voltamos aqui à crença autocrática (repetida por castristas e por todos os estatistas de esquerda) de que a democracia é uma espécie de luxo (verbalizada não raro por meio da pergunta impertinente e sórdida: de que adiante ter democracia se o povo passa fome?) ou de que precisamos primeiro alcançar patamares de igualdade e equidade para, só depois, podermos exercitar a liberdade (ou seja, até lá, até alcançarmos um excelente patamar civilizatório, o caminho deverá ser autocrático, como se a democracia fosse uma sociedade ideal, uma utopia igualitária que, para ser alcançada, merecesse um ditador benevolente, um guia genial autocrático condutor dos povos para o reino da liberdade e que exigisse dos seus conduzidos a privação presente das suas liberdades individuais e coletivas em nome de uma imaginária liberdade para todos a ser alcançada no futuro).

Voltamos aqui à temática do déspota esclarecido (aquele capaz de construir a nação – ou pior, o Estado – preparando-a, por vias não-democráticas, para a democracia).

Voltamos aqui à velhíssima problemática da década de 1970, de se um país está ou não está preparado para a democracia. Amartya Sen, como se sabe, desconstituiu o falso problema ao dizer que a questão não se colocava na medida em que todos os países se preparam através da democracia. Ou seja, como já havia percebido John Dewey, a democracia é meio e fim: só se pode atingir democracia por meios democráticos. Porque a democracia (como modo pazeante de regulação de conflitos e não modelo de sociedade ideal) não é o porto, o ponto de chegada e sim o modo de navegar que desconstitui autocracia (agora, no presente, e não em qualquer futuro imaginário).

Por tudo isso, o recente golpe turco, embora com consequências lamentáveis para a democracia na Turquia, na região e no resto do mundo (sim, porque a reação de Erdogan à patuscada militar acabou tendo que contar com o apoio das grandes potências democráticas, dos Estados Unidos e da Europa), pode nos servir, pelo avesso, como uma rica lição de democracia.

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