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Um artigo contra a democracia

O Estadão publicou no início de maio um artigo do professor Arturo Bris, professor de finanças do IMD, Escola Suíça de Negócios e diretor do Centro Mundial de Competitividade do IMD.

O artigo chama a atenção para um ponto realmente importante: o declínio da quantidade de democracias, no sentido fraco do conceito, como forma de administração política do Estado (ou seja, no âmbito dos Estados-nações) – o que é fato.  Mas a abordagem de Bris é problemática: reduz a democracia a regime eleitoral, passando a falsa impressão de que democracia é o governo de todos, quando ela é o governo de qualquer um (uma confusão própria do analfabetismo democrático). Além disso, a informação de que “as dez economias mais corruptas do Ranking Mundial de Competitividade do IMD de 2016 são, na verdade, de países democráticos”, é falsa ou falsifica os rankings (neste caso são democracias flaweds ou regimes híbridos, não democracias plenas, no critério do Democracy Index da EIU, que o próprio autor toma como referência).

Vale a pena, entretanto, ler o artigo. Reproduzimos abaixo a íntegra do texto para concluir com um breve comentário que mostra por que Bris escreveu um artigo contra a democracia.

A democracia ainda existe?

A verdadeira, em que todos se envolvem nas tomadas de decisão, não existe em lugar algum

Arturo Bris, O Estado de São Paulo, 02 Maio 2017 | 03h00

Hoje apenas 4,5% da população mundial vive em países plenamente democráticos, de acordo com o Índice de Democracia da Economist Intelligence Unit. Cerca de 45% vivem em democracias falhas, 33% em regimes autoritários.

Crescemos acreditando que desde os gregos a democracia tem sido o melhor sistema do mundo. De fato, entre as dez economias com maior competitividade no Ranking da Competitividade Mundial do Institute for Management Development (IMD) em 2016, apenas duas, Hong Kong e Cingapura, não são democracias por completo. No entanto, dados mostram que hoje o mundo é menos (e não mais) democrático do que há dez anos; os países cuja competitividade evoluiu não são os democráticos. E estes – Cingapura e Emirados Árabes – são modelos em todo o mundo.

Em Against Democracy, o professor Jason Brennan, da Universidade de Georgetown (EUA), destaca a ignorância dos eleitores. Ele os classifica em 1) hobbits, os que não se preocupam em aprender sobre política e, portanto, votam em completa ignorância; 2) hooligans, que seguem seu partido com a devoção de um fã de esportes, sem considerar os desempenhos e os planos; 3) e uma minoria significativa que se comporta racionalmente e vota com informação completa, os vulcans. Infelizmente, e por causa do domínio dos hobbits e dos hooligans, os resultados democráticos não são representativos e são prejudiciais ao bem comum.

A propósito, pode-se concluir que as manifestações em massa nos EUA contra o presidente, eleito, são de pessoas protestando entre uma ditadura de hobbits e de hooligans.

A verdadeira democracia, em que todos os afetados estão envolvidos nas tomadas de decisões, não existe em lugar nenhum. Não há razão para que apenas os cidadãos acima de 18 anos votem.

Quando o resultado da eleição americana afeta a todos, o mundo todo deveria ter o direito de votar.

Em muitos casos punimos ou dificultamos as escolhas de gerações futuras ao votarmos, por exemplo, nas políticas previdenciárias de pessoas que nem sequer nasceram.

O voto do Brexit pode ter sido uma decisão racional de pessoas bem informadas, mas certamente restringiu as oportunidades para muitos britânicos, que não poderão ter acesso a um mercado europeu ampliado no futuro – e não endossaram essa decisão.

Mas há outros problemas. Por exemplo, o referendo colombiano sobre o chamado Acordo de Paz com as Farc. O papa Francisco apoiou o “sim”. Uma vez que ele é protegido por dogmas, deve estar certo. Mas o resultado foi “não”. E deve ter sido errado, já que o papa está sempre certo!

A democracia também é um processo lento. O sistema suíço é o melhor em termos de participação popular e as decisões são aceitas porque a democracia direta é implementada em todos os lugares. Mas os acordos demoram. Veja-se a linha ferroviária Ceva, com uma rota de 16 km, que liga Genebra à França. Estima-se que será concluída em dezembro de 2019. Porém o projeto original é de 1850 e sua construção começou em 1912! Esse atraso se dá pela dificuldade de todos os envolvidos chegarem a um consenso.

Curiosamente, antes aceitávamos que a democracia é por natureza redistributiva e, portanto, protege a classe baixa contra os excessos de qualquer minoria governante. Entretanto, Daron Acemoglu e James Robinson demonstraram recentemente que essa premissa está errada. Num grande estudo longitudinal de mais de cem países – Democracia, Redistribuição e Desigualdade, 2013 – eles mostraram que a democracia não parece ter nenhum efeito significativo na desigualdade de renda. Ao contrário, a desigualdade tende a aumentar sob a democracia quando a economia já tiver sofrido uma transformação estrutural expressiva, quando há alta desigualdade na distribuição de terras e quando o espaço entre a classe média e os pobres é relativamente pequeno.

Só podemos reivindicar o triunfo da democracia se reconhecermos os problemas de qualquer uma das alternativas. As ditaduras dependem de uma alocação aleatória de líderes políticos. Os países podem ter a sorte de contar com um ditador benevolente (Emirados Árabes, Cingapura), com intenções nobres e políticas altruístas, mas isso raramente se verifica (Coreia do Norte, Guiné Equatorial), na maioria das vezes os ditadores não são responsáveis pelo bem comum (China, Arábia Saudita).

O grupo de apoio de um líder democrático tem de ser maior por natureza e por isso é mais difícil de agradar. Esse grupo é o que Bueno de Mesquita e Alastair Smith (O Manual do Ditador: Por Que o Mau Comportamento é Quase Sempre Boa Política, 2012) chamam de fundamentos, ou de coligação vencedora. Para eles, em qualquer sistema há três importantes grupos políticos a considerar: o dos intercambiáveis ou nominalmente seletivos, que inclui qualquer pessoa com voz na escolha do líder (numa democracia, quem pode votar); o influente ou real, dos que realmente escolhem o líder (numa democracia, os que realmente votaram); e os fundamentais, cujo apoio realmente importa (numa democracia, os que votam no candidato vencedor). Quanto menos democrático for um sistema, menor o último grupo e, portanto, o mais corrupto, porque o sistema precisa garantir a satisfação financeira apenas desse grupo. Curiosamente, as dez economias mais corruptas do Ranking Mundial de Competitividade do IMD de 2016 são, na verdade, de países democráticos.

Embora a maioria aprecie os países democráticos como lugares exemplares para viver, olhar em profundidade a competitividade das nações revela outro cenário. Como pesquisador nessa área, não poderia recomendar que qualquer país, especialmente um novo país, procure ser democrático a todo custo – especialmente quando se levam em conta alguns dos resultados sísmicos que os processos democráticos nos proporcionaram durante o ano passado.

Um breve comentário

Examinando mais acuradamente o texto de Bris, descobrimos que há realmente problemas, não apenas com as democracias realmente existentes, alguns dos quais ele aponta, senão com a própria visão do autor sobre democracia.

Além do que já foi apontado na introdução deste post, selecionamos abaixo cinco passagens que revelam uma concepção pedestre de democracia (e, ao fim e ao cabo, antidemocrática):

“Crescemos acreditando que desde os gregos a democracia tem sido o melhor sistema do mundo”.

Não, a democracia dos atenienses (509-322 AEC) não era propriamente um sistema, um modelo exportável, senão o arranjo casuístico e essencialmente local que resultou de um processo – o processo de desconstituição da tirania dos psistrátidas. Quando os modernos resolveram reinventar a democracia no século 17, tentaram, sim, criar um modelo (que foi exportado internacionalmente junto com o nascente Estado-nação) e foi isso que não deu os resultados esperados (justamente pelos problemas da forma Estado-nação, que era uma estrutura pensada para a guerra, não para a democracia), não a democracia dos atenienses. Aliás, sobre isso, o juízo de Churchill, já tão batido, dizia o contrário: a democracia (essa democracia, não a dos antigos gregos) é o pior sistema, excetuados todos os demais.

“A verdadeira democracia, em que todos os afetados estão envolvidos nas tomadas de decisões, não existe em lugar nenhum”.

Não existe esse negócio “a verdadeira democracia”. De onde Bris tirou isso? Cada experiência de democracia é sempre única, singular. E não exige que todos estejam envolvidos: apenas os que desejam pertencer à comunidade política, quer dizer, os seres que optaram por uma forma de interação propriamente política, os interagentes na comunidade política (e por isso, a participação na Ágora não era obrigatória e o voto também não deveria sê-lo – na prática, não é, pois a sanção pela abstenção costuma ser ridícula nas democracias atuais).

“Curiosamente, antes aceitávamos que a democracia é por natureza redistributiva e, portanto, protege a classe baixa contra os excessos de qualquer minoria governante”.

Aqui há a velha confusão sobre o sentido da política (democrática), que não visa redistribuir riquezas ou reduzir as desigualdades (embora isso seja desejável). O sentido da política é a liberdade, não a igualdade. A igualdade (política) é a condição, não a finalidade. A igualdade, frise-se, entre os membros da comunidade política, que raramente inclui todos os habitantes de uma cidade ou país, do contrário não seria possível experimentar nenhum processo de democratização, pois alguém estaria sempre excluído, senão os estrangeiros, as mulheres e os escravos como na Atenas dos séculos 5 e 4 e, atualmente, os menores de 18 ou 16 anos, os presidiários, os que tiveram seus direitos políticos cassados, certos doentes e, novamente, os estrangeiros.

Por outro lado, a democracia não visa “proteger a classe baixa” das minorias governantes e sim dar-lhe condição de interagir no processo de formação da vontade política coletiva, até – mas não somente, nem principalmente – para escolher quem será a minoria governante (sempre uma minoria: todo governo é oligárquico). Proteger é um conceito que se aplica à relação entre Estado (e direito) e cidadania, não sendo papel precípuo da democracia. A democracia quer que todos sejam livres para não precisarem ser protegidos por governantes e para ter o poder, inclusive, de não só escolher, mas remover governantes.

“Os países podem ter a sorte de contar com um ditador benevolente (Emirados Árabes, Cingapura), com intenções nobres e políticas altruístas…”

Aqui houve um escorregão. O autor acabou revelando sua admiração pela hipótese do déspota esclarecido, aquele que – a despeito de ser um autocrata – faz o bem para o povo. Ora, para a democracia, não existe autocrata bom, mesmo que, pontualmente, possa haver patrocinado políticas de Estado que estimulem a competitividade e o desenvolvimento econômico (que parece ser o objetivo maior do bom governo para Bris). Assim, “ditadores benevolentes” não são admitidos em democracias: do contrário os democratas deveríamos aceitar Pinochet em razão da sua política econômica (que melhorou, inclusive, vários indicadores sociais do Chile) ou até mesmo alguns ditadores militares que passaram pelo Brasil. Dizer que as autocracias dos Emirados Árabes e de Cingapura são comandadas por “ditadores benevolentes com intenções nobres e políticas altruístas” é um escândalo. Por melhores que sejam as intenções dos governantes e por mais supostamente altruístas que sejam suas políticas, elas não servem porque não se trata de ter um bom pastor e sim de não fazer parte de rebanhos. São as pessoas que devem se auto-dirigir, a partir da interação de suas próprias opiniões e não permanecerem como beneficiárias passivas e permanentes de políticas impostas do alto, não importa se pelo arcanjo Miguel ou por São Francisco de Assis.

“Como pesquisador nessa área, não poderia recomendar que qualquer país, especialmente um novo país, procure ser democrático a todo custo – especialmente quando se levam em conta alguns dos resultados sísmicos que os processos democráticos nos proporcionaram durante o ano passado”.

A conclusão do texto de Bris é compatível com sua visão. Ele não é um democrata. Ao não recomendar a democracia para um novo país que precisa se desenvolver, ele deixa claro que não entendeu que a democracia é meio e fim, que não se pode chegar à democracia a não ser pela democracia (um debate que Amartya Sen já havia resolvido na década de 70 do século passado, ao dizer que não existem países preparados ou não preparados para a democracia, pois todos os países se preparam através da democracia). O que ele está defendendo – a pretexto de detectar os problemas da democracia no mundo (na sua concepção) – é um atalho autocrático, que dê mais estabilidade (essencialmente econômica) aos países, evitando os abalos sísmicos que são próprios do processo de democratização, mas são indesejáveis para quem tem uma mentalidade autoritária.

Arturo Bris escreveu, na verdade, um artigo contra a democracia.

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