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Um artigo dedicado aos militares com juízo e que prezam a democracia

É uma temeridade infestar os mais altos escalões do governo com tantos militares. Não que não existam militares competentes na Marinha, no Exército e na Aeronáutica, capazes de cumprir difíceis missões. Existem, sim, mas eles não foram indicados pela sua competência técnica. Foram indicados, ao ver de Bolsonaro, supostamente, por não serem corruptos ou comunistas (ou por suas posições anticomunistas, ainda na vibe da guerra fria).

Os generais que agora viraram políticos foram extraídos, em sua maioria, das turmas de 74, 75 e 76 da Academia Militar das Agulhas Negras (o que não pode ser por acaso). É óbvio que durante os últimos anos rolaram muitas conversas entre Bolsonaro e vários desses militares, inclusive com os que ainda estavam na ativa.

Em qualquer caso, nos médio e longo prazos (senão no curto), os resultados dessa ocupação militar do Planalto não poderão ser bons, nem para as Forças Armadas como instituição, nem para o país.

Se o governo não for muito bem (ou mesmo se não for perfeito), recairá sobre a instituição (e não apenas sobre os oficiais nomeados) parte da culpa. Se for bem, criará o perigoso precedente de que a política é algo muito sério para ser deixada nas mãos dos… políticos (o que, no limite, é uma deslegitimação da democracia).

Em democracias o papel dos militares na política (na politics, não na policy) é bem conhecido: nenhum! E não há – em qualquer lugar do mundo, nem nunca houve, em alguma época da história – nenhuma democracia com presença tão exagerada de militares em postos de primeiro e de segundo escalões de governo (ou seja, em cargos de natureza política – não técnica – como ministros e secretários) como agora se vê no Brasil de 2019.

Não, não é exagero. Veja-se abaixo dois quadros: um com o organograma do governo e outro com a presença (até agora) de oficiais das forças armadas (em sua maioria generais do Exército). O segundo quadro é ainda provisório, de vez que Bolsonaro continua nomeando militares para o primeiro escalão e que não se conhece ainda quantos militares ocuparão o segundo escalão.

Ao que tudo indica, como foi dito, o número de oficiais de alta patente ainda vai aumentar. E eles se concentram em cargos decisivos, de comando-e-controle, sobretudo na presidência da República. No âmbito mais próximo do presidente, com poder de fato – os chamados ministros palacianos – sobraram apenas dois civis Onyx Lorenzoni (enrolado com delações de caixa 2) e Gustavo Bebianno (um jejuno em assuntos de governo e em funções de comando). Convenhamos: é exagerado!

Não venham nos dizer que os militares alçados ao governo não são da ativa e sim da reserva e, portanto, são em tudo iguais aos civis. Um militar da reserva é apenas um militar que não está na ativa. Em termos de pensamento e comportamento, não é um não-militar. Sua pessoa, como emaranhado de relacionamentos, continua a mesma: reproduzindo atitudes conformes à cultura militar.

Os militares com juízo e que prezam a democracia devem refletir bastante sobre o que está ocorrendo. Devem compreender que o seu papel na democracia não é o de ser operadores do regime (isso eles não podem fazer) e sim o de garantidores do Estado democrático de direito. Não podem ser cegados pelo moralismo ou pelo anticomunismo vigorante antes da queda do muro de Berlim. Devem ficar atentos ao alerta do 1º barão Acton:

“O poder tende a corromper, e o poder absoluto corrompe absolutamente, de modo que os grandes homens são quase sempre homens maus” (*).

Quem tem mais poder, por pertencer ao corpo estatal, pode fazer coisas que os outros não podem e pode escapar da reprovação social (e, inclusive das leis) com mais facilidade do que os que têm menos poder. Talvez seja por isso que John Emerich Edward Dalberg-Acton (o 1º barão Acton), cunhou sua famosa frase. Ou seja, o sistema funciona assim independentemente do grau de honestidade individual dos seus agentes. Quando se forma um estamento político estável, com mais imunidade em relação à coação da sociedade ou menos alcançável por ela, comportamentos desse tipo (corruptos e corruptores) conseguem se reproduzir porque são avalizados por uma espécie de moral de gangue, de espírito corporativo. É por isso que uma pessoa honesta, entrando na política, acaba se corrompendo: não porque seja má ou queira fazer o mal e sim porque tal comportamento foi naturalizado ou normalizado, passou a fazer parte da regra do jogo (o sistema funciona assim). O sistema funciona assim, e o mesmo vale para as cidades-Estado da antiguidade, para os Estados feudais, para os Estados principescos e reais e, inclusive, para a atual forma Estado-nação. É claro que não devemos nos conformar com isso e, no longo prazo, temos muitos exemplos de que as sociedades democráticas conseguem reduzir os graus de corrupção – na política e na sociedade – para níveis mais aceitáveis (na exata medida em que aumentam seus estoques de capital social).

Mas, atenção! Os países menos corruptos do mundo na política (como Nova Zelândia, Dinamarca, Finlândia e Noruega), são também (não por acaso) os mais democráticos e nos quais não há – nunca houve! – presença significativa de militares no governo, nem cruzadas de limpeza ética ou operações de combate à corrupção promovidas por milícias estatais (compostas por juízes, procuradores e policiais). Já os países mais corruptos do mundo na política (como Somália, Sudão do Sul, Síria e Afeganistão) são, em sua imensa maioria, ditaduras (algumas militares ou com forte presença militar no governo).

Reconheça-se que é difícil mesmo, para quem teve formação militar, entender o processo de auto-organização que ocorre nas democracias.

Atribui-se a Otto von Bismarck o dito, já um tanto batido, de que “os cidadãos não poderiam dormir tranquilos se soubessem como são feitas as salsichas e as leis”. A frase não merece ser elogiada pelos democratas. Na verdade, Bismarck, um “político do poder” (campeão da realpolitik), não era um adepto da democracia. Na sua visão autocrática – que priorizava a ordem em detrimento da liberdade – a “zona” (no sentido figurado, de prostíbulo) que é qualquer parlamento, os procedimentos indevidos, a corrupção, os lobbies e as negociatas, o toma-lá-dá-cá, a pouca qualificação do pessoal, a falta de um plano diretor (ou de um sistema eficiente de gestão) e de controle de qualidade das “matérias primas”, tudo isso meio que desqualificaria os procedimentos legislativos.

A democracia, no entanto, é uma aposta de que o caos é criativo, de que é melhor – quando se trata dos processos de auto-organização e dos procedimentos destinados a verificar a vontade política coletiva – os erros (ou os pecados) dos ignorantes, curvos e impuros, do que os acertos (ou as virtudes) dos sábios, retos e puros. O nome disso é politica (propriamente dita), ou seja, democracia. Quem não está sujo o suficiente tem dificuldade de entender o conceito e o processo pelo qual o conceito se realiza. Analfabetos democráticos e  mentalidades autoritárias não conseguem entender que o que salva a democracia é a bagunça. É o erro no cálculo, a falha na armadura, o defeito (ou o fantasma) na máquina. Se a máquina funcionasse perfeitamente, seguindo um programação infalível, não haveria possibilidade de mudança (quer dizer, de continuidade do processo de democratização).

Sim, para a mentalidade militar (tanto a espartana, no século 5 a. C., quanto a contemporânea), é quase insuportável ter de admitir que democracia é bagunça mesmo – é da sua essência -, quer dizer, é ordem emergente, não ordem top down, derivada do fluxo comando-execução.

A democracia não tem a ver com um modo seguro de governar. Frequentemente é um modo inseguro, confuso, difícil, imperfeito, sujo, curvo e – pasme-se – desnecessário (para os que não a desejam). Sim, ela apenas expressa um desejo: o de ser cidadão, não súdito, ou seja, o de não viver sob o jugo de um senhor (ainda que este senhor seja bom e honesto).

O fim (ou o sentido da política), para os democratas, não é a ordem (ou a segurança) e sim a liberdade. Militares não foram formados para isso e sim para fazer prevalecer uma ordem pregressa (a do Estado). Esta é a razão pela qual as democracias reservam para eles um papel de Estado (não de governo), protegido do dia a dia das disputas políticas (da politics própria dos governos).

Os militares com algum juízo que estiverem lendo este artigo deveriam pensar na possível armadilha em que caíram ou armaram para si mesmos.

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(*) No original: “Power tends to corrupt, and absolute power corrupts absolutely in such manner that great men are almost always bad men.” (Cf. Letter to Bishop Mandell Creighton, April 5, 1887. In Figgis, J. N. e Laurence, R. V. Historical Essays and Studies, London: Macmillan, 1907).

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