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Um professor de ciência política pode ser um semi-analfabeto democrático? James Miller prova que sim

James Miller, professor de ciências políticas na universidade The New School, de Nova York e autor de livros sobre a democracia concedeu uma entrevista às páginas amarelas da Veja (edição 2608 de 14/11/2018). Miller é uma prova viva de que professores universitários de democracia podem ser semi-analfabetos democráticos.

Para o autor, a democracia é uma espécie de poder (da maioria) do povo e não o poder de qualquer um. Isso beira ao majoritarismo. Ademais, ele pensa que pode haver democracia i-liberal (no sentido político do termo). Não pode. No sentido político do termo (liberal), a democracia é a política que tem como sentido a liberdade. E assim já era entre os atenienses que a inventaram pela primeira vez. Aliás, ao contrário do que ele afirma – inclusive citando Platão (que era um inimigo declarado da democracia), a democracia ateniense não ruiu em virtude da sua degeneração como ditadura da maioria. Miller chega ao cúmulo de apontar como um defeito da democracia grega o fato da “opinião dos cidadãos comuns” prevalecer “sobre a opinião baseada em conhecimento científico”. Ora… isso é tudo que um democrata não pode afirmar, pois detona os critérios de isologia, isonomia e isegoria no que tange às opiniões, que são o cerne da democracia. Se a opinião do sábio pudesse prevalecer sobre a opinião da pessoa comum, jamais teria havido democracia e caminharíamos para o governo dos sábios (de Platão).

Não há como negar. Para dizer tantas barbaridades é necessário ser um analfabeto (ou um semi-analfabeto, concedo) democrático, como James Miller.

Ainda vou fazer uma análise mais profunda do pensamento de Miller, depois de ler o seu livro (Can Democracy Work?). Por enquanto, fiquemos com esta entrevista infeliz.

Luz no fim do túnel

Cientista político americano sustenta que tensões provocadas por governos populistas podem fortalecer o ambiente democrático — e não necessariamente miná-lo

Por que o populismo nem sempre é ruim para a democracia? A democracia também floresce na forma de manifestações e votações furiosas, na forma de explosões de raiva contra as elites políticas, os inimigos ocultos, ou seja, governantes em geral. Essas explosões são essenciais para a vitalidade e a viabilidade da democracia moderna — ainda que essas insurreições desafiem o status quo. Podem ser momentos transformadores para a sociedade porque o cidadão exercita a participação política. As implicações de eleger governos populistas de direita ou de esquerda variam de país para país. Nos Estados Unidos, por exemplo, penso que a indignação contra as medidas de Donald Trump possa levar a mudanças positivas na política americana, como o próprio fortalecimento do Partido Democrata e das instituições liberais.

E quando essas “explosões de raiva” resultam em regimes autoritários? A mudança abre espaço para a entrada do cidadão comum no jogo político, que é a raiz da democracia. A insurreição armada parisiense de 10 de agosto de 1792, no início da Revolução Francesa, abriu caminho para a criação da primeira Constituição democrática, elaborada em grande parte por Condorcet e apresentada à Assembleia francesa em 1793. Essa revolta armada levou à derrubada da monarquia. As insurreições iniciadas na Rússia, em 1905, também provocaram transformações sociais e econômicas importantíssimas. Houve um breve período de democracia direta antes de os conselhos locais, em 1917, serem dominados pelos bolcheviques e, mais adiante, pelo Partido Comunista. Mais recentemente, em 2011, a Primavera Árabe na Tunísia e no Egito marcou outro movimento desse tipo, em que houve uma participação popular ativa. Independentemente do desfecho, esses movimentos provam a possibilidade de mudança para um regime mais aberto.

Mas líderes escolhidos durante manifestações furiosas também podem enfraquecer a democracia, não? Obviamente a eleição de outsiders como Trump, nos Estados Unidos, e Jair Bolsonaro, no Brasil, representa ameaça direta a várias instituições e valores liberais, que são representados pelas estruturas de Estado que garantem direitos iguais a todos os cidadãos e a liberdade da imprensa. Eles são, portanto, uma ameaça a uma democracia inclusiva. No entanto, nos dois países, há um sistema institucional complexo que serve justamente para impor limites a governos. Os liberais americanos estão travando uma batalha para impor esses limites ao governo Trump, até que, como eu espero, possam derrotá-lo na próxima eleição. Algo parecido pode acontecer no Brasil. De qualquer forma, cada sociedade tem de definir que tipo de democracia quer ter. As democracias liberais certamente estão ameaçadas hoje em dia.

É possível haver uma democracia que não defenda valores liberais? Para mim, o significado básico do conceito de democracia é a participação política dos cidadãos de uma sociedade no governo, ou o “poder do povo”. Como forma de governo, a democracia remonta à Grécia antiga, onde cidadãos comuns exercitavam a democracia direta. Ou seja, homens nascidos em Atenas que se reuniam em assembleia quarenta vezes por ano para fiscalizar o governo da cidade. Todos os postos da administração pública e da Justiça eram preenchidos por sorteio entre os cidadãos comuns. Na Revolução Francesa, a democracia envolveu a afirmação da soberania popular em uma série de insurreições armadas. Nos Estados Unidos, a democracia passou a significar uma república representativa com forte proteção das liberdades civis e da liberdade de imprensa, ou seja, uma democracia liberal. No mundo moderno, uma democracia, como entendo o termo, significa incorporar a vontade de um povo soberano. E um povo soberano pode tomar a decisão de ceder o poder a um governante autocrático, a um Parlamento ou a um governo formado por instituições de controle, como prevê a Constituição americana. Mas é preciso lembrar que não há consenso sobre a melhor forma de democracia. Os húngaros votaram esmagadoramente a favor de uma forma iliberal de democracia.

Por que a defesa de medidas claramente antidemocráticas não espanta eleitores? Os brasileiros que elegeram Bolsonaro fizeram o mesmo que os americanos que elegeram Trump. O desgosto com a corrupção dos partidos e políticos tradicionais fez com que as pessoas quisessem mudar o jogo, buscar uma cara nova, um outsider, independentemente das ideias que ele defenda. Ao bagunçarem o tabuleiro e assustarem as elites políticas estabelecidas, os eleitores têm a esperança de que algo possa mudar para melhor. Foi essa vontade que prevaleceu.

Alguns autores, como Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, ganharam notoriedade com a tese de que as democracias, hoje, são mais ameaçadas por políticos eleitos pelo voto do que por golpes. O senhor concorda? Não, porque acho que Levitsky e Ziblatt confundem liberalismo com democracia. Um povo soberano pode utilizar processos e instituições perfeitamente “democráticos” para eleger um autocrata, porque essa mesma sociedade pode querer ver instituições liberais enfraquecidas. Autocratas não gostam de ter restrições, que são bem definidas em democracias liberais, no exercício do poder. Mas um povo soberano pode muito bem escolher uma forma de governo autocrática, se assim desejar.

O senhor acha que democracias liberais podem se tornar incompatíveis com sociedades modernas?Às vezes esse modelo funciona, às vezes não. E, às vezes, como alertou John Adams, o segundo presidente americano, democracias cometem suicídio, abrindo caminho para a própria deterioração. É aí que nós, que somos livres para alertar nossos compatriotas dos riscos que eles correm ao entregar o poder a um ignorante, entramos em ação. E tocamos o alarme, votamos, brigamos pela democracia e esperamos o melhor. É preciso estar pronto para o que pode se tornar uma longa e tumultuada batalha para defender liberdades básicas contra inimigos autoritários.

Como uma democracia comete suicídio? Quando fez o comentário, John Adams tinha em mente a democracia ateniense antiga. Assim como o filósofo Platão e o historiador Tucídides, Adams acreditava que as instituições democráticas de Atenas foram as responsáveis pela derrota da cidade por Esparta na Guerra do Peloponeso. Ao dar poder a uma multidão de cidadãos que, durante a guerra, ajudaram a defender a cidade, a assembleia ateniense havia criado, na verdade, um novo tipo de tirania: a tirania coletiva da maioria. A opinião dos cidadãos comuns prevalecia sobre a opinião ba­sea­da em conhecimento científico. Segundo Platão, o domínio da vontade da maioria acabou espalhando a preguiça, a anarquia e o desperdício pela sociedade. Isso se tornou um problema epistemológico, já que essa maioria não tinha noção da verdade e nenhum padrão claro do que significava justiça. Essa democracia direta corrompeu até mesmo os inteligentes, levando-os a mudar políticas locais para ceder aos apelos das massas ignorantes. Isso fragilizou Atenas.

Para muitas pessoas, a democracia se tornou um conceito vago. Como estreitar o laço da sociedade com governantes sem incorrer no populismo? Ainda não vejo um modelo ideal para isso. Em grandes nações, como os Estados Unidos e o Brasil, é cada vez mais difícil que os cidadãos se sintam conectados com os governantes. É muita gente, e gente com interesses muito variados, em um ambiente com muita informação. Como Schumpeter (Joseph Schumpeter, 1883-1950, economista e cientista político austríaco) afirmou oitenta anos atrás, na prática, a democracia pode se tornar uma farsa em algumas sociedades liberais, por não representar os anseios do povo. Isso ocorreria, segundo Schumpeter, porque o povo tende a ser governado por políticos profissionais, que, em sua maioria, nutrem laços com as pessoas mais ricas e poderosas da sociedade, em vez de olhar para as necessidades do cidadão comum. Em uma república representativa como a americana, a maior parte das pessoas tem pouquíssimo poder de afetar a política, na realidade, considerando-se que os políticos são definidos por partidos, que nem sempre se constituem, internamente, em organizações muito democráticas. Esse modelo, muito comum no mundo ocidental, não é exatamente o melhor exercício do poder do povo, mas sim de governos de grupos específicos que se revezam no poder. Em muitos locais, o eleitor vem mostrando que está farto desse formato.

O segredo para melhorar a participação democrática não seria o cidadão comum se interessar mais por política? É o caminho. O cidadão comum tem de participar da vida política da sua cidade, do seu estado, da sua nação. Trata-se de um papel fundamental, no qual a educação interfere de forma importante. É difícil que pessoas sem o mínimo preparo consigam exercer seu poder dentro da sociedade, apesar do voto. Nas eleições, as pessoas votam, entre outras coisas, em quão tolerante e liberal deve ser a sociedade em que vivem. Elas escolhem se a imprensa terá liberdade de fato, se os direitos humanos serão respeitados, se as estruturas de poder serão fiscalizadas por órgãos de controle. Isso tudo define os limites de pluralismo em uma sociedade. Nos Estados Unidos, se as pessoas quiserem ter alguma influência sobre os políticos, não basta que apenas votem. Hoje, elas têm de ir além, como estar dispostas a participar de protestos e manifestações para ser ouvidas.

Qual a influência das novas tecnologias nisso tudo? No aspecto da participação, a tecnologia tem desempenhado um papel ambíguo, porque tanto pode tornar o eleitor cada vez mais distante do processo democrático, por meio da desinformação, o que é negativo, como também pode levá-­lo a engajar-se mais, informar-se mais, o que é positivo.

Publicado em VEJA de 14 de novembro de 2018, edição nº 2608

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