Nos últimos tempos ocorreram três ondas de expansão democrática que espalharam a democracia para mais localidades (países), como modo de administração política do Estado-nação. Essas ondas foram seguidas de ondas de autocratização, como a terceira onda de autocratização (1) na qual estamos imersos desde o final do século passado (acentuando-se na chamada recessão democrática, a partir de 2005, quando o número líquido de democracias em Estados-nações parou de crescer) (2).
Segundo uma leitura de Samuel Huntington (1991), houve até agora três ondas de democratização (3). A primeira onda de democratização ocorreu no período de 1828 a 1926. Foi uma onda longa, compreendendo mais da metade do século 19 e o pós-Primeira Guerra Mundial. Nessa primeira onda, recuando mais um pouco, podem ser incluídas as revoluções americana, francesa e haitiana, o desenvolvimento da democracia na Grã-Bretanha, as revoluções bolivarianas (originais) estabelecendo democracias na América do Sul, o desmembramento da Alemanha e a conversão dos impérios otomano e austro-húngaro, após a Primeira Guerra Mundial, em repúblicas democráticas.
Ela teria sido seguida por uma onda reversa (de autocratização), de 1922 a 1942, com o surgimento do fascismo, do nazismo (e, ainda que nem todos apontem isso, do stalinismo).
A segunda onda de democratização ocorreu de 1943 a 1962. Foi uma onda curta, iniciada após a Segunda Guerra Mundial. Na segunda onda destacam-se a reorganização das potências do eixo derrotadas – Alemanha, Itália e Japão – em fortes democracias, e a descolonização se desdobrando em todo o mundo, criando nações independentes democráticas.
Assim como ocorreu com a primeira onda, a desdemocratização também veio em seguida, entre 1958 e 1974, abrangendo o período da Guerra Fria e parte do regime militar brasileiro.
A terceira onda de democratização começou em 1975, com a Revolução dos Cravos em Portugal e a conversão de diversos regimes à democracia (em especial na América Latina e na África). Fazem parte desta terceira onda o fim das ditaduras de Espanha e Brasil, as transições democráticas em Taiwan e na Coréia do Sul, a queda do muro de Berlim e o colapso da URSS, criando estados livres e democráticos do Leste Europeu.
Samuel Huntington morreu em 2008 e não teve tempo de perceber e analisar a terceira onda reversa. Desde 1994 o mundo vem sendo novamente engolfado por uma grande onda de autocratização, com nações do ex-Pacto de Varsóvia, como Rússia, Hungria e outras voltando ao autoritarismo. De lá para cá observamos a ascensão dos populismos, tanto os ditos de esquerda, quanto os ditos de direita – na verdade, de extrema-direita.
Nesta terceira onda de autocratização está se formando um eixo autocrático contra as democracias liberais ou plenas, composto por Rússia, China, Índia, Irã, Síria, Coréia do Norte, Cuba, Venezuela, Nicarágua, Hungria, Turquia etc., configurando um bloco de uma segunda grande Guerra Fria.
Tem-se razões para acreditar que esse eixo composto por ditaduras, proto-ditaduras e democracias eleitorais parasitadas por populismos de direita ou de esquerda (como Argentina, México, Brasil, Bolívia), que são democracias defeituosas, regimes híbridos ou grandes países parcialmente livres (como Indonésia), é a maior ameaça global à democracia já vista na história.
Restaram no planeta – em dados de 2022 – apenas 32 democracias liberais (V-Dem) ou 24 democracias plenas (The Economist Intelligence Unit), nelas vive a minoria da população do planeta e elas não estão em expansão.
Impossível deixar de levantar aqui algumas questões:
Haverá uma quarta onda de democratização? Parece claro que, se não houver, será sinal de que a democracia desapareceu. Ou, colocando de modo inverso: o que é necessário fazer para que a democracia não desapareça – engolfada por uma terceira onda de autocratização que não se sabe quanto durará, nem quais países e regiões do mundo afetará e como – e possa então voltar, eventualmente modificada (e desejavelmente revigorada), numa quarta onda de democratização? Ou ainda, em outras palavras, como sobreviver ao tempo de escuridão que se anuncia (e que, na verdade, já começou)?
Para examinar essas questões vamos lançar mão de um exemplo histórico, mostrando como foi superada outra “idade das trevas”, que ocorreu na Europa entre os século 5 e 8 d.C.
Thomas Cahill (1995) (4) escreveu o livro Como os irlandeses salvaram a civilização, um fascinante e surpreendente relato de um episódio virtualmente ignorado nos anais da civilização ocidental. Entre a queda de Roma (476) e a ascensão de Carlos Magno (768) – período que ficou conhecido como a “Idade das Trevas” – o aprendizado, a erudição e a cultura simplesmente desapareceram do continente europeu. Foram três séculos de escuridão. O grande legado da civilização ocidental teria sido inteiramente perdido não fosse a intervenção crucial dos monges da Irlanda. A narrativa brilhante de Cahill detalha o papel fundamental dos irlandeses na preservação e transmissão da literatura clássica dos gregos e romanos. Enquanto o outrora vasto Império Romano se desintegrava em caos e ruína, durante o século 5, o analfabetismo tornou-se padrão, as grandes bibliotecas continentais desapareceram e o saber erudito deixou de existir. Trabalhando nas margens da Europa, na Irlanda, “ilha dos santos e estudiosos”, longe dos saques ocorridos no continente, os recém letrados escribas irlandeses começaram uma tarefa monumental: copiar cada pedaço da literatura ocidental que pudessem descobrir. Além de preservarem esta valiosa herança cultural, os monges irlandeses no exílio, inspirados por São Patrício, restabeleceram a leitura no continente, criando uma ponte crucial entre a Roma antiga e a Europa medieval. Os irlandeses, portanto, não apenas salvaram a civilização, mas se tornaram formadores da mentalidade medieval, colocando sua marca singular na cultura do Ocidente. Com algumas modificações este parágrafo reproduz uma breve resenha da Amazon.
Fica-se pensando se agora não está para acontecer algo semelhante com a democracia. Ainda que não seja possível salvá-la, stricto sensu, ou seja, mantê-la exatamente como é (ou foi) (5), serão as redes de liberais-inovadores que mantiverem vivas conversações democráticas sob a terceira onda de autocratização que impedirão que a democracia morra e possa então renascer – ou ser reinventada pela terceira vez – quando conseguirmos atravessar este tenebroso período.
Democracia, afinal, é um conjunto de conversações. Se pararmos de conversar sobre democracia, a democracia acaba. Para que tal não aconteça, os democratas liberais-inovadores (6) terão de configurar novos mundos glocais – em comunidades abertas de aprendizagem, de prática ou de projeto – em que seja possível manter conversações democráticas e atuar de acordo com elas, experimentando a democracia como modo-de-vida.
Se houver uma quarta onda de democratização, ela dependerá disso. Mas considerando que essa onda não será gerada por um evento único, de forma centralizada e nem simultânea e sim por um tempo que pode ser relativamente longo e de forma distribuída, parece claro que não sairá daí um (único) modelo de democracia e sim múltipos arranjos democráticos.
Questões para reflexão e conversação
Em que sentido pode-se dizer que a democracia é um conjunto de conversações? (7)
Por que os agentes (os “novos monges”) aos quais caberia manter acesa a chama da conversação democrática são aqui chamados de democratas liberais-inovadores? (8)
Por que não basta defender a democracia que temos, como modo político de administração do Estado, mas seria necessário experimentá-la também como modo de vida para alcançar as democracias que queremos? (9)
Notas
(1) Lührmann, Anna & Lindberg, Staffan (2019). Uma terceira onda de autocratização está aqui: o que há de novo nisso? Dagobah (07/03/2019) Cf. o original: A third wave of autocratization is here: what is new about it? Democratization, Volume 26, 2019 – Issue 7.
(2) Diamond, Larry (2015). Enfrentando a recessão democrática. Dagobah (13/01/2019). Cf. o original: Diamond, Larry (2015). Facing up to the democratic recession. Journal of Democracy Volume 26, Number 1 January 2015 © 2015 National Endowment for Democracy and Johns Hopkins University Press.
(3) Cf. Samuel P. Huntington (1991). Democracy’s Third Wave. Journal of Democracy Vol.2. No.2 Spring 1991.
(4) Cahill, Thomas (1995). Como os irlandeses salvaram a civilização. Rio de Janeiro: Objetiva, 1999.
(5) Franco, Augusto (2021). Não é possível salvar a democracia. Dagobah (25/01/2021).
(6) Franco, Augusto (2023). Democratas liberais inovadores. Dagobah (29/04/2023).
(7) Ver Maturana, Humberto & Verden-Zoller, Gerda (1993). Amar e Brincar: Fundamentos esquecidos do humano. São Paulo: Palas Athena Editora, 2009. Cf. a primeira parte do livro, intitulada Conversações Matrísticas e Patriarcais, em especial o capítulo 6.3.
(8) Cf. nota (6) supra.
(9) Cf. Franco, Augusto (2023). Como as democracias nascem: redescobrindo o papel inovador da democracia como regime político e como modo-de-vida. São Paulo: Casas da Democracia, 2023.