Diz-se que enquanto predominarem a forma Estado-nação e o sistema internacional do equilíbrio competitivo, os militares são necessários (ainda que existam países que não se desintegraram por não terem forças armadas como estamento regular, investido de uma missão ideológica, cultor de uma espécie de “religião da pátria”, que vai muito além do que é necessário para manter a coesão de uma corporação profissional – o que os militares deveriam ser).
Os militares coexistem com a democracia, mas não se pode dizer que, como cultura corporativa, sejam fervorosos convertidos à ela. Nos melhores casos, eles respeitam o Estado de direito e se conformam com o sistema representativo, sempre desconfiando da bagunça ou da baderna, da falta de comando e controle nos parlamentos (justo os parlamentos: as instituições, por excelência, da democracia), que mais parecem, aos seus olhos, feiras-livres onde mercadores, não raro sujos, desonestos e corruptos, procuram sempre levar vantagens em tenebrosas ou reprováveis transações. E isso porque sua cultura não consegue captar a essência da democracia, como regime vulnerável à auto-organização que só pode emergir do caos, da falta de um plano diretor, da falta de uma ordem top down, pre-estabelecida antes da interação propriamente política, à qual todos deveriam se curvar, enfim, da ausência de hierarquia, disciplina e obediência. A ideologia militar tem raiz hobbesiana, não spinoziana: não alcança conceber que o sentido da política seja a liberdade e não a ordem. E mesmo quando fazem política, os militares a fazem desconfiando da política e dos políticos. Eles reverenciam heróis, não pessoas comuns, sujas, curvas e imperfeitas. Eles querem a limpeza e a pureza, têm aversão à sujeira e à contaminação pelo contato com o que é impuro: os pátios dos quarteis têm que estar sempre limpos e brilhantes, assim como os dos conventos, com o trabalho inútil de recrutas e noviças, como no Lamento das Coisas de Augusto dos Anjos, limpos com “a dor da Força desaproveitada” – o que é, talvez, o principal sinal de autocratização da vida cotidiana. Por isso, quando admitem a democracia como sistema representativo, os militares dificilmente aderem à democracia como modo de vida.
As democracias, em contrapartida, aceitam a necessidade dos militares e toleram sua cultura (desde que eles não queiram inoculá-la em outros setores da sociedade, por exemplo, militarizando as escolas, os hospitais e outras instituições – inclusive os governos). Não por acaso, uma das cláusulas pétreas da democracia liberal é manter os militares sob estrito controle civil, ficando claro que o papel dos militares na política é muito simples: nenhum! Assim, quando militares, mesmo adotando vias legais – como as eleitorais – ocupam governos e parlamentos, infestando-os com um número exagerado de seus elementos, as democracias têm razões de sobra para acender o alerta amarelo. Não porque eles não possam ser bons técnicos, excelentes servidores, honestos, dedicados, capazes e fiéis e sim porque eles têm grandes chances de encarar a esfera pública como um espaço de exercício de comando e controle. Não é um problema de desvio de função e sim de fidelidade à missão que imaginam cumprir quando são mandados por alguma instância superior.
É claro que a cultura militar não é a da paz, mesmo quando alega se preparar para a guerra para conquistar a paz (“Si vis pacem, para bellum”) – o que é uma contradição em termos: se alguém se prepara para a guerra, está fazendo guerra, na medida em que a guerra existe (já o tinha percebido Hobbes em 1651) não quando o conflito violento está acontecendo, mas quando há preparação e disposição para tal, mesmo que eufemisticamente chamada de defesa, que é também guerra (pois toda guerra como instituição é, a rigor, preemptiva).
Na caserna, o emocionar guerreiro está presente, insuflando suas inevitáveis expressões hierárquicas e autocráticas: os padrões de organização nunca são em rede (mais distribuída do que centralizada) e os modos de regulação de conflitos nunca são democráticos. Isso é justificado instrumentalmente, pela necessidade de se estar preparado para a pronta-resposta em caso de ataque inimigo, o que exige linhas verticais de comando-execução (não de conversação, discussão e persuasão – que seriam pura perda de tempo e de eficácia). Mas na maior parte do tempo, em que não há inimigo à vista, representando ameaça real e iminente, esse tipo de comportamento também remanesce e prevalece. Daí que, se tomarmos a democracia como modo-de-vida e não apenas como modo de administração política do Estado, a cultura militar revela-se à ela avessa.
Eis o ponto. A ética (o ethos) e a estética (a aisthésis) militar denunciam a presença de padrões hierárquico-autocráticos próprios da cultura patriarcal. “Só pode mandar quem aprendeu a obedecer”, “indisciplina coletiva é erro de comando”, “o superior não erra nunca, a não ser por culpa única e exclusiva do subordinado”, “só os mortos conhecem o fim da guerra” (MacArthur), “nem o sacerdote, nem o soldado devem sentir as inquietações de dúvida” (Anatole France) – estes não são meros chistes para animar palestras de sensibilização para recrutas e sim linhas de código de uma programação (e, nessa medida, são pura doutrinação). Igualmente, as facas, as caveiras, as facas enterradas nas caveiras, as armas cruzadas, as tatuagens com armamentos e lemas de guerra, os capacetes e balaclavas, as roupas camufladas e os rostos enegrecidos de graxa ou carvão, os pés torturados por pesados coturnos (“ah!… se um pisasse em mim”) e os corpos suados e deformados por exercícios de marcha, o bodum que recende das barracas, os refrãos gritados (como se todos fossem surdos) para despertar emoções adversariais e pulsões de morte – tudo evoca, mais do que isso, invoca, um Homo Hostilis, um robô fabricado culturalmente pelo patriarcado, não o ser propriamente humano, o Homo Sapiens que se humanizou quando interagiu amigavelmente com o semelhante e desenvolveu um emocionar favorável à sua aceitação no próprio espaço de vida. Se o Sapiens, na sua longa caminhada de 150 mil anos sobre a Terra, não tivesse encarado o outro, o outro fortuito, o outro-imprevisível, como um possível parceiro, antes de vê-lo como um potencial inimigo, provavelmente não existiria mais espécie humana. A carícia, o sexo frontal e praticado por puro prazer, o conversar, o compartilhar o alimento, o colaborar se associando a outros para realizar um projeto comum nascido da congruência de seus desejos mútuos, nada disso evoca um ser inerentemente competitivo, nem atesta a existência de uma besta-fera primordial que supostamente carregássemos, quem sabe, no nosso cérebro límbico e que tivesse de ser domada pelo poder, pela religião ou pela civilização. Isso foi uma coisa ruim, uma ideia-implante que a cultura patriarcal carregou na nossa cabeça.
A questão central é sempre a emoção, o emocionar que predispõe à ação. O fundamental é o comportamento e não as ideias, as justificativas racionalizantes de que “o mundo é assim”, de que “a vida é uma luta”, de que se trata sempre de não-morrer ou de morrer por uma causa abstrata e inventada, por uma comunidade abstrata como “a pátria” – Patria O Muerte! gritavam os guerrilheiros castristas em Sierra Maestra – tudo para extrair o combustível do fervor patriótico que faz funcionar a fábrica de militantes e militares. Sim, os militantes e os militares, de qualquer orientação, religiosos ou políticos, se parecem tanto porque são, do ponto de vista dos padrões de interação com o mundo, o mesmo ente social. Como se sabe, ser militante é ser um soldado (que é a raiz etimológica da palavra militante, de militans, miles, soldado). A palavra, significativamente, surgiu no contexto religioso, da expansão da cristandade. Sim, porque a ideologia militar é religiosa, ainda que de uma religião laica, a religião da pátria. Eles se orgulham de ser patriotas, mas não sabem que o conceito de ‘pátria’ ou de ‘patriota’ foi inventado e usado pelos oligarcas que, rejeitando a democracia nascente em Atenas e as reformas de Clístenes, Efialtes e Péricles – que inventaram a primeira democracia -, queriam “voltar ao regime de nossos país”, ou seja, à autocracia dos psistrátidas ou até antes: daí o termo ‘patriota’ e ‘pátria’ (de pai). Os patriotas preferiam a tirania de Psístrato, Hiparco e Hípias. Mais uma evidência de que a ideologia militar não se dá muito bem com a democracia.
Argumenta-se que tudo isso é necessário para bem defender a pátria e ter êxito na guerra (contra os inimigos da pátria). Mas mesmo essa justificativa é falsa. A narrativa de que – além do conhecimento profissional das armas (lato sensu) – o modo de vida e convivência social disciplinado pela ideologia militar são necessários para a guerra (tomada por inevitável – ou por uma realidade eterna, presente na vida natural e fundante da vida social, quando não organizadora do próprio cosmos – pela mentalidade militar) é pura ideologia que não se sustenta diante da confrontação com exemplos históricos sólidos. Esparta também argumentava assim contra Atenas, mas as guerras em que a democracia ateniense se envolveu mostraram que aquele povo – ao ver dos machões patriarcais espartanos, indisciplinado, efeminado e despreparado para o comando e para a luta – saiu-se algumas vezes até melhor em combate do que os autocratas de Esparta. Um dos exemplos é o citado por Esquilo em Os Persas (472 AEC): o da batalha de Salamina (480 AEC). Mas há também o da batalha de Maratona (490 AEC), onde “os veadinhos de Atenas”, o verdureiro e o peixeiro, o escritor e o poeta, essas pessoas comuns, desobedientes, não militarizadas, em reduzido número de 10 mil, venceram mais de 25 mil invasores persas, sem qualquer ajuda dos heróis de Esparta (que lhes negaram socorro sob pretextos religiosos: a tal “religião da pátria” – o culto do Estado – que continua até hoje servindo de base ideológica para o militarismo). Se militares profissionais são necessários, dada a configuração atual do mundo, o militarismo como ideologia não o é – e sim prejudicial à democracia e à paz, servindo os militares por ela possuídos como difusores de inimizade no mundo.
Todos esses ritos, liturgias, símbolos e dogmas militares têm, na verdade, outra função: suscitar um tipo de emocionar que gera separação, alimentar o espírito de corpo – fidelidade e lealdade para com os “de dentro” e desconfiança e ânimo adversarial em relação aos “de fora” – e ensejar comportamentos que deformam o campo social, configurando ambientes avessos às redes e à democracia. Como foi dito no início deste artigo, a existência de uma ordem militar permanente – não apenas como uma instituição profissional, mas investida de uma missão ideológica, cultora da “religião da pátria” – militariza, quer dizer, hierarquiza a sociedade, imola a liberdade no altar da segurança, tornando os modos de convivência social mais verticais, mais adversariais, mais preconceituosos, mais intolerantes. Não têm a ver com um inimigo concreto (que às vezes nem existe, a não ser que encaremos, como faz a mentalidade autocrática, o outro, qualquer outro, como inimigo, pelo fato de sua simples existência, sendo diferente da nossa, ser uma ameaça ao nosso modo de vida). Assim como a guerra não objetiva matar pessoas (um efeito colateral) e sim manter os inimigos como inimigos (sem o que desconstitui-se o próprio conceito de defesa, que é guerra preemptiva), a vibração militar é uma sanha para matar a rede. Faz parte das grandes rotinas de recuperação da programação hierárquica do mundo e, nesse sentido, tenta retirar a base social – os padrões mais distribuídos do que centralizados de organização – que permite à democracia florescer e perdurar, ainda que ela nunca surja sem política.