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Comentários a ‘O Fascínio de Platão’ de Karl Popper – Capítulo 10

No dia 25 de março de 2019 os inscritos no programa Novos Pensadores começaram a se debruçar sobre o primeiro volume de A Sociedade Aberta e Seus Inimigos, de Karl Popper (1945), intitulado O Fascínio de Platão.

Entender as razões do fascínio de Platão é fundamental para a aprendizagem democrática.

Como uma canja para os que não estão fazendo o programa vamos publicar aqui os textos originais de Popper – com destaques em vermelho e os comentários provocativos em azul – que geraram conversações democráticas entre os participantes do curso.

Já publicamos os comentários à Introdução do primeiro volume. E também os comentários aos dois primeiros capítulos. E, em seguida, os comentários ao terceiro capítulo e os comentários ao quarto capítulo. E os comentários ao capítulo 5 e ao capítulo 6 e ao capítulo 7. E também o capítulo 8. E o capítulo 9. Segue abaixo o capítulo 10 (o último do primeiro volume).

PRIMEIRA PARTE

O FASCÍNIO DE PLATÃO

Em favor da Sociedade Aberta (cerca de 430 a. C.):

“Embora somente poucos possam dar origem a uma politica, somos todos capazes de julgá-la”.

Péricles de Atenas

Contra a Sociedade Aberta (cerca de 80 anos depois):

“O maior de todos os princípios é que ninguém, seja homem ou mulher, deve carecer de um chefe. Nem deve a mente de qualquer pessoa ser habituada a permitir-lhe fazer ainda que a menor coisa por sua própria iniciativa, nem por zelo, nem mesmo por prazer. Na guerra como em meio à paz, porém, deve ela dirigir a vista para seu chefe e segui-lo fielmente. E mesmo nas mais ínfimas questões deve manter-se em submissão a essa chefia. Por exemplo, deve levantar-se, ou mover-se, ou lavar-se, ou tomar refeições… apenas se lhe for ordenado que o faça. Numa palavra, deve ensinar sua alma, por hábito prolongado, a nunca sonhar em agir independentemente e a tornar-se totalmente incapaz disso”.

Platão de Atenas

CAPÍTULO 10

A SOCIEDADE ABERTA E SEUS INIMIGOS

Ele nos restituirá nossa natureza original,
curar-nos-á e tornar-nos-á felizes e abençoados.

Platão

Falta ainda alguma coisa em nossa análise. A afirmação de que o programa político de Platão é puramente totalitário e as objeções a essa afirmação que foram levantadas no capítulo 6 levaram-nos a examinar o papel desempenhado, nesse programa, por ideias morais tais como as de Justiça, Sabedoria, Verdade e Beleza. O resultado de tal exame foi sempre o mesmo. Verificamos que o papel dessas ideias é importante, mas que elas não levam Platão além do totalitarismo e do racismo. Uma dessas ideias, porém, temos ainda de examinar: a de Felicidade. Deve-se lembrar que citamos Crossman em relação com a crença de que o programa político de Platão é fundamentalmente um “plano para a edificação de um estado perfeito, em que cada cidadão seja realmente feliz”, e descrevi essa crença como um resquício da tendência para idealizar Platão. Se chamado a justificar minha opinião, não teria muita dificuldade em apontar que o tratamento dado por Platão à felicidade é exatamente análogo ao que dá à justiça; e especialmente que é baseado na mesma crença de ser a sociedade, “por natureza”, dividida em classes ou castas. A verdadeira felicidade (1), insiste Platão, só se realiza pela justiça, isto é, conservando cada qual o seu lugar. O governante deve encontrar felicidade em governar, o guerreiro em guerrear e, podemos inferir, o escravo em ser escravizado. Fora disto, Platão diz frequentemente que não está visando nem à felicidade dos indivíduos nem à de qualquer classe em particular do estado, mas apenas à felicidade do todo, e isto, argumenta, nada mais é do que o resultado daquela regra de justiça que já mostrei ser de caráter totalitário. Uma das principais teses da República é a de que somente esta justiça pode conduzir a qualquer felicidade verdadeira.

Em vista de tudo isso, parece ser uma interpretação consistente e dificilmente refutável da matéria a apresentação de Platão como um político partidário totalitário, infeliz em seus empreendimentos imediatos e práticos, mas, ao longo do tempo, apenas feliz em demasia (2) em sua propaganda para sustar e derrubar uma civilização que odiava. Basta, porém, que se coloque a questão desse modo rude para que se sinta haver algo seriamente perdido com essa interpretação. De qualquer forma, foi o que senti quando a formulei. Senti, talvez, não tanto que era inverídica, mas que era defeituosa. Comecei, portanto, a procurar provas que refutassem tal interpretação (3). Contudo, em todos os pontos, menos um, essa tentativa de refutar minha interpretação não teve o menor êxito. O novo material obtido apenas tomou mais manifesta a identidade entre o platonismo e o totalitarismo.

O único ponto em que achei que minha busca de uma refutação tivera sucesso referia-se ao ódio de Platão à tirania. Sem dúvida, sempre havia a possibilidade de dar a isso outra explicação. Poderia ser facilmente dito que sua condenação da tirania era mera propaganda. Muitas vezes o totalitarismo proclama amor pela “verdadeira” liberdade e o louvor de Platão à liberdade, como oposta à tirania, soa exatamente como esse proclamado amor. Apesar disso, achei que certas observações suas sobre a tirania (4), que serão mencionadas mais adiante neste capítulo, eram sinceras. Sem dúvida, o fato de que “tirania”, no tempo de Platão, costumeiramente significava uma forma de governo baseada no apoio das massas, tornava possível proclamar que o ódio de Platão à tirania era consistente com a minha interpretação original. Senti, porém, que isso não afastava a necessidade de modificar minha interpretação. E senti ainda que a simples acentuação sobre a sinceridade fundamental de Platão era de todo insuficiente para que tal modificação se efetuasse. Nenhuma acentuação pode apagar a impressão geral do quadro. Necessário era um quadro novo, que teria de incluir a crença sincera de Platão em sua missão como curador do corpo social enfermo, assim como o fato de haver ele visto, mais claramente do que ninguém, antes ou depois dele, o que acontecia à sociedade grega. Visto como a tentativa de rejeitar a identidade do platonismo com o totalitarismo não melhorara o quadro, vi-me por fim forçado a modificar minha interpretação do próprio totalitarismo. Em outras palavras, minha tentativa de compreender Platão por analogia com o totalitarismo moderno levou-me, para minha própria surpresa, a modificar minha concepção do totalitarismo. Não modificou minha hostilidade, mas acabou por levar-me a ver que a força dos movimentos totalitários, o antigo como o novo, repousava no fato de que eles tentavam dar resposta a uma necessidade muito real, não importa quão mal concebida possa ter sido essa tentativa (5).

À luz de minha nova interpretação, parece-me não ser simplesmente propaganda a declaração de Platão sobre seu desejo de tornar felizes o estado e seus cidadãos. Estou pronto a admitir sua benevolência fundamental (6). Admito também que ele estava certo, em limitada extensão, na análise sociológica em que baseou esta promessa de felicidade. Para fixar mais precisamente o ponto: acredito que Platão, com profunda visão sociológica, verificou que seus contemporâneos sofriam sob severa tensão, e que essa tensão era devida à revolução social que começara com o surgimento da democracia e do individualismo. Teve ele êxito em descobrir as principais causas de sua infelicidade profundamente arraigada — a mudança social e a dissenção social — e fez o máximo para combatê-las. Não há razão para duvidar de que um de seus mais poderosos motivos era a reconquista da felicidade para os cidadãos. Por motivos que discutirei depois neste capítulo, acredito que o tratamento médico-político que ele recomendava, a detenção da mudança e a volta ao tribalismo, era desesperadamente errado. Mas a recomendação, embora impraticável como terapêutica, dá testemunho da capacidade de diagnóstico de Platão. Mostra que ele sabia o que estava deslocado, que compreendia a tensão, a infelicidade que o povo experimentava, ainda que errasse na sua afirmação fundamental de que, reconduzindo-os ao tribalismo, poderia diminuir a tensão e restaurar-lhes a felicidade.

Note-se que a felicidade como objetivo comparece sempre em todas as distopias, desde A Nova Utopia, de Jerome K. Jerome (1891), passando pelo Nós, de Yevgeny Zamyatin (1921), pelo Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley (1932), até chegar ao Fahrenheit 451, de Ray Bradbury (1953). Colocar a felicidade, promovida pelo Estado, no lugar da liberdade, conquistada ou construída pelos cidadãos, leva necessariamente à autocracia.

É minha intenção dar neste capítulo um exame muito breve do material histórico que me induziu a sustentar tais opiniões. Algumas observações críticas sobre o método adotado, o da interpretação histórica, serão encontradas no último capítulo do livro. Bastará dizer aqui, portanto, que não reclamo uma qualificação científica para esse método, visto como as provas de uma interpretação histórica nunca podem ser tão rigorosas como as de uma hipótese ordinária. A interpretação é principalmente um ponto de vista, cujo valor reside em sua fertilidade, em sua força de lançar luz sobre o material histórico, para levar-nos a encontrar novo material e para ajudar-nos a racionalizá-lo e unificá-lo. O que vou aqui dizer, em consequência, não se entende como asserção dogmática, por mais audaciosamente que por vezes eu possa expressar minhas opiniões.

I

Nossa civilização ocidental teve origem com os gregos. Foram eles, parece, os primeiros a dar o passo do tribalismo para o humanitarismo. Consideremos o que isso significa.

A primitiva sociedade tribal grega assemelha-se, em muitos aspectos, à de povos como os Polinésios, os Maoris por exemplo. Pequenos bandos de guerreiros, normalmente vivendo em postos fortificados, governados por chefes tribais ou reis, ou por famílias aristocráticas, travavam guerra uns contra os outros, no mar assim como em terra. Havia, sem dúvida, muitas diferenças entre os modos de vida gregos e os polinésios, pois, é sabido, não há uniformidade no tribalismo. Não há um “modo tribal de vida” padronizado. Parece-me, contudo, que certas características podem ser encontradas na maioria dessas sociedades tribais, se não em todas elas. Refiro-me à sua atitude mágica ou irracional para com os costumes da vida social e à correspondente rigidez desses costumes.

Deve-se entender aqui por tribal o tribalismo patriarcalista dório de alguns gregos, como os espartanos e os cretenses. Popper quer se referir à cultura patriarcal do tribalismo dório e não ao tribalismo em geral, não-patriarcal, como o dos povos paleolíticos (nossos indígenas, por exemplo), onde há atitude mágica ou irracional, por certo, mas não há nenhum tipo de aristocracia, oligarquia ou tirania – ou seja, não há hierarquia, nem autocracia.  Se esta interpretação estiver errada, ou seja, se Popper estiver se referindo a qualquer tribalismo, então é ele que está errado.

A atitude mágica para com o costume social já foi discutida antes. Seu elemento principal é a falta de distinção entre as regularidades costumeiras ou convencionais da vida social e as encontradas na “natureza”; e isto muita vez vai ao lado da crença de que ambas são impostas por uma vontade sobrenatural. A rigidez dos costumes sociais provavelmente é, na maioria dos casos, apenas outro aspecto da mesma atitude. (Há certas razões para crer que este aspecto é mesmo mais primitivo e que a crença sobrenatural é uma espécie de racionalização do medo de mudar uma rotina — medo que podemos encontrar em criancinhas.) Quando falo da rigidez do tribalismo, não quero dizer que não possam ocorrer mudanças nos modos de vida tribais. Quero antes dizer que as mudanças relativamente infrequentes têm o caráter de conversões ou reações religiosas, ou de introdução de novos tabus mágicos. Não se baseiam numa tentativa racional de melhorar as condições sociais. Fora dessas mudanças — que são raras — os tabus regulam e dominam rigidamente todos os aspectos da vida. Não deixam muitos buracos. Nessa forma de vida, são poucos os problemas e nenhum realmente equivalente aos problemas morais. Não quero dar a entender com isso que um membro da tribo não necessita muitas vezes de grande heroísmo e paciência para agir de acordo com os tabus. Digo é que ele raramente se encontrará em situação de duvidar de como deve agir. O modo reto é sempre determinado, embora, para segui-lo, dificuldades devam ser superadas. É determinado pelos tabus, pelas mágicas instituições tribais, que nunca podem ser objeto de consideração crítica. Nem mesmo um Heráclito distingue claramente entre as leis institucionais da vida tribal e as leis da natureza; ambas são consideradas como tendo o mesmo caráter mágico. Baseadas na tradição tribal coletiva, as instituições não deixam campo à responsabilidade pessoal. Os tabus que estabelecem certa forma de responsabilidade de grupo podem ser os precursores do que chamamos responsabilidade pessoal, mas diferem fundamentalmente dela. Não se baseiam num princípio de explicabilidade razoável, mas antes em ideias mágicas, como a de apaziguar as forças do destino.

É bem sabido quanto disto ainda sobrevive. Nossos próprios modos de vida são ainda obstruídos de tabus: tabus alimentares, tabus de polidez e muitos outros. E, contudo, há certas diferenças importantes. Em nosso próprio meio de vida existe, entre as leis do estado de um lado e os tabus que habitualmente observamos do outro, um campo sempre ampliado de decisões pessoais, com seus problemas e responsabilidades; e conhecemos a importância desse campo. As decisões pessoais podem levar à alteração dos tabus, e mesmo das leis políticas que já não são mais tabus. A grande diferença é a possibilidade de reflexão racional sobre esses assuntos. A reflexão racional começa, de certo modo, com Heráclito (6). Com Alcmeon, Faleias e Hipódamo, com Heródoto e os sofistas, a busca da “melhor constituição” assume, gradualmente, o caráter de um problema que pode ser racionalmente discutido. E, em nosso próprio tempo, muitos tomamos decisões pessoais relativamente à desejabilidade ou não de nova legislação e de outras alterações institucionais, isto é, decisões baseadas numa avaliação das consequências possíveis e numa preferência consciente por algumas delas. Reconhecemos a responsabilidade pessoal racional.

A seguir, chamaremos também a sociedade mágica, tribal ou coletivista, sociedade fechada; e a sociedade em que os indivíduos são confrontados com decisões pessoais chamaremos sociedade democrática.

Aqui seria preciso dizer que essa contraposição mágica-tribal-coletivista-fechada x democrática-racional-individualista-aberta é insuficiente como esquema interpretativo. O que se opõe à democracia não é o fato da sociedade ser mágica (não-racional), tribal (não-estatal), coletivista (não-individualista) e sim o fato dela ser hierárquica e autocrática. Os Ianomâmis vivem numa sociedade mágica, tribal e coletivista e não são contra a democracia (nem a favor), justamente porque não são uma sociedade hierárquica e autocrática. Talvez Popper não tenha entendido completamente que a democracia é um processo de desconstituição de autocracia. Ela só surgiu em Atenas, na passagem do século 6 para o século 5 a.C. porque havia autocracia em todo lugar: na Ática, em Esparta e Creta e, inclusive em Atenas (a tirania dos psistrátidas).

Uma sociedade fechada, no seu aspecto mais completo, pode ser justamente comparada a um organismo. A chamada teoria orgânica ou biológica do estado pode ser-lhe aplicada em considerável extensão. Uma sociedade fechada se assemelha a uma horda ou tribo por ser uma unidade semi-orgânica cujos membros são mantidos juntos por laços semi-orgânicos — parentesco, coabitação, participação nos esforços comuns, nos perigos comuns, nas alegrias e aflições comuns. É ainda um grupo concreto de indivíduos concretos, relacionados uns com os outros não só por abstratas relações sociais tais como a divisão do trabalho e o intercâmbio de utilidades, como por concretas relações físicas, tais como o tacto, o olfato, a vista. E embora tal sociedade possa ser baseada na escravidão, a presença de escravos não precisa criar um problema fundamentalmente diferente do dos animais domésticos. Faltam, assim, aqueles aspectos que tornam impossível aplicar a teoria orgânica, com sucesso, a uma sociedade democrática.

Os aspectos que tenho em mente prendem-se ao fato de que, numa sociedade democrática, muitos membros lutam por elevar-se socialmente e tomar os lugares de outros membros. Isto pode levar, por exemplo, a um fenômeno social tão importante como a luta de classes. Não podemos encontrar nada de parecido à luta de classe num organismo. As células ou tecidos de um organismo, que muitas vezes se diz corresponderem aos membros de um estado, talvez possam competir por alimento; mas não há tendência inerente da parte das pernas para se tornarem cérebro, nem dos outros membros do corpo para se transformarem em barriga. Visto como nada há no organismo que corresponda a uma das características mais importantes da sociedade democrática, a competição por posição entre seus membros, a chamada teoria orgânica do estado baseia-se numa falsa analogia. A sociedade fechada, por outro lado, não conhece muito tais tendências. Suas instituições, incluindo suas castas, são sacrossantas — tabus. A teoria orgânica não cabe tão mal aí. Não é, portanto, de surpreender que muitas tentativas de aplicar a teoria orgânica à nossa sociedade sejam formas veladas de propaganda para um retorno ao tribalismo (7).

Como consequência da perda do caráter orgânico, uma sociedade democrática pode tomar-se gradualmente o que eu gostaria de chamar “sociedade abstrata”. Pode ela, em considerável extensão, perder o caráter de um grupo concreto de homens, ou de um sistema de tais grupos concretos. Este ponto, que raras vezes tem sido compreendido, pode ser explicado por meio de um exagero. Poderíamos conceber uma sociedade em que os homens praticamente nunca se encontrassem face a face, em que todos os negócios fossem conduzidos por indivíduos isolados, a se comunicarem por cartas datilografadas ou telegramas e a andarem em automóveis fechados. (A inseminação artificial permitira mesmo a propagação da espécie sem um elemento pessoal.) Essa sociedade fictícia poderia ser denominada uma “sociedade completamente abstrata ou despersonalizada”. Ora, o interessante é que nossa sociedade moderna se assemelha em muitos de seus aspectos a essa sociedade completamente abstrata. Embora nem sempre viajemos sós em automóveis fechados (mas nos encontremos de rosto com milhares de pessoas que passam por nós nas ruas), o resultado é quase o mesmo como se o fizéssemos; não estabelecemos em regra qualquer relação pessoal com os nossos semelhantes pedestres. Semelhantemente, o fato de ser membro de um sindicato não significa mais do que a posse de uma carteira de associado e o pagamento de uma contribuição a um secretário desconhecido. Muitas pessoas vivem numa sociedade moderna sem ter, ou só tendo extremamente poucos, contatos pessoais íntimos, vivendo no anonimato e no insulamento e, consequentemente, na infelicidade. Pois, embora a sociedade se tenha tornado abstrata, a configuração biológica do homem não mudou muito; os homens têm necessidades sociais que não podem satisfazer numa sociedade abstrata.

Será? O que diria Popper se vivesse num mundo (como o atual) de internet e mídias sociais?

Sem dúvida, nosso quadro, mesmo desta forma, é altamente exagerado. Nunca haverá, nem poderá haver, uma sociedade completamente ou mesmo predominantemente abstrata — assim como não pode haver uma sociedade completamente ou predominantemente racional. Os homens ainda formam grupos concretos, têm contatos sociais concretos de toda espécie, e tentam satisfazer suas necessidades sociais emocionais do melhor modo que podem. Mas, na maior parte, os grupos sociais concretos de uma sociedade democrática moderna (com exceção de alguns felizes grupos familiares) são pobres substitutos, visto como não dão razão a uma vida comum. E muitos deles não têm qualquer função na vida da sociedade em geral.

Outro modo pelo qual é exagerado o quadro é o fato de que ele, até aí, não contém qualquer das vantagens obtidas, mas só as perdas. Há, porém, vantagens. Relações entre pessoas de nova espécie podem surgir onde possam ser livremente travadas, em vez de serem determinadas pelos acidentes de nascimento; e, com isto, surge um novo individualismo. Da mesma forma, os laços espirituais podem desempenhar um papel mais importante, onde se enfraqueçam os laços biológicos ou físicos, etc. Seja como for, espero que nosso exemplo tenha tomado claro o que entendo por uma sociedade mais abstrata, em contraposição a um grupo social mais concreto; terá tomado claro ainda, que nossa moderna sociedade democrática funciona amplamente por meio de relações abstratas, tais como as do intercâmbio ou da cooperação. (É com a análise dessas relações abstratas que principalmente ocupa a moderna teoria social, assim como a teoria econômica. Este ponto não tem sido entendido por muitos sociólogos, tais como Durkheim, que nunca abandonou a crença dogmática de que a sociedade deve ser analisada em termos de grupos sociais concretos.)

À luz do que foi dito, vê-se bem que a transição da sociedade fechada para a aberta pode ser descrita como uma das mais profundas revoluções por que passou a humanidade. Em vista do que descrevemos como o caráter biológico da sociedade fechada, deveras profundamente sentida deve ter sido essa transição. Assim, quando dizemos que nossa civilização ocidental procede dos gregos, devemos compreender o que isso significa. Quer dizer que os gregos começaram para nós aquela grande revolução que, parece, ainda está no início: a transição da sociedade fechada para a aberta.

II

Esta revolução, sem dúvida, não foi feita conscientemente. A queda do tribalismo, das sociedades fechadas da Grécia, pode ser rastreada ao tempo em que o crescimento da população começou a fazer-se sentir em meio à classe dirigente dos proprietários de terras. Isto significou o fim do tribalismo “orgânico”. De fato, criou uma tensão social no interior da sociedade fechada da classe dominante. A princípio, pareceu haver algo como uma solução “orgânica” para esse problema, a criação de cidades filiadas. (O caráter orgânico desta solução foi sublinhado pelos processos mágicos seguidos no envio de colonos.) Mas este ritual de colonização apenas adiou o desmoronamento. Criou mesmo novos focos de perigo, onde quer que conduziu a contatos culturais; e estes, por sua vez, criaram o que foi, talvez, o pior perigo para a sociedade fechada: o comércio, uma nova classe empenhada no tráfico e na navegação. Por volta do sexto século antes de Cristo, esse desenvolvimento chegara à dissolução parcial dos antigos modos de vida e mesmo a uma série de revoluções e reações políticas. E não só levara a tentativas para reter e deter o tribalismo pela força, como em Esparta, como também à grande revolução espiritual, a invenção da discussão crítica e, em consequência, de um pensamento liberto de obsessões mágicas. Ao mesmo tempo, encontramos os primeiros sintomas de uma nova inquietação. A tensão da civilização começava a ser sentida.

Esta tensão, esta inquietação é uma consequência do desmoronamento da sociedade fechada, é ainda sentida mesmo em nossos dias, especialmente em tempos de mudança social. É a tensão criada pelo esforço que a vida em uma sociedade aberta e parcialmente abstrata continuamente exige de nós, — pelo afã de ser racionais, de superar pelo menos algumas de nossas necessidades sociais emocionais, de cuidar de nós mesmos e de aceitar responsabilidades. Em minha opinião, devemos suportar esta tensão como o preço pago pelo incremento de nossos conhecimentos, de nossa razoabilidade, de cooperação e ajuda mútua e, em consequência, de nossas possibilidades de sobrevivência e do vulto da população. É o preço que temos de pagar por sermos humanos.

Essa tensão relaciona-se mais estreitamente com o problema do estremecimento entre as classes, que pela primeira vez surgiu com o desmoronamento da sociedade fechada. Esta não conhecia tal problema. Pelo menos para seus membros dirigentes, a escravidão, a casta e o governo de classe eram “naturais”, no sentido de serem indiscutíveis. Mas, com a queda da sociedade fechada, esta certeza desaparece e, com ela, todo sentimento de segurança. A comunidade tribal (e mais tarde a “cidade”) é o lugar de segurança para o membro da tribo. Rodeado de inimigos e de forças mágicas perigosas ou mesmo hostis, ele considera a comunidade tribal como uma criança considera sua família e seu lar, no qual desempenha sua parte definida, uma parte que conhece bem e desempenha bem.

Esta expressão “rodeado de inimigos” é infeliz. Inimigos são construções políticas (ou antipolíticas), não realidades sociológicas. 

A queda da sociedade fechada, ao erguer os problemas de classe e outros de situação social, deve ter tido sobre os cidadãos o mesmo efeito de uma séria disputa de família; e o rompimento da família é susceptível de refletir-se nos filhos (8). Sem dúvida, essa espécie de tensão era sentida pelas classes privilegiadas, agora que se viam ameaçadas, mais fortemente do que por aquelas que anteriormente haviam sido suprimidas; mas mesmo estas últimas sentiam-se inquietas. Também as amedrontava o desmoronamento de seu mundo “natural”. E embora continuassem a travar sua batalha, muitas vezes relutavam em explorar suas vitórias sobre as classes inimigas que eram sustentadas pela tradição, pelo status quo, por um nível mais elevado de educação e por um sentimento de natural autoridade.

A esta luz devemos tentar compreender a história de Esparta, que com sucesso tentou paralisar esses desenvolvimentos, e a de Atenas, a democracia condutora.

Talvez a mais poderosa causa da queda da sociedade fechada tenha sido o desenvolvimento das comunicações marítimas e do comércio. O estreito contacto com outras tribos é susceptível de minar o sentimento de necessidade com que são encaradas as instituições tribais; e o comércio a iniciativa comercial, parece ser uma das poucas formas pelas quais a iniciativa individual e a independência podem afirmar-se mesmo numa sociedade em que ainda prevalece o tribalismo (9). Estas duas coisas, navegação e comércio, tomaram-se as principais características do imperialismo ateniense, tal como se desenvolveu no século 5 antes de Cristo. E, na verdade, eram reconhecidos como os desenvolvimentos mais perigosos pelos oligarcas, os membros das classes privilegiadas, ou primitivamente privilegiadas, de Atenas. Tomou-se claro para eles que o tráfico de Atenas, seu comercialismo monetário, sua política naval e suas tendências democráticas eram partes de um só movimento, sendo impossível derrotar a democracia sem ir às raízes do mal e destruir tanto a política naval como o império. Mas a política naval de Atenas baseava-se em seus portos, especialmente o Pireu, centro do comércio e bastião do partido democrático; e, estrategicamente, nos muros que fortificavam Atenas e, mais tarde, nas Grandes Muralhas que a ligaram aos portos do Pireu e de Falero. Em consequência, vemos que durante mais de um século o império, a esquadra, o posto e os muros foram odiados pelos partidos oligárquicos de Atenas como os símbolos da democracia e como as fontes de seu vigor, que um dia eles esperavam destruir.

Muita prova desse desenvolvimento pode ser encontrada na História da Guerra do Peloponeso, de Tucídides, ou antes, das duas grandes guerras de 431-421 e 419-403 a. C. entre a democracia ateniense e a paralisada oligarquia tribalista de Esparta. Ao lermos Tucídides, não nos devemos esquecer de que seu coração não estava com sua cidade natal, Atenas. Embora ele aparentemente não pertencesse à ala extremada das organizações oligárquicas atenienses que conspiravam durante toda a guerra com o inimigo, era por certo membro do partido oligárquico, não sendo amigo nem do povo ateniense, o demos, que o exilara, nem de sua política imperialista. (Não pretendo diminuir Tucídides, talvez o maior historiador que já existiu. Por muito, porém, que se tenha certificado dos fatos registrados e por sinceros que tenham sido seus esforços por manter-se imparcial, seus comentários e julgamentos morais representam uma interpretação, ura ponto de vista, e nisto não precisamos de concordar com ele.) Cito primeiramente parte de uma passagem em que se descreve a política de Temístocles no ano 482 a. C, meio século antes da Guerra do Peloponeso: “Temístocles persuadiu 0s atenienses, também, a concluírem o Pireu… Visto como os atenienses então se haviam lançado ao mar, pensou que esta era a grande oportunidade para deitar as bases de um império. Foi ele o primeiro que se atreveu a dizer que deveriam fazer do mar o seu domínio” (10). Vinte e cinco anos depois, “os atenienses começaram a construir suas grandes muralhas para o mar, uma para o porto de Falero e outra para o Pireu” (11). Mas desta vez, vinte e seis anos antes da irrupção da Guerra do Peloponeso, o partido oligárquico tinha plena consciência do significado desses novos desenvolvimentos. Diz-nos Tucídides que não recuaram sequer ante a mais escancarada traição. Como às vezes sucede com os oligarcas, seus interesses de classe foram mais fortes do que seu patriotismo. Uma oportunidade se lhes apresentou quando uma força espartana inimiga começou a incursionar no norte de Atenas; então decidiram conspirar com Esparta contra seu próprio país. Tucídides escreve: “Certos atenienses começaram privadamente a fazer-lhes (aos espartanos) algumas propostas, na esperança de que pusessem fim à democracia e à construção das Grandes Muralhas. Mas os demais atenienses suspeitaram… de seus desígnios contra a democracia”. Os leais cidadãos atenienses, portanto, saíram a enfrentar os espartanos, mas foram derrotados. Parece, contudo, que enfraqueceram o inimigo suficientemente para impedir que ele juntasse forças com os quinta-colunistas de dentro da própria cidade. Alguns meses mais tarde, as Grande Muralhas foram terminadas, o que significava que a democracia podia gozar de segurança enquanto mantivesse sua supremacia naval.

Este incidente lança luz sobre a tensão da situação de classe em Atenas, mesmo vinte e seis anos antes da irrupção da Guerra do Peloponeso, durante a qual a situação se tornou muito pior. Lança também luz sobre os métodos utilizados pelo partido oligárquico, subversivo e pro-espartano. Tucídides, deve-se notar, só menciona sua traição de passagem e não a censura, embora em outros pontos fale com a maior severidade contra a luta de classes e o espírito de partido. As passagens a seguir citadas, escritas como reflexão geral sobre a Revolução de Corcira em 427 a. C, são interessantes, primeiro como uma excelente pintura da situação de classes e depois como uma ilustração das rudes palavras que Tucídides sabia encontrar quando queria descrever tendências análogas da parte dos democratas de Corcira. (A fim de julgar sua falta de imparcialidade, devemos lembrar que, no começo da guerra, Corcira fora um dos aliados democráticos de Atenas e que a revolta fora iniciada pelos oligarcas.) Além do mais, a citação é uma excelente expressão do sentimento de um geral desmoronamento social: “Quase todo o mundo helênico — escreve Tucídides — estava agitado. Em cada cidade, os líderes dos partidos democrático e oligárquico se empregavam a fundo, um para atrair os atenienses, o outro os lacedemônios… Os laços partidários eram mais fortes do que os laços de sangue… Os dirigentes de cada lado usavam de lemas especiosos, proclamando um partido que sustentava a igualdade constitucional da maioria e o outro a sabedoria da nobreza; na realidade, faziam do interesse público o seu preço, anunciando, naturalmente, serem devotados a ele. Usavam de todos os meios concebíveis para levar vantagem um sobre o outro e cometiam os mais monstruosos crimes… Essa revolução deu origem a toda forma de perversidade na Hélade. Em toda parte prevalecia uma atitude de pérfido antagonismo. Não havia palavra bastante imperativa, nem juramento bastante terrível, para reconciliar inimigos. Cada um só sentia como forte a convicção de que nada estava em segurança” (12).

A plena significação da tentativa dos oligarcas atenienses para aceitarem o auxílio de Esparta e deterem a construção das Grandes Muralhas pode ser apreciada quando observamos que essa atitude de traição não se alterara quando Aristóteles escreveu sua Política, mais de um século depois. Ouvimos ali de um juramento oligárquico que, diz Aristóteles, “está agora em moda”. É o seguinte: “Prometo ser inimigo do povo e fazer o melhor que puder para dar-lhe maus conselhos!’’ (13) É claro que não podemos compreender esse período sem ter em mente tal ódio.

Mencionei acima que o próprio Tucídides era um antidemocrata. Isso se torna claro quando consideramos sua descrição do império ateniense e do modo por que ele era odiado pelos vários estados gregos. O domínio de Atenas sobre seu império, diz-nos ele, era sentido como nada melhor do que uma tirania, e todas as tribos gregas a temiam. Ao descrever a opinião pública quando do irrompimento da Guerra do Peloponeso, mostra-se benévolo em relação a Esparta e muito severo em relação ao imperialismo ateniense. “O sentimento geral dos povos estava fortemente ao lado dos lacedemônios, pois asseguravam que eles eram os libertadores da Hélade. Cidades e indivíduos mostravam-se ansiosos por auxiliá-los… e a indignação geral contra os atenienses era intensa. Alguns anelavam ser libertados de Atenas, outros temiam cair sob seu domínio” (14). Mais interessante é o fato de que este julgamento sobre o império ateniense se tornou mais ou menos o julgamento oficial da “História”, isto é, da maior parte dos historiadores. Assim como os filósofos acham difícil libertar-se dos pontos de vista de Platão, também os historiadores se prendem aos de Tucídides. Como um exemplo, posso citar Meyer (a maior autoridade alemã sobre esse período), que simplesmente repete Tucídides, quando diz: “As simpatias do educado mundo grego… desviaram-se de Atenas” (15).

Mas tais afirmativas são apenas expressões do ponto de vista antidemocrático. Muitos fatos registrados por Tucídides — por exemplo, a passagem citada que descreve as atitudes dos líderes democratas e oligárquicos — mostra que Esparta era “popular” não entre os povos da Grécia, mas só entre os oligarcas; entre os “educados”, como diz Meyer tão elegantemente. Mesmo Meyer admite que “as massas de espírito democrático esperavam, em muitos lugares, por sua vitória” (16), isto é, pela vitória de Atenas; e a narrativa de Tucídides contém muitos exemplos que provam a popularidade de Atenas entre os democratas e os oprimidos. Mas quem se importa com a opinião das massas deseducadas? Se Tucídides e os “educados” asseveram que Atenas era tirana, então tirana era ela.

Interessantíssimo também é ver que os mesmos historiadores que saúdam Roma por sua realização, a fundação de um império universal, condenam Atenas por tentar realizar algo melhor. O fato de haver Roma tido sucesso onde Atenas falhou não é explicação suficiente para essa atitude. Realmente, não censuram eles Atenas por haver falhado, mas amaldiçoam a própria ideia de que sua tentativa pudesse ter sido bem sucedida. Atenas, acreditam, era uma democracia cruel, um lugar governado pelos deseducados, que odiavam e suprimiam os educados e, por sua vez, eram odiados por estes. Mas esta opinião — o mito da intolerância cultural da Atenas democrática — deixa sem sentido os fatos conhecidos e, acima de tudo, a surpreendente produtividade espiritual de Atenas nesse período particular. Mesmo Meyer deve admitir essa produtividade. “O que Atenas produziu nessa década — diz ele, com característica modéstia — nivela-se a uma das mais poderosas décadas da literatura alemã” (17). Péricles, que era o líder democrático de Atenas nesse tempo, estava mais do que justificado quando a chamou “A Escola da Hélade”.

Longe de mim está defender tudo quanto os atenienses fizeram na edificação de seu império e certamente não desejo fazer a defesa de ataques injustificados (se ocorreram), ou de atos de brutalidade. Também não esqueço que a democracia ateniense se baseava ainda na escravatura (18). Mas creio ser necessário ver que a exclusividade tribalista e a auto-suficiência só podiam ser superadas por alguma forma de imperialismo. E deve ser dito que certas medidas imperialistas introduzidas por Atenas eram antes liberais. Um exemplo muito interessante é o fato de que Atenas ofereceu, em 405 a. C, à sua aliada, a ilha jônica de Samos, “que os samianos passassem a ser atenienses de então em diante; e que ambas as cidades fossem um só estado; e que os habitantes de Samos ordenassem seus negócios internos como lhes aprouvesse, mantendo suas leis” (19). Outro exemplo é o método ateniense de tributar seu império. Muito tem sido dito acerca dessas taxas, ou impostos, que têm sido descritos — com grande injustiça, creio — como um meio desavergonhado e tirânico de explorar as cidades menores. Numa tentativa para avaliar a significação de tais taxas, devemos, sem dúvida, compará-las com o volume do comércio que, em retribuição, era protegido pela frota ateniense. A informação necessária é dada por Tucídides, de quem sabemos que os atenienses impuseram a seus aliados, em 413 a. C., “em lugar de tributo, um direito de cinco por cento sobre todas as coisas importadas e exportadas por mar; e pensaram que isso iria render mais” (20). Esta medida, adotada sob severa tensão de guerra, pode ser favoravelmente comparada, creio, aos métodos romanos de centralização. Os atenienses, por esse meio de taxação, tornavam-se interessados no desenvolvimento do comércio aliado e, assim, na iniciativa e independência dos vários membros de seu império. Originariamente, o império ateniense desenvolvera-se a partir de uma liga de povos iguais. A despeito da predominância temporária de Atenas, publicamente criticada por alguns de seus cidadãos (cf. Lisistrata, de Aristófanes), parece possível que seu interesse no desenvolvimento do comércio iria levar, em tempo, a alguma espécie de constituição federal. Pelo menos, não conhecemos, em seu caso, nada de semelhante ao método romano de “transferir” as posses culturais do império para a cidade dominante, isto é, o saque. E o que quer que se possa dizer contra a plutocracia, é ela preferível a um regime de saqueadores (21).

Esta opinião favorável sobre o imperialismo ateniense pode ser sustentada por uma comparação com os métodos espartanos de tratar dos negócios estrangeiros. Eram eles determinados pelo alvo definitivo que dominava a política de Esparta, por sua tentativa de paralisar qualquer mudança e voltar ao tribalismo. (Isto é impossível, como discutirei mais adiante. A inocência, uma vez perdida, não pode ser recuperada, e uma sociedade fechada artificialmente paralisada, ou um tribalismo cultivado, não pode igualar-se ao artigo genuíno.)

Os princípios da política espartana eram estes:

— 1) Proteção do tribalismo detido: fechar a porta a todas as influências estrangeiras que pudessem por em perigo a rigidez dos tabus tribais.

— 2) Anti-humanitarismo: fechar a porta, mais especialmente, a todas as ideologias igualitárias, democráticas e individualistas.

— 3) Autarquia: ser independente do comércio.

— 4) Anti-universalismo ou particularismo: sustentar a diferenciação entre a própria tribo e as outras; não se misturar com inferiores.

— 5) Dominação: submeter e escravizar os vizinhos.

— 6) Não se expandir demais: “a cidade só deve crescer enquanto puder fazê-lo sem prejudicar sua unidade” (22) e, especialmente, sem arriscar-se à introdução de tendências universalistas.

Se compararmos essas seis tendências principais com as do totalitarismo moderno, veremos então que elas concordam fundamentalmente, com a única exceção da última. A diferença pode ser descrita dizendo-se que o totalitarismo moderno parece ter tendências imperialistas. Mas esse imperialismo não tem elementos de tolerante universalismo e as ambições de âmbito mundial dos totalitários modernos lhes são impostas, por assim dizer, contra a sua vontade. Dois fatores são responsáveis por isso. O primeiro é uma tendência geral de todas as tiranias para justificar sua existência em nome da salvação do estado (ou do povo) de seus inimigostendência que deve levar, sempre que os velhos inimigos tenham sido dominados com sucesso, à criação ou invenção de novos. O segundo fator é tentar levar a efeito os pontos 2 e 5, estreitamente relacionados, do acima citado programa totalitário. O humanitarismo, que, de acordo com o ponto 2, deve ser mantido do lado de fora, tornou-se tão universal que, a fim de combatê-lo com eficiência internamente, deverá ser destruído em todo o mundo. Mas nosso mundo se tomou tão pequeno que todos hoje se tornaram vizinhos e, assim, para levar a efeito o ponto 5, todos deverão ser dominados e escravizados. Nos antigos tempos, entretanto, nada poderia ter parecido mais perigoso para aqueles que adotavam um particularismo como o de Esparta, do que o imperialismo ateniense, com sua tendência inerente para desenvolver-se numa comunidade de cidades gregas e talvez mesmo num império universal do homem.

Sintetizando a análise até aqui feita, podemos dizer que a revolução política e espiritual que começara com a queda do tribalismo grego alcançou o auge no século quinto, com a irrupção da Guerra do Peloponeso. Desenvolveu-se em violenta guerra de classes e, ao mesmo tempo, numa guerra entre as duas principais cidades da Grécia.

III

Como, porém, explicaremos o fato de atenienses eminentes, como Tucídides, ficaram ao lado da reação, contra esses novos desenvolvimentos? Creio ser o interesse de classe uma explicação insuficiente, pois o que temos de explicar é o fato de que, enquanto muitos dos jovens nobres ambiciosos se tornavam membros ativos do partido democrático, embora nem sempre dignos de confiança, alguns dos mais dotados e reflexivos resistiam à sua atração. O ponto principal parece estar em que, embora a sociedade aberta já existisse, embora na prática houvesse começado a desenvolver novos valores, novos padrões igualitários de vida, ainda algo estava “faltando”, especialmente para os “educados”. A nova fé sustentada pela sociedade aberta, sua única possível fé, o humanitarismo, começara a afirmar-se, mas ainda não fora formulado. Por então, não se podia ver muito mais do que luta de classes, o medo dos democratas à reação oligárquica e a ameaça de maiores desenvolvimentos revolucionários. A reação contra esse desenvolvimento tinha, portanto, muita coisa a seu lado: a tradição, o apelo em defesa das velhas virtudes e a velha religião. Essas tendências atraiam os sentimentos de muitos homens e sua popularidade deu origem a um movimento que, embora dirigido e utilizado pelos espartanos e seus amigos oligarcas para seus próprios fins, deve ter incorporado muitos homens retos, mesmo em Atenas. Do lema desse movimento: “Voltemos ao estado de nossos antepassados”, ou “Voltemos ao antigo estado paterno”, deriva-se o termo “patriota”. Quase não vale a pena insistir em que as crenças populares entre aqueles que defendiam esse movimento “patriótico” foram grosseiramente desfiguradas pelos mesmos oligarcas, que não vacilaram em entregar sua própria cidade ao inimigo com a esperança de obter sua ajuda contra os democratas. Tucídides foi um dos chefes mais representativos desse movimento em prol do “estado paterno” (23) e embora o mais provável seja que não cometesse qualquer das traições dos anti-democratas extremados, não conseguiu dissimular sua simpatia pelo propósito fundamental destes, a saber, deter a evolução social e lutar contra o império universalista da democracia ateniense e contra os instrumentos e símbolos de seu poder: a frota, as muralhas e o comércio. (Em vista das doutrinas platônicas relativas ao comércio, cabe salientar a amplitude do temor que a crescente atividade mercantil despertava. Quando, depois de sua vitória sobre Atenas, em 404 a. C., o rei espartano Lisandro regressou com grande presa de guerra, os “patriotas” espartanos, isto é, os membros do movimento favorável ao “estado paterno”, trataram de impedir a introdução de ouro, e, embora esta fosse finalmente permitida, sua posse ficou limitada ao Estado, impondo-se a pena capital a quaisquer cidadãos que fossem encontrados como possuidores de metais preciosos. Nas Leis de Platão processos muito semelhantes (24) são advogados.)

Uma das passagens mais importantes de Popper, que esclarece o surgimento do termo ‘patriota’, como expressão do desejo de voltar ao regime dos nossos pais, quer dizer, do regime autocrático que vigorava antes do surgimento da democracia.

Embora o movimento “patriótico” fosse em parte expressão da aspiração a retornar a formas de vida mais estáveis, à religião, à decência, à lei e à ordem, em si mesmo esse movimento estava apodrecido. Sua fé antiga se perdera e fora amplamente substituída por uma exploração hipócrita e mesmo cínica dos sentimentos religiosos (25). O niilismo, tal como retratado por Platão nas pessoas de Cálicles e Trasímaco, podia encontrar-se especialmente entre os jovens aristocratas “patriotas” que, se tivessem oportunidade, tornar-se-iam líderes do partido democrático. O mais claro expoente desse niilismo foi provavelmente o líder oligárquico que ajudou a desferir o golpe mortal em Atenas, o tio de Platão, Crítias, o chefe dos Trinta Tiranos (26).

Interessante notar que esse apelo – “retornar a formas de vida mais estáveis, à religião, à decência, à lei e à ordem” – continua vivo nas reações atuais à democracia, sobretudo por parte dos populistas-autoritários que reflorescem no dealbar deste terceiro milênio.

A esse tempo, porém, na mesma geração a que pertenceu Tucídides, ergueu-se uma nova fé na razão, na liberdade e na fraternidade de todos os homens — a nova fé e, como creio, a única possível fé, da sociedade aberta.

IV

Grande Geração, eis como eu gostaria de denominar essa, que marca um ponto de reviravolta na história da humanidade, a geração que viveu em Atenas pouco antes da Guerra do Peloponeso e durante ela (27). Havia no seu seio grandes conservadores, como Sófocles, ou Tucídides. Havia homens que representam o período de transição, hesitantes, como Eurípides, ou céticos, como Aristófanes. Mas havia também o grande líder da democracia, Péricles, que formulou o principio da igualdade perante a lei e do individualismo político, e Heródoto, que foi acolhido e saudado na cidade de Péricles como o autor de uma obra que glorificava esses princípios. Protágoras, natural de Abdera, que se tomou influente em Atenas, e seu conterrâneo Demócrito também devem ser contados entre os da Grande Geração, Formularam eles a doutrina de que as instituições humanas do idioma, dos costumes e da lei não têm o caráter mágico de tabus, mas são de autoria humana, não naturais, mas convencionais, e insistiram ao mesmo tempo em que somos responsáveis por essas instituições. E havia ainda a escola de Górgias — Alcidamas, Licofronte e Antístenes — que desenvolveu os temas fundamentais da anti-escravatura, do protecionismo racional e do anti-nacionalismo, isto é, o credo do império universal dos homens. E havia o maior talvez de todos, Sócrates, que ensinou a lição de que devemos ter fé na razão humana, mas ao mesmo tempo devemos resguardar-nos do dogmatismo; de que os devemos afastar tanto da misologia (28), a desconfiança na teoria e na razão, quanto da atitude mágica daqueles que fazem da sabedoria um ídolo; que ensinou, em outras palavras, ser a crítica o espírito da ciência.

Brilhante observação de Popper sobre o que chamou de “Grande Geração” (incluindo os democratas mais destacados e, em especial, dentre eles, os sofistas). Infelizmente ele comete o erro de colocar Sócrates (mestre de Crítias e de Platão) entre os membros dessa nova geração. Sócrates e seus discípulos eram adversários da democracia, não seus apoiadores. Eram inimigos dos sofistas, não seus amigos. Eram pró-espartanos e não defensores dos atenienses democráticos.

Como até agora não falei muito sobre Péricles e nada sobre Demócrito, posso empregar algumas de suas próprias palavras a fim de ilustrar a nova fé. Em primeiro lugar, Demócrito: “Não por temor, mas pelo sentimento do que é reto, devemos abster-nos de praticar o mal… A virtude se baseia, acima de tudo, no respeito aos demais… Cada homem é um pequeno mundo próprio… Devemos fazer o máximo para auxiliar os que sofreram injustiças… Ser bom não significa não fazer o mal, nem também não desejar fazer o mal… As boas ações, e não as palavras, é que valem… A pobreza de uma democracia é melhor do que a prosperidade que se proclama marchar ao lado da aristocracia ou da monarquia, assim como a liberdade é melhor do que a escravidão… O sábio pertence a todos os países, pois o lar de uma grande alma é o mundo inteiro”. A ele também se deve esta observação, de um verdadeiro cientista: “Eu preferiria encontrar uma só lei causal a ser o Rei da Pérsia!” (29)

Em sua acentuação humanitária e universalista, esses fragmentos de Demócrito, embora sejam de data anterior, soam como se dirigidos contra Platão. A mesma impressão é produzida e muito mais fortemente, pela famosa oração fúnebre de Péricles, proferida pelo menos meio século antes de ser escrita a República. Citei dois trechos dessa oração no capítulo 6, quando discutíamos o igualitarismo, mas algumas passagens podem ser aqui transcritas mais amplamente a fim de dar mais clara impressão de seu espirito (30): “Nosso sistema político não compete com instituições que vigoram em qualquer outra parte. Não copiamos nossos vizinhos, mas tentamos ser um exemplo. Nossa administração favorece a maioria em vez da minoria: por isso é chamada democracia. As leis concedem justiça, igual, para todos igualmente, em suas disputas privadas, mas não ignoramos as reivindicações do mérito. Quando um cidadão se distingue, então será ele chamado a servir ao Estado, de preferência a outros, não como questão de privilégio, mas como recompensa ao merecimento; e a pobreza não é obstáculo… A liberdade de que gozamos estende-se também à vida comum; não temos suspeitas uns dos outros nem importunamos o próximo se ele prefere agir como lhe apraz… Mas esta liberdade não nos priva de lei. Somos ensinados a respeitar os magistrados e as leis e a nunca esquecer que devemos proteger os ofendidos. E somos também ensinados a observar aquelas leis não escritas cuja sanção repousa apenas no consenso universal do que é justo…”

“Nossa cidade tem as portas abertas ao mundo; nunca expulsamos um estrangeiro… Somos livres para viver exatamente como nos apraz, e contudo sempre estamos dispostos a enfrentar qualquer perigo… Amamos a beleza sem comprazer-nos em fantasias e embora tentemos aprimorar nossa inteligência isso não nos enfraquece a vontade… Não consiste para nós uma desgraça admitir que alguém é pobre; mas consideramos desgraçado não fazer esforços para evitar isso. Um cidadão ateniense não deve negligenciar as coisas públicas quando atende a seus negócios privados… Consideramos o homem que não toma interesse pelo Estado não como inofensivo, mas como inútil; e embora apenas poucos possam dar origem a uma política, somos todos capazes de julgá-la. Não encaramos a discussão como uma pedra de tropeço no caminho da ação política, mas como uma preliminar indispensável para agir sabiamente… Acreditamos que a felicidade é o fruto da liberdade, e a liberdade o do valor, e não recuamos ante os perigos da guerra… Em resumo, proclamo que Atenas é a Escola da Hélade e que o ateniense, individualmente, cresce desenvolvendo-se em feliz versatilidade, em presteza para enfrentar emergências e em confiança em si mesmo” (31).

Estas palavras não são apenas um elogio a Atenas; expressam o verdadeiro espírito da Grande Geração. Formulam o programa político de um grande individualista igualitário, de um democrata que bem compreendia não poder a democracia exaurir-se no insignificante princípio de que “o povo deve governar”, mas dever basear-se sobre a fé na razão e no humanitarismo. Ao mesmo tempo, são manifestação de verdadeiro patriotismo, de justa ufania por uma cidade que fizera tarefa sua dar um exemplo, que se tomara a escola, não só da Hélade, mas, como sabemos, da humanidade, por milênios passados e por vir.

O discurso de Péricles não é só um programa. É também uma defesa e talvez mesmo um ataque. Corre, como já sugerimos, como um ataque direto a Platão. Não duvido de que tenha sido dirigido não só contra o tribalismo detido de Esparta mas também contra o anel ou “elo” totalitário interno, contra o movimento pelo estado paterno, a “Sociedade dos Amigos da Lacônia” ateniense (como Th. Gomperz os denominou em 1902). (32) Esse discurso é o mais antigo (33) e talvez ao mesmo tempo a mais forte afirmação já feita em oposição a essa espécie de movimento. Sua importância foi sentida por Platão, que caricaturou a oração de Péricles, meio século depois, nos trechos da República (34) em que ataca a democracia, assim como naquela indisfarçada paródia, o diálogo chamado Menexeno ou a Oração Fúnebre (35). Mas os amigos da Lacônia que Péricles atacou replicaram muito antes de Platão. Cinco ou seis anos apenas depois da oração de Péricles, um panfleto sobre a Constituição de Atenas (36) foi publicado por um autor desconhecido (possivelmente Crítias), agora comumente chamado “Velho Oligarca”. Esse engenhoso panfleto, o mais antigo tratado existente sobre teoria política, é, possivelmente, ao mesmo tempo o mais , velho monumento da deserção da humanidade por parte de seus líderes intelectuais. É um implacável ataque a Atenas, escrito sem dúvida por um de seus melhores cérebros. Sua ideia, central, ideia que se tomou artigo de fé para Tucídides e Platão, é a estreita conexão entre imperialismo naval e democracia. E tenta mostrar que não pode haver transigência num conflito entre dois mundos (37), os mundos da democracia e da oligarquia; que só o uso da violência impiedosa, de medidas totais, incluindo a intervenção de aliados externos (os espartanos) é capaz de por fim ao regime ímpio da liberdade. Esse notável panfleto devia tomar-se o primeiro de uma sequência praticamente infinita de obras sobre filosofia política, que iriam repetir mais ou menos, aberta ou ocultamente, o mesmo tema, até os nossos dias atuais. Sem vontade nem capacidade para ajudar a humanidade ao longo de sua difícil caminhada para um futuro desconhecido que ela própria devia criar para si, alguns dos “educados” tentaram fazê-la recuar para o passado. Incapazes de guiar para um novo caminho, só se podiam fazer líderes da perene revolta contra a liberdade. Tomou-se ainda mais necessário para eles afirmar sua superioridade lutando contra o igualitarismo, em vista de serem (para usar as palavras de Sócrates) misantropos e misólogos — incapazes daquela simples e comum generosidade que inspira fé nos homens e fé na razão humana e na liberdade. Por duro que pareça este julgamento, temo que seja justo se aplicado àqueles líderes intelectuais da revolta contra a liberdade que vieram após a Grande Geração e especialmente depois de Sócrates. Podemos agora tentar vê-los sobre o fundo de nossa interpretação histórica.

O surgimento da própria filosofia pode ser interpretado, acho eu, como uma resposta à queda da sociedade fechada e de suas crenças mágicas. É uma tentativa para substituir a perdida fé mágica por uma fé racional; modifica a tradição de transmitir uma teoria ou um mito, fundando uma tradição nova: a tradição de desafiar teorias e mitos e de discuti-los criticamente (38). (Ponto significativo é coincidir essa tentativa com a difusão das chamadas seitas órficas, cujos membros procuravam substituir o perdido sentimento de unidade por uma nova religião mística.) Os mais antigos filósofos, os três grandes jônicos e Pitágoras, provavelmente ignoravam de todo o estímulo a que reagiam. Eram os representantes, assim como os antagonistas inconscientes, de uma revolução social. O próprio fato de haverem fundado escolas, ou seitas, ou ordens, isto é, novas instituições sociais ou antes grupos concretos com uma vida comum e funções comuns, amplamente modelados segundo os de uma tribo idealizada, prova que eram reformadores no campo social e, portanto, que reagiam a certas necessidades sociais. O fato de haverem reagido a essas necessidades e a seu próprio sentimento de achar-se à deriva, não imitando Hesíodo na invenção de um mito historicista do destino e da decadência (39), mas inventando a tradição da crítica e da discussão, e com ela a arte de pensar racionalmente, é um desses fatos inexplicáveis que surgem no início de nossa civilização. Mesmo esses racionalistas, porém, reagiram á perda de unidade do tribalismo de um modo amplamente emocional. Seu raciocínio dá expressão a seu sentimento de andar à deriva, à tensão de um desenvolvimento que estava prestes a criar nossa civilização individualista. Uma das mais antigas expressões dessa tensão remonta a Anaximandro (40), o segundo dos filósofos jônicos. A existência individual surge-lhe como hubris, como um ato ímpio de injustiça, como um ato errado de usurpação, pelo qual os indivíduos devem sofrer e fazer penitência. O primeiro a ter consciência da revolução social e da luta de classes foi Heráclito. No segundo capítulo deste livro descrevemos como ele racionalizou seu sentimento de andar à deriva, desenvolvendo a primeira ideologia anti-democrática e a primeira filosofia historicista da mudança e do destino. Heráclito foi o primeiro inimigo consciente da sociedade aberta.

É improvável que Pitágoras possa ter sido alguém que estimulasse a crítica e a discussão. Ele deve ser colocado entre os mantenedores da tradição mítica, sacerdotal, hierárquica e autocrática da civilização patriarcal. Nesse sentido, tal como Heráclito, é um antecessor de Sócrates e Platão.

Quase todos esses primitivos pensadores labutavam sob trágica e desesperada tensão (41). A única exceção talvez seja o monoteísta Xenófanes (42), que levou sua carga corajosamente. Não podemos censurá-los por sua hostilidade para com os novos desenvolvimentos do mesmo modo por que podemos, até certa extensão, censurar seus sucessores. A fé nova da sociedade democrática, a fé no homem, na justiça igualitária e na razão humana talvez começasse a tomar forma, mas ainda não havia sido formulada.

V

A maior contribuição a essa fé devia ser dada por Sócrates, que morreu por ela. Sócrates não era um líder da democracia ateniense, como Péricles, nem um teórico da sociedade democrática, como Protágoras. Era, antes, um crítico de Atenas e de suas instituições democráticas, e nisto pode ter tido superficial semelhança com alguns dos líderes da reação contra a sociedade democrática. Não é mister, porém, que um homem que critica a democracia e as instituições democráticas seja inimigo delas, embora tanto os democratas que ele critica, como os totalitários que esperam tirar proveito de qualquer desunião no campo democrático, assim o possam rotular. Há fundamental diferença entre uma critica democrática e uma crítica totalitária da democracia. A critica de Sócrates era democrática, e, em verdade, daquela espécie que constitui a própria vida da democracia. (Os democratas que não vêem a diferença entre uma crítica amigável da democracia e uma hostil estão imbuídos de espírito totalitário. O totalitarismo, sem dúvida, não pode considerar qualquer crítica como amigável, uma vez que qualquer crítica de uma autoridade deve desafiar o próprio princípio da autoridade.)

Não! Sócrates era um adversário da democracia e não um crítico democrático das suas imperfeições. Não há nada corroborando o juízo de Popper. Além disso, não foi morto por isso e sim pelo oposto: por fazer o elogio da antipolítica e por ter formado uma geração de inimigos da democracia.

Já mencionei alguns aspectos do ensinamento de Sócrates: seu intelectualismo, isto é, sua teoria igualitária da razão humana como meio universal de comunicação; sua insistência na honestidade intelectual e na auto crítica; sua teoria igualitária da justiça e sua doutrina de que é melhor sofrer a injustiça do que infligi-la a outros. Penso que esta última doutrina é a que melhor nos ajuda a compreender o âmago de seu ensinamento, seu credo individualista, sua crença no indivíduo humano como um fim em si mesmo.

Despedaçara-se a sociedade fechada, e com ela seu credo de que a tribo é tudo e o individuo nada é. A iniciativa individual, a auto-afirmação haviam-se tornado um fato, despertara-se o interesse pelo indivíduo (43) humano, como indivíduo e não só como herói tribal e salvador. Mas uma filosofia que torna o homem o seu centro de interesse só começa com Protágoras. E a crença de que nada é mais importante em nossa vida do que os outros homens individuais, o apelo aos homens para que se respeitem mutuamente e a si mesmos, parece ser devido a Sócrates.

Burnet acentuou (44) ter sido Sócrates quem criou a concepção de alma, concepção que teve tão imensa influência sobre nossa civilização. Creio que essa opinião tem muito de certo, embora sinta que sua formulação possa ser enganadora, especialmente quanto ao uso da palavra “alma”, pois Sócrates parece ter-se afastado o mais que pôde de teorias metafísicas. Seu apelo era de ordem moral e sua teoria da individualidade (ou da “alma” se se preferir este termo) é uma doutrina moral, creio eu, e não metafísica. Ele lutava, como sempre, com o auxílio dessa doutrina, contra a auto-satisfação e a complacência. Requeria que o individualismo não fosse apenas a dissolução do tribalismo, mas que o indivíduo se demonstrasse digno de sua libertação. Eis porque insistia em não ser o homem simplesmente um pedaço de carne — o corpo. Há mais no homem, uma centelha divina, a razão; e um amor à bondade, à humanidade, um amor à beleza e ao bem. Isto é que toma digna a vida humana. Mas, se eu não sou simplesmente um “corpo”, que sou então? És, antes de tudo, inteligência, eis a resposta de Sócrates. Tua razão é que te faz humano, que te capacita a seres mais do que um simples amontoado de desejos e apetites, que faz de ti um indivíduo auto-suficiente e te dá direito a proclamares que és um fim em te mesmo. O dito de Sócrates “cuida de tua alma” é, amplamente, um apelo à honestidade intelectual, assim como a sentença “conhece-te a ti mesmo” é usada por ele para lembrar-nos nossas limitações intelectuais.

Como Popper pode fazer tais afirmações se todos os relatos sobre Sócrates foram feitos por adversários da democracia e pró-espartanos, como Xenofonte e Platão, ou por pessoas que nunca participaram da democracia e não a entenderam plenamente, como Aristóteles (que nem ateniense era)?

Estas, insiste Sócrates, são as coisas que têm importância. E o que ele criticava na democracia e nos estadistas democráticos era sua inadequada compreensão de tais coisas. Criticava-lhes, com razão, a falta de honestidade intelectual e sua obsessão pela política do poder (45). Dada a ênfase que punha no problema político visto pelo lado humano, não podia tomar muito interesse pela reforma institucional. Era pelo aspecto imediato, pessoal, da sociedade aberta que se interessava. Enganou-se quando se considerou um político; era um mestre.

Hahaha!

Mas se Sócrates era, fundamentalmente, o campeão da sociedade aberta e um amigo da democracia, por que então, perguntar-se-á, misturou-se com antidemocratas? Sabemos, de fato, que entre seus companheiros se achavam não só Alcibíades, que por certo tempo esteve do lado de Esparta, como também dois tios de Platão, Crítias, que mais tarde se tomou o implacável líder dos Trinta Tiranos, e Cármides, que veio a ser o seu lugar-tenente.

Há mais de uma resposta a essa pergunta. Em primeiro lugar, diz-nos Platão que o ataque de Sócrates aos políticos democratas de seu tempo obedeceu, em parte, ao propósito de manifestar o egoísmo e a ambição de poder dos lisonjeadores hipócritas do povo, e mais particularmente dos jovens aristocratas que se faziam passar por democratas, mas que só encaravam o povo como instrumentos de sua volúpia do poder (46). Essa atividade o fez, de um lado, simpático a alguns, pelo menos, dos inimigos da democracia, e por outro lado colocou-o em contacto com alguns aristocratas ambiciosos daquele próprio tipo. E aqui entra uma segunda consideração. Sócrates, moralista e individualista, nunca se limitaria a simplesmente atacar esses homens. Tomaria, antes, real interesse por eles e dificilmente os deixaria sem fazer séria tentativa para convertê-los. Há muitas alusões a tais tentativas nos diálogos de Platão. Temos razão — e esta é uma terceira consideração — para acreditar que Sócrates, mestre-político, chegou mesmo a desviar-se de seu caminho para atrair jovens e obter influência sobre eles, especialmente quando os considerava abertos à conversão e pensava que algum dia talvez pudessem ocupar postos de responsabilidade em sua cidade. O exemplo de maior realce é, naturalmente, Alcibíades, assinalado desde a própria infância como grande líder futuro do império ateniense. E o brilho, a ambição e a coragem de Crítias tornaram-no um dos poucos competidores prováveis de Alcibíades. (Ele cooperou com Alcibíades por algum tempo, mas depois voltou-se contra este. Não é de todo improvável que a cooperação temporária fosse devida à influência de Sócrates.) De tudo quanto sabemos sobre as próprias aspirações políticas de Platão, primitivas e posteriores, é mais do que possível que suas relações com Sócrates fossem de espécie semelhante (47). Embora um dos espíritos dirigentes da sociedade aberta, Sócrates não era homem de partido. Trabalharia em qualquer círculo em que sua obra pudesse beneficiar sua cidade. Se tivesse interesse por um jovem promissor, não o afastariam as ligações oligárquicas de família.

Bah! A hipótese aventada por Popper – de que Sócrates abandonou suas reais convicções para atrair jovens autocratas, pró-espartanos – chega a ser ridícula, além de desmerecer o próprio Sócrates. Sugere que ele enganou seus discípulos, expressando convicções antidemocráticas para atraí-los e capturá-los. Isso não casa bem com a personalidade de mestre moral a ele atribuída pelo próprio Popper. É como se, hoje, um democrata se fingisse adepto do antiglobalismo e do populismo-autoritário para atrair e capturar para sua esfera de influência seguidores de Farage, de Trump, de Orbán, de Putin ou de Erdogan… Lamentável. Lamentável como toda tentativa de salvar um grande mestre das consequências desastrosas de seus ensinamentos. Tão lamentável quanto as tentativas de salvar Marx (inventor dos conceitos de ditadura do proletariado e da luta de classes como motor da história) dizendo que as consequências maléficas de suas ideias devem ser atribuídas às falsificações, deturpações ou perversões introduzidas por Lenin ou Stalin.

Mas essas ligações deveriam causar-lhe a morte. Quando a grande guerra foi perdida, viu-se Sócrates acusado de haver educado os homens que traíram a democracia e de haver conspirado com o inimigo para produzir a queda de Atenas.

O que é fato!

A história da Guerra do Peloponeso e da queda de Atenas muitas vezes é ainda narrada, sob a influência da autoridade de Tucídides, de modo tal que a derrota ateniense surge como a prova derradeira da fraqueza moral do sistema democrático. Mas essa opinião é apenas uma distorção tendenciosa; os fatos bem conhecidos contam uma história muito diferente. A principal responsabilidade pela perda da guerra recai sobre os oligarcas traidores que continuamente conspiraram com Esparta. Salientes entre eles eram três antigos discípulos de Sócrates: Alcibíades, Crítias e Cármides. Depois da queda de Atenas, em 404 A. C., os dois últimos tomaram-se líderes dos Trinta Tiranos, que não passavam de um governo títere sob proteção espartana. A queda de Atenas e a destruição das muralhas são muitas vezes apresentadas como os resultados finais da grande guerra que se iniciara em 431 a. C. Mas nessa apresentação está a principal distorção, pois os democratas continuaram a lutar. Com uma força a princípio apenas de setenta, prepararam, sob a direção de Trasíbulo e Anito, a libertação de Atenas, onde Crítias, por esse tempo, mandava matar dezenas e dezenas de cidadãos; durante os oito meses de seu reinado de terror, a lista de mortos “número quase maior de Atenienses do que o de mortos durante os últimos dez anos da guerra do Peloponeso” (48) Mas, depois de oito meses, (em 403 a. C.) Crítias e a guarnição espartana foram atacados e derrotados pelos democratas, que se estabeleceram no Pireu, e ambos os tios de Platão perderam a vida na batalha. Seus sequazes oligárquicos continuaram por certo tempo com o reinado do terror na própria cidade de Atenas, mas suas forças estavam em estado de confusão e dissolução. Havendo-se demonstrado incapazes de governar, foram finalmente abandonados por seus protetores espartanos, que concluíram um tratado com os democratas. A paz restabeleceu a democracia em Atenas. Assim, a forma democrática de governo demonstrara seu vigor superior, sob as mais severas provas, e mesmo seus inimigos começaram a considerá-la invencível. (Nove anos mais tarde, após a batalha de Cnido, podiam os atenienses reerguer suas muralhas. A derrota da democracia transformara-se em vitória.)

Logo que a democracia restaurada restabelecera normais condições legais (49), foi iniciado um processo contra Sócrates. Sua significação era bastante clara; ele era acusado de haver tido influência na educação dos mais perniciosos inimigos do Estado, Alcibíades, Crítias e Cármides. Certas dificuldades para a acusação foram criadas por uma anistia concedida a todos os crimes políticos cometidos antes do restabelecimento da democracia. O libelo não podia, portanto, referir-se abertamente àqueles casos notórios. E os acusadores provavelmente não procuravam tanto castigar Sócrates pelos infelizes acontecimentos do passado, que, como eles bem sabiam, haviam ocorrido contra as suas intenções, como antes impedi-lo de continuar com seus ensinamentos, os quais, em vista dos efeitos, não podiam deixar de considerar como perigosos ao estado. Por esse motivo, foi dada à acusação a forma vaga e mesmo sem significação de que Sócrates estava corrompendo a juventude, de que era ímpio e de que tentara introduzir no estado novas práticas religiosas. (Estas duas últimas acusações sem dúvida manifestavam, embora toscamente, o sentimento correto de que, no campo ético-religioso, ele era um revolucionário). Em razão da anistia, a “juventude corrompida” não podia ser precisamente citada, mas todos sabiam, sem dúvida, de quem se falava (50). Em sua defesa, Sócrates insistiu em que não tinha simpatias pela política dos Trinta e em que realmente arriscara a vida ao desafiar sua tentativa de implicá-lo num de seus crimes. E lembrou ao tribunal que entre seus mais íntimos companheiros e mais entusiásticos discípulos havia pelo menos um ardente democrata, Querofonte, que lutara contra os Trinta (e que, parece, perecera em combate (51).

É hoje comumente reconhecido que Anito, o dirigente democrático que apoiou a acusação, não pretendia fazer de Sócrates um mártir. O alvo era exilá-lo. Mas esse plano foi derrotado pela recusa de Sócrates em transigir com seus princípios. Não creio que ele quisesse morrer, ou que lhe agradasse o papel de mártir (52). Ele simplesmente lutou por aquilo que acreditava ser certo, pela obra de sua vida. Nunca pretendera minar a democracia. De fato, tentara dar-lhe a fé que lhe era necessária. Fora esta a tarefa de sua existência. E ela estava, sentia ele, seriamente ameaçada. A traição de seus antigos companheiros deixara sua obra e ele mesmo aparecerem a uma luz que o deve ter perturbado profundamente. É possível que tenha até saudado o julgamento como uma oportunidade para provar que sua lealdade à cidade era sem limites.

Falso! Sócrates queria morrer. Sócrates não queria transigir, por certo, mas não com seus princípios e sim com a democracia. E tanto é assim que, na sua defesa, jamais apelou à liberdade de opinião reinante em Atenas, pois isso seria reconhecer a superioridade da democracia (e ele não acreditava nos atributos da isologia, isonomia e isegoria no tocante às opiniões defendidos pelos democratas: pelo contrário, ridicularizava essas ideias, dizendo que um peixeiro, um verdureiro ou um comerciante jamais poderiam debater com um sábio).

Sócrates explicou essa atitude com a máxima minúcia quando lhe foi dada uma oportunidade de evadir-se. Se a tivesse aproveitado, exilando-se, todos o teriam julgado um inimigo da democracia. Assim, permaneceu e expôs suas razões. Esta explanação, seu testamento, pode ser encontrada no Criton, de Platão (53). É simples. Se eu partir, diz Sócrates, violarei as leis do Estado. Tal ato colocar-me-ia em oposição às leis e provaria minha deslealdade. Prejudicaria o Estado.

Somente permanecendo posso mostrar, fora de dúvida, minha lealdade para com o Estado e suas leis democráticas, e provar que nunca fui seu inimigo. Não pode haver maior prova de minha lealdade do que minha disposição de morrer por ela.

A morte de Sócrates é a derradeira prova de sua sinceridade. Seu destemor, sua simplicidade, sua modéstia, seu senso de proporção, seu humor nunca o abandonaram. “Sou o moscardo que Deus pôs sobre esta cidade — diz ele em sua Apologia — e durante o dia inteiro, em todos os lugares, sempre estou a aguilhoar-vos, a despertar-vos, a persuadir-vos e a censurar-vos. Não podereis facilmente encontrar outro como eu, e portanto devo advertir-vos a que me poupeis… Se me golpeardes, como vos aconselha Anito, e me levardes precipitadamente à morte, então permanecereis a dormir pelo resto de vossas vidas, a menos que Deus, em sua providência, vos envie outro moscardo” (54). Mostrou ele que um homem podia morrer não só pelo destino, pela fama ou por outras grandes coisas desta espécie, mas também pela liberdade do pensamento crítico e por um respeito de si mesmo que nada tem com a auto-importância ou o sentimentalismo.

Sem comentários.

VI

Sócrates teve apenas um sucessor condigno, seu velho amigo Antístenes, o último da Grande Geração. Platão, seu discípulo mais dotado, logo se mostrou o menos fiel. Traiu Sócrates, como o haviam feito seus tios. Estes, além de traí-lo, haviam também tentado envolvê-lo em seus atos terroristas, mas não tiveram êxito, porque ele resistiu. Platão tentou envolver Sócrates na sua grandiosa tentativa de construir a teoria da sociedade detida; e não teve dificuldade em obter êxito, porque Sócrates já estava morto.

Sei, sem dúvida, que este julgamento parecerá ultrajantemente duro, mesmo para aqueles que criticam Platão (55). Mas se encaramos a Apologia e o Criton como a última vontade de Sócrates e se compararmos esses testamentos de sua velhice com o testamento de Platão, as Leis, então será difícil julgar diversamente. Sócrates fora condenado, mas sua morte não estava nas intenções dos iniciadores do julgamento. As Leis de Platão remediam essa falta de intenção. Aí ele elabora, fria e cuidadosamente, a teoria inquisitorial. O livre pensamento, a crítica das instituições políticas, o ensinamento de novas ideias aos jovens, as tentativas de introduzir novas práticas religiosas ou mesmo novas opiniões, tudo isso é declarado crime capital. No estado de Platão, Sócrates nem sequer teria tido a oportunidade de defender-se publicamente; teria sido entregue ao Conselho Noturno secreto para “tratamento” e, finalmente, para punição de sua alma enferma.

Não posso duvidar do fato de que a traição de Platão, com sua utilização de Sócrates como o interlocutor principal da República, tenha sido a tentativa de maior sucesso para envolvê-lo. Mas é outra questão indagar se essa tentativa foi consciente.

A fim de compreender Platão, devemos visualizar toda a situação contemporânea. Depois da Guerra do Peloponeso, a tensão da civilização foi sentida com mais força do que nunca. As velhas esperanças oligárquicas ainda estavam vivas e a derrota de Atenas tendera mesmo a encorajá-las. A luta de classes continuava. Contudo, havia falhado a tentativa de Crítias para destruir a democracia levando a efeito o programa do Velho Oligarca. Não falhara por falta de decisão; o mais cruel uso da violência fora mal sucedido, apesar das circunstâncias favoráveis sob a forma de poderoso apoio da vitoriosa Esparta. Platão sentiu que era necessária uma completa reconstrução do programa. Os Trinta haviam sido batidos no domínio do poder político amplamente por haverem ofendido o senso de justiça dos cidadãos. A derrota fora, principalmente, uma derrota moral. A fé da Grande Geração demonstrara sua força. Os Trinta nada tinham dessa espécie a oferecer; eram niilistas morais. O programa do Velho Oligarca, sentia Platão, não podia ser revivido sem basear-se em outra fé, numa persuasão que reafirmasse os velhos valores do tribalismo, opondo-os à fé na sociedade aberta. Devia-se ensinar ao homem que a justiça e a desigualdade e que a tribo, a coletividade, são superiores ao indivíduo (56). Mas, visto como o credo de Sócrates era por demais forte para ser desafiado abertamente, Platão foi levado a reinterpretá-lo como uma fé na sociedade fechada. Isto era difícil, mas não era impossível. Não havia sido Sócrates morto pela democracia? Não perdera a democracia qualquer direito a reclamá-lo para o seu lado? E não criticara Sócrates sempre a multidão anônima, assim como seus líderes, por sua falta de sabedoria? Não era tão difícil, além do mais, reinterpretar Sócrates como tendo recomendado um governo dos “educados”, dos filósofos eruditos. Platão foi muito encorajado a essa interpretação ao descobrir que isso também fazia parte do antigo credo pitagórico, e, acima de tudo, ao encontrar, em Arquitas de Tarento, um sábio pitagórico, assim como um grande e bem sucedido estadista. Aí, pensou ele, estava a solução do enigma. Não havia o próprio Sócrates encorajado seus discípulos a terem participação na política? Não significava isso que ele desejava que os iluminados, os sábios, governassem? Que diferença entre a crueza da plebe governante em Atenas e a dignidade de um Arquitas! Certamente, Sócrates, que nunca formulara qualquer solução para o problema constitucional, devia ter em mente o pitagorismo.

Não é verdade que Sócrates tenha alguma vez encorajado seus discípulos a terem participação na política. Ele fez exatamente o oposto. Mas a referência ao credo pitagórico é importantíssima. Pitágoras é o elo entre a tradição da cultura patriarcal e Platão.

Desse modo pode Platão ter achado que era viável dar gradualmente nova significação ao ensinamento do membro mais influente da Grande Geração e persuadir-se que um opositor cuja esmagadora força ele nunca ousaria atacar diretamente era, na realidade, um aliado. Creio ser esta a interpretação mais simples do fato de haver Platão mantido Sócrates como o interlocutor principal de sua obra, mesmo depois de se haver afastado tanto de seu ensinamento que já não mais poderia enganar-se a respeito desse desvio (57). Mas esta não é a história inteira. Creio que ele sentia, nas profundezas da alma, que o ensinamento de Sócrates era em verdade muito diferente dessa apresentação e que estava traindo Sócrates. E penso que os contínuos esforços de Platão para fazer Sócrates re-interpretar-se são ao mesmo tempo esforços seus para acalmar a consciência culpada. Tentando cada vez mais provar que seu ensinamento era o único desenvolvimento lógico da verdadeira doutrina socrática, tentava ele persuadir a si mesmo de que não era um traidor.

Uma especulação psicologicista, indigna de Popper.

Julgo que ao lermos Platão somos testemunhas de um conflito íntimo, de uma titânica luta que se trava na sua mente. E mesmo sua famosa “reserva desdenhosa, a supressão de sua própria personalidade” (58), ou antes, a supressão tentada pois não é absolutamente difícil ler nas entrelinhas — é uma expressão dessa luta. E acredito que a influência de Platão pode ser explicada em parte pela fascinação desse conflito entre dois mundos dentro de uma alma, combate cujas poderosas repercussões sobre Platão podem ser sentidas sob a superfície da desdenhosa reserva. Essa luta comove nossos sentimentos, pois também prossegue dentro de nós mesmos. Platão foi filho de uma época que ainda é a nossa. (Não nos devemos esquecer de que, afinal, apenas um século se passou sobre a abolição da escravatura nos Estados Unidos, e menos ainda sobre a abolição da servidão na Europa Central.) Em nenhuma outra parte essa luta interna mais claramente se revela do que na teoria platônica da alma. O fato de que Platão, em seu anelo de unidade e harmonia, haja imaginado a estrutura do espirito humano à semelhança de uma sociedade dividida em classes (59) nos mostra quão profundamente ele deve ter sofrido.

O maior conflito de Platão nasce da profunda impressão que nele causou o exemplo de Sócrates, mas suas próprias inclinações oligárquicas lutam com sucesso contra esse exemplo. No campo do argumento racional, a luta é conduzida com a utilização do argumento do humanitarismo de Sócrates contra si mesmo. O que parece ser o mais antigo exemplo dessa espécie pode ser encontrado no Eutifron (60). Não farei com Eutifron — assegura-se Platão. — Nunca ousarei acusar meu próprio pai, meus próprios ancestrais venerados, de haverem pecado contra uma lei e uma moralidade humanitária que se situam ao nível da piedade vulgar. Mesmo que eles tenham tirado vidas humanas, afinal foram apenas vidas de seus próprios servos, que não são melhores do que criminosos, e não é minha tarefa julgá-los. Não mostrou Sócrates quanto é árduo saber o que é certo e errado, piedoso e impiedoso? E não foi ele próprio processado por impiedade, por aqueles chamados humanitários? Outros traços da luta de Platão podem, creio, ser encontrados em quase todos os pontos em que ele se volta contra as ideias humanitárias, especialmente na República. Suas evasivas e seu recurso ao desdém, ao combater a teoria igualitária da justiça, seu hesitante prefácio à sua defesa da mentira, à sua introdução do racismo e à sua definição da justiça foram todos mencionados em capítulos anteriores. Possivelmente, porém, a mais clara expressão do conflito possa ser encontrada no Menexeno, aquela réplica zombeteira ao discurso fúnebre de Péricles. Sinto que aqui Platão se descobre. Apesar de sua tentativa de ocultar seus sentimentos por trás da ironia, não se pode deixar de assinalar quão profundamente estava impressionado pelos sentimentos de Péricles. Eis como Platão faz seu “Sócrates” descrever maliciosamente a impressão que nele causara a oração de Péricles: “Um sentimento de exultação domina-me por mais de três dias; e só depois do quarto ou quinto dia, e não sem esforço, recupero os sentidos e verifico onde estou” (61). Quem pode duvidar de que Platão revele aqui quão seriamente estava impressionado pelo credo da sociedade aberta, e quão arduamente teve de lutar para voltar aos sentidos e verificar onde se achava — a saber, no campo dos inimigos dela?

Mais especulações inúteis de Popper.

VII

Creio que o argumento mais forte de Platão nesta luta foi sincero: de acordo com o credo humanitário, diz ele, devemos estar dispostos a auxiliar o próximo. O povo necessita insistentemente de ajuda, é infeliz, labora sob severa tensão, com o sentimento de andar à deriva. Não há certeza nem segurança na vida (62), quando tudo está em fluxo. Estou pronto a ajudá-lo. Mas não posso fazê-lo feliz sem chegar até a raiz do mal.

E ele encontrou a raiz do mal. É a “Queda do Homem”, o desmoronamento da sociedade fechada. Esta descoberta convenceu-o de que o Velho Oligarca e seus seguidores haviam estado fundamentalmente certos ao ficarem ao lado de Esparta contra Atenas, e ao macaquear o programa espartano de paralisar a mudança. Mas não haviam ido bastante longe, sua análise não fora levada a ponto suficientemente profundo. Não haviam tido consciência do fato, ou não se haviam importado com ele, de que mesmo Esparta mostrava sinais de decadência, apesar de seu heroico esforço para deter qualquer mudança, de que mesmo Esparta fora de coração brando em suas tentativas de controlar a criação da raça, a fim de eliminar as causas das Queda, as “variações” e “irregularidades” no número assim como na qualidade da raça dirigente (63). (Verificou Platão que o aumento da população era uma das causas da Queda.) O Velho Oligarca e seus seguidores haviam também pensado, em sua superficialidade, que, com a ajuda de uma tirania, tal como a dos Trinta, seriam capazes de restaurar os bons dias antigos. Platão conhecia melhor as coisas. O grande sociólogo via claramente que essas tiranias eram sustentadas pelo moderno espírito revolucionário e que por sua vez o alimentavam; eram forçadas a fazer concessões aos anseios igualitários do povo e, na verdade, haviam desempenhado importante papel na derrocada do tribalismo. Platão odiava a tirania. Só o ódio pode enxergar tão agudamente como ele enxergou, em sua famosa descrição do tirano. Só um inimigo genuíno da tirania podia dizer que os tiranos devem “suscitar uma guerra após outra, a fim de fazer com que o povo sinta a necessidade de um general”, de quem o salve de extremos perigos. A tirania, insistia Platão, não era a solução, como não o era nenhuma das oligarquias existentes. Embora seja imperativo conservar as pessoas no seu lugar, sua supressão não é um fim em si mesmo. O fim deve ser o retomo completo à natureza, uma limpeza completa da tela.

A diferença entre a teoria de Platão, de um lado, e a do Velho Oligarca e dos Trinta, do outro, deve-se à influência da Grande Geração. O individualismo, o igualitarismo, a fé na razão e o amor à liberdade eram novos, poderosos, e, do ponto de vista dos inimigos da sociedade aberta, perigosos sentimentos que tinham de ser combatidos. O próprio Platão sentia-lhes a influência e, no seu íntimo, combatera-os. Sua resposta à Grande Geração foi um esforço verdadeiramente grande. Foi um esforço para fechar a porta que havia sido aberta, para deter a sociedade, lançando sobre ela o fascínio de uma atraente filosofia, ímpar em profundidade e riqueza. No campo político, apenas pouca coisa acrescentou ao velho programa oligárquico, contra o qual se manifestara outrora Péricles (64). Mas descobriu, talvez inconscientemente, o grande segredo da revolta contra a liberdade, formulado em nossos dias atuais por Pareto (65): “Extrair vantagem dos sentimentos, não gastando energias em fúteis esforços para destruí-los. Em vez de mostrar-se hostil à razão, fascinou todos os intelectuais com seu brilho, lisonjeando-os e maravilhando-os com sua exigência de que os letrados deveriam governar. Embora argumentando contra a justiça convenceu todos os homens retos de que era advogado dela. Nem mesmo para si próprio admitiu plenamente que estava a combater a liberdade de pensamento pela qual Sócrates morrera; e, ao fazer de Sócrates o seu campeão, persuadiu todos os outros de que estava lutando por ela. Platão tornou-se assim, inconscientemente, o pioneiro dos muitos propagandistas que, muitas vezes de boa fé, desenvolvem a técnica de apelar para sentimentos morais e humanitários a fim de servir a finalidades imorais e anti-humanitárias. E obteve o efeito um tanto surpreendente de convencer até mesmo grandes humanitários da imoralidade e do egoísmo de seu credo (66). Não duvido de que tenha conseguido convencer a si mesmo. Sublimou seu ódio à iniciativa individual e seu desejo de deter toda mudança num amor à justiça e à temperança, num estado celestial em que todos são satisfeitos e felizes e em que a crueza da luta pelo dinheiro é substituída pelas leis da generosidade e da amizade (67). Esse sonho de unidade, beleza e perfeição, esse esteticismo e holismo e coletivismo, é tanto produto quanto sintoma do perdido espírito de grupo do tribalismo (68). É a expressão dos sentimentos dos que sofrem da tensão da civilização e um apelo a esses sentimentos, ardentemente feito. (Parte dessa tensão está em nos tornarmos cada vez mais dolorosamente conscientes das grandes imperfeições de nossa vida, das imperfeições pessoais e das institucionais, de sofrimento evitável, do desperdício, da desnecessária hediondez e, ao mesmo tempo, do fato de não nos ser impossível fazer algo com relação a tudo isso, mas de que tais melhoramentos seriam tão árduos de realizar quanto são importantes. Essa consciência aumenta a tensão da responsabilidade pessoal, de carregar a cruz de ser humano.)

VIII

Sócrates recusara transigir com sua integridade pessoal. Platão, com toda a sua intransigente limpeza da tela, foi levado por um caminho em que comprometeu sua integridade, a cada passo que deu. Foi forçado a combater o livre pensamento e a busca da verdade. Foi levado a defender a mentira, os milagres políticos, a superstição dos tabus, a supressão da verdade e, por fim, a violência brutal. A despeito da advertência de Sócrates contra a misantropia e a misologia, foi conduzido a suspeitar do homem e a recear a discussão. Apesar de seu próprio ódio à tirania, foi levado a procurar ajuda num tirano e a defender as mais tirânicas medidas. Pela lógica interna de sua meta anti-humanitária, a lógica interna da força, viu-se conduzido, sem saber, ao mesmo ponto a que outrora haviam sido levados os Trinta e a que, mais tarde, chegaram seu amigo Dio (69) e outros entre seus numerosos discípulos-tiranos. Não teve êxito na detenção da mudança social. (Só muito mais tarde, nas eras obscuras, foi ela detida pela fascinação mágica do essencialismo platônico-aristotélico). Em vez disso, conseguiu prender-se, por seu próprio feitiço, às forças que outrora havia odiado.

A lição que, assim, devemos aprender de Platão é exatamente a oposta à que que nos tenta ensinar. É uma lição que não deve ser esquecida. Embora fosse excelente o diagnóstico sociológico de Platão, seu próprio desenvolvimento mostra que a terapêutica por ele recomendada é pior do que o mal que tentava combater. Deter a mudança política não é o remédio; não pode trazer felicidade. Nunca podemos retomar à alegada inocência e beleza da sociedade fechada. Nosso sonho de um céu não pode ser realizado na terra. Uma vez que comecemos a confiar em nossa razão, a usar nossos poderes de crítica, uma vez que sintamos o apelo das responsabilidades pessoais e, com estas, a responsabilidade de auxiliar a promoção do conhecimento, não poderemos retornar a um estado de submissão implícita à magia tribal. Para aqueles que comeram da árvore do conhecimento, o paraíso é perdido (70). Quanto mais tentarmos regressar à era heroica do tribalismo, tanto mais seguramente chegaremos à Inquisição, à Polícia Secreta e a um banditismo romantizado. Se começarmos pela supressão da razão e da verdade deveremos terminar pela mais brutal e violenta destruição de tudo o que é humano (71). Não há volta possível a um estado harmonioso da natureza. Se voltarmos, então deveremos refazer o caminho integral — devemos retornar às bestas.

Não há besta nenhuma na fundação do humano, como aventou Heráclito, repetiu Platão e, infelizmente, escorregou Popper.

Eis um desfecho que devemos enfrentar abertamente, por difícil que possa ser isso para nós. Se sonharmos em retornar à infância, se formos tentados a confiar nos outros e assim ser felizes, se recuarmos da tarefa de carregar nossa cruz, a cruz da humanidade, da razão, da responsabilidade, se perdermos a coragem e vacilarmos ante a tensão, então deveremos fortalecer-nos com uma clara compreensão da simples decisão que está à nossa frente. Não podemos retornar às bestas. Mas, se quisermos permanecer humanos, então só existe um caminho, o caminho para a sociedade aberta. Devemos marchar para o desconhecido, o incerto e o inseguro, utilizando a razão de que pudermos dispor para planejar tanto a segurança como a liberdade.

Um final simplório para um livro tão importante. Uma pena!

Cabe uma observação final:

Por que gastamos – no programa Novos Pensadores e em outras iniciativas de aprendizagem da democracia – 10 semanas estudando as circunstâncias do julgamento de Sócrates (tal como podemos conhecê-lo pelos relatos de Xenofonte, Platão, Aristófanes e Aristóteles) e mais 20 semanas estudando as ideias políticas totalitárias de Platão (tal como foram escritas por ele mesmo na República, no Político e nas Leis – aproveitando a leitura de Popper)? Certamente não é por interesse de adquirir erudição, nem por diletante curiosidade histórica. É para captar os padrões míticos, sacerdotais, hierárquicos e autocráticos da cultura patriarcal que estavam presentes nas primeiras investidas autocráticas contra a democracia nascente em Atenas (nos séculos 5 e 4 a.C.). Conhecendo esses padrões em estado mais puro (hehe), podemos isolá-los (como que sequenciando seu “genoma”), o que permite reconhecê-los quando eles se manifestam em outras circunstâncias, inclusive nas que vivemos atualmente. Como a democracia é um processo de desconstituição de autocracia, aprender democracia é desaprender autocracia.

Notas

As notas estão desorganizadas (por culpa do próprio Popper, do tradutor e do editor brasileiros) e sem revisão

A legenda deste capítulo é tirada do Banquete, 193d.

1 — Cf. Rep., 419a sgs., 421b, 465c sgs., e 519e; ver também cap. 6, esp. secções II e IV.

2 — Penso não só nas tentativas medievais para deter a sociedade, tentativas que se basearam na teoria platônica de que os governantes são responsáveis pelas almas e o bem estar espiritual dos governados (e em muitos recursos práticos desenvolvidos por Platão na República e nas Leis),, mas ainda em muitos desenvolvimentos posteriores.

3 — Tentei, em outras palavras, aplicar tanto quanto possível o método que descrevi em Logik der Forschung.

4 — Cf. esp. Rep., 566e; ver também nota 63 a este capítulo.

5 — Em minha história não deve haver “vilões… O crime não é interessante… O que os homens fazem de melhor, com boas intenções… é o que realmente nos importa”. Tentei tanto quanto possível aplicar este princípio metodológico á minha interpretação de Platão. (A formulação do princípio citado nesta nota é extraída do Preface to Saint Joan, de G. B. Shaw; ver as primeiras frases da secção “Tragédia, não Melodrama”.)

6 — Para Heráclito, ver o cap. 2. Para as teorias da isonomia de Alcmeon e Heródoto, ver as notas 13, 14 e 17 ao cap. 6. Para o igualitarismo econômico de Faleas de Calcedônia, ver Pol., de Aristóteles, 1266a e Diels 5, cap. 39 (e também Hipódamo). Para Hipódamo de Mileto, ver Pol., de Aristóteles, 1267 e a nota 9 ao cap. 3. Entre os primeiros teóricos da política, devemos contar também, sem dúvida, os sofistas Protágoras, Antifonte, Hípias, Alcidamas, Licofronte; Crítias (cf. Diels 5,.fragm. 6, 30-38 e a nota 17 ao cap. 8) e o Velho Oligarca (se se tratar de duas pessoas) e Demócrito.

Quanto às expressões “sociedade fechada” e “ sociedade aberta” e seu uso num sentido bastante semelhante por Bergosn, ver a nota à Introdução. Ao caracterizar a sociedade fechada como mágica e a aberta como racional e crítica é necessário, sem dúvida, idealizar a referida sociedade. A atitude mágica não desapareceu de modo algum de nossas vidas, nem mesmo nas sociedades mais “abertas” que a civilização alcançou, e parece-me improvável que chegue a desaparecer de todo algum dia. Creio, não obstante, ser possível dar algum critério útil para a transição da sociedade fechada á aberta. Essa transição se verifica quando se reconhece conscientemente, pela primeira vez, que as instituições sociais são feitas pelo homem e quando se discute sua modificação voluntária em função da maior ou menor conveniência para a consecução dos objetivos ou finalidades humanos. Ou, para falar em forma menos abstrata, a sociedade fechada cai quando o temor sobrenatural que a ordem social inspira cede lugar a uma interferência ativa e á busca consciente de interesses pessoais ou coletivos. É evidente que o contacto cultural através da civilização pode dar origem a essa queda, e mais ainda o desenvolvimento de um setor empobrecido, vale dizer, sem terras, da classe governante.

Posso mencionar aqui que não gosto de falar de “derrocada social” em termos gerais. A meu ver, a derrocada de uma sociedade fechada, tal como é aqui descrita, é assunto perfeitamente claro, mas em geral a expressão “ derrocada social” parece expressar a ideia de que o observador não gosta do curso dos acontecimentos que relata. Além disso, a expressão tem sido mal utilizada com muita frequência. Reconheço, entretanto, que, com ou sem razão, o membro de uma sociedade que está a sofrer esse processo poderia, efetivamente, ter a sensação de que “ tudo está vindo abaixo”. Pouca dúvida deve haver de que para os membros do antigo regime ou da nobreza russa, a Revolução Francesa ou a Russa devem ter se apresentado como uma completa derrocada social, embora, para os novos governantes, surgisse de modo muito diferente.

Toynbee (cf. A Study of History, V, 23-35; 338) indica “o aparecimento de um cisma no corpo social” como critério de uma sociedade derrocada. Visto como o cisma, sob a forma de desunião de classe, indubitàveljnente ocorreu na sociedade grega, muito antes da Guerra do Peloponeso, não fica inteiramente claro por que ele sustenta que essa guerra (e não a queda do tribalismo) marque o que ele descreve como’ a derrocada da civilização helênica. (Cf. também notas 45 (2) ao cap. 4 e npta 8 ao presente capítulo).

Com referência á similaridade entre os Gregos e os Maoris, certas observações podem ser encontradas em Early Greek Philosophy, 2, de Burnet, esp. páginas 2 e 9.

7 — Devo esta crítica da teoria orgânica do estado, juntamente com muitas outras sugestões, a J. Popper-Lynkeus; escreve ele (Die allgemeine Nãhrpflicht, 2.a ed., 1923, p. 71 sg.) : “ O excelente Menenio Agripa… convenceu a plebe insurreta a voltar (a Roma) contando-lhe o símile dos membros do corpo que se rebelaram contra o ventre… Por que ninguém lhe respondeu o seguinte: “ Muito bem, Agripa! Se deve haver um ventre, então nós, os plebeus, queremos ser esse ventre de agora em diante; e vós… podeis desempenhar o papel dos membros!” (Para o símile, ver Tito Lívio, II, 32, e o Coriolano de Shakespeare, ato I, cena 1.)

Por outro lado, deve-se admitir que a “ sociedade fechada” tribal tem certo caráter orgânico, devido precisamente á ausência de tensão social. O fato de que semelhante sociedade possa basear-se na escravidão (como no caso da Grécia) não cria por si só uma tensão social, porque às vezes os escravos não fazem mais parte da sociedade do que o gado; suas aspirações e problemas não criam qualquer pressão que possa ser experimentada pelos governantes como um verdadeiro problema no seio da sociedade. O crescimento da população, entretanto,, cria esse problema. Em Esparta, que não estabeleceu colonias, esse aumento levou primeiro á subjugação das tribos vizinhas, para conquistar-lhes o território, e depois a um esforço consciente para deter qualquer mudança mediante medidas que incluíam o controle do aumento populacional pela instituição do infanticídio, o controle dos nascimentos e a homossexualidade. Platão via claramente tudo isto quando insistia (talvez sob a influência de Hipódomo) na necessidade de estabelecer um número fixo de cidadãos e quando recomendava nas Leis a colonização, o controle de nascimentos e a homossexualidade (que encontra a mesma explicação na Política de Aristóteles, 1272a 23) para que se mantivesse constante o índice demográfico; ver Leis, 740d-741a e 838e. (Para a recomendação que Platão faz do infanticídio, na Rep., e para problemas similares, ver especialmente a nota 34 ao cap. 4 e, ainda, as notas 22 e 63 ao cap. 10 e 39 (3) ao cap. 5.)

É claro que todas essas práticas estão longe de ser completamente explicáveis em termos racionais; e a homossexualidade dória, mais especialmente, relaciona-se intimamente com a prática da guerra e com as tentativas para tornar a aprender, na vida da horda guerreira, uma satisfação emocional que fora amplamente destruída pela derrocada do tribalismo; ver esp. a “horda guerreira composta de amantes” glorificada por Platão no Banquete, 178e. Nas Leis, 630b, sg., 836b/c, Platão desaprova a homossexualidade (cf., entretanto, 838e).

8 — Suponho que o que chamo “tensão da civilização” seja semelhante ao fenômeno que Freud tem em mente quando escreveu “A civilização e seus descontentes” Toynbee fala de um Sentimento de Deriva (A Study of History, V, 412 sgs.) mas limita-se às “épocas de desintegração”, ao passo que eu acho minha tensão muito bem expressa em Heráclito (de fato, podem ser encontrados traços em Hesíodo) — muito antes do tempo em que, de acordo com Toynbee, sua “sociedade helénica” começa a “ desintegrar-se”. Meyer fala do desaparecimento do “ estado de nascimento, que determinara a posição de cada homem na vida, seus direitos e deveres civis e sociais, juntamente com a garantia de ganhar a vida (Geschichte des Altertums, III, 542)”. Isto dá uma cabal descrição da tensão na sociedade grega do quinto século A. C.

9 — Outra profissão desse tipo que levava a uma independência intelectual relativa era a do bardo errante. Penso aqui principalmente em Xenófanes, o progressista; cf. o parágrafo sobre o protagorismo na nota 7 ao cap. 5. (Homero também pode ser um caso a notar). É claro que essa profissão era accessível a pouquíssimos homens.

Acontece que não tenho qualquer interesse pessoal em questões de comércio nem em pessoas de mentalidade comercial. Mas a influência da iniciativa comercial parece-me bem importante. Dificilmente foi por acaso que a máis velha civilização conhecida, a da Suméria, tenha sido uma civilização comercial com fortes tendências democráticas, e que as artes da escrita e da aritmética, assim como os começos da ciência, estivessem estreitamente ligados à sua vida comercial (cf. também texto de nota 24 deste cap.

10 — Tucídides, I, 93. (Sigo principalmente a tradução de Jowett). Para o problema da parcialidade de Tucídides, cf. nota 15 (1) a este capítulo.

11 — Esta e a citação seguinte: ob. cit., I, 107. O relato de Tucídides sobre os oligarcas traidores mal pode ser reconhecido na versão apologética de Meyer (Gesch. d. Altertums, III, 594), apesar do fato de não ter ele melhores fontes; torceu-o, simplesmente, até ficar irreconhecível. (Quanto á parcialidade de Meyer, ver nota 15 (2) ao presente capítulo.) — Sobre traição semelhante (em 479 A. G, na véspera de Platéia) cf. Plutarco, Aristides, 13.

12 — Tucídides, III, 82-84. A seguinte conclusão da passagem é característica do elemento individualista e humanitário presente em Tucídides, membro da Grande Geração (ver abaixo, e nota 27 a este cap.) e, como acima mencionamos, moderado: “Quando os homens tiram
vingança, tornam-se precipitados; não consideram o futuro e não hesitam em anular aquelas leis comuns de humanidade em que cada indivíduo deve confiar para sua própria segurança, caso lhe sobrevenha uma calamidade; esquecem que, em sua própria hora de necessidade, as procurarão em vão”. Para maior discussão da parcialidade de Tucídides, ver nota 15 (1) a este capítulo.

13 — Aristóteles, Política, VIII, (V), 9, 10/11; 1310a. Aristóteles não concorda com essa aberta hostilidade; acha mais sábio que “os verdadeiros Oligarcas finjam ser advogados da causa do povo” e sente-se ansioso por dar-lhes bom conselho: “ Devem tomar, ou pelo
menos fingir tomar, a linha oposta, incluindo em seu juramento o compromisso: não farei dano ao povo.”

14 — Tucídides, II, 9.

15 — Cf. E. Meyer, Gesch. d. Altertums, IV (1915), 368.

(1) A fim de julgar a alegada imparcialidade de Tucídides, ou antes, sua inclinação involuntária, deve-se comparar seu tratamento da importantíssima questão de Platéia, que assinalou a explosão da primeira parte da Guerra do Peloponeso (Meyer, acompanhando Lísias, chama esta parte a guerra arquidamiana; cf. Meyer, Gesch. d. Altertums, IV, 307 e V, p. VII), com isso fazendo da questão de Meios a primeira manobra agressiva de Atenas na segunda parte (a guerra de Alcibíades). A guerra arquidamiana irrompeu com um ataque á democrática Platéia, ataque relâmpago realizado, sem a intervenção de prévia declaração de guerra, por Tebas, aliada da totalitária Esparta, cujos partidários residentes em Platéia, a quinta-coluna oligárquica, abriram à noite as portas da cidade ao inimigo. Embora p incidente se revista da maior importância como causa imediata da guerra, Tucídides o narra com relativa brevidade (II, 1-7; não comenta, por exemplo, o aspecto moral, limitando-se a qualificar “a questão de Platéia como uma patente violação da trégua dos trinta anos”; mas censura os democratas de Platéia (II, 5) pelo duro tratamento que infligiram aos invasores, chegando mesmo a manifestar certas dúvidas sobre a possibilidade de haverem faltado a um juramento. Este método expositivo contrasta consideravelmente com o famoso e mais trabalhado, embora sem dúvida fictício, Diálogo Meliano (Tuc., V, 85-113), onde Tucídides cuida de denegrir o imperialismo ateniense. Chocante como pareça ter sido a questão meliana, (Alcibíades pode ter sido responsável; cf. Plutarco, Alc., 16), os atenienses não atacaram sem aviso e tentaram negociar antes de empregar a força. Outro caso a notar, relativo à atitude de Tucídides, é seu louvor (em VIII, 68) ao chefe do partido oligárquico, o orador Antifonte (que é mencionado no Menexeno de Platão, 236, como mestre de Sócrates; cf. fim da nota 19 ao capítulo 6).

(2) E. Meyer é uma das maiores autoridades modernas sobre esse
período. Mas, para avaliar seu ponto de vista, devem ser lidas as seguintes observações desdenhosas sobre os governos democráticos (há muitíssimas passagens dessa espécie): “Muito mais importante (isto é, do que armar-se) era continuar a entreter o jogo das disputas partidárias e assegurar a ilimitada liberdade, interpretada por todos de acordo com os interesses particulares de cada um (V, 61)”. Mas será mais, indago, do que uma interpretação “de acordo com os interesses particulares” quando Meyer escreve: “A admirável liberdade da democracia e de seus líderes manifestamente demonstrou sua insuficiência” (V, 69) ? Acerca dos líderes democráticos atenienses que em 403 A. C. recusaram render-se a Esparta (e cuja recusa foi mais tarde justificada até pelo sucesso, embora nenhuma justificação dessas seja necessária) Meyer diz: “Alguns desses líderes podem ter sido honestos fanáticos;… podem ter sido tão extremamente incapazes de qualquer julgamento, são que realmente acreditavam (no que diziam, a saber: que Atenas nunca deveria capitular.” (IV, 65). Meyer censura outros historiadores, com os mais fortes termos, por serem parciais. (Cf. p. ex., as notas em V, 89 e 102, onde defende o tirano Dionísio, o Velho, contra ataques supostamente parciais, e 113, em baixo, a 114, em cima, onde também o exasperam alguns “ historiadores papaga’antes” anti-Dionisianos). Assim, chama Grote “um líder radical biglês”’e diz que sua obra “não é uma história, mas uma apologia de Atenas”; e orgulhosamente se compara a homens tais: “Dificilmente será possível negar que nos tornamos mais imparciais em questões de política e que chegamos, portanto, a mais correto e mais compreensivo julgamento histórico.” (Tudo isto em III, 239.)

Por trás do ponto de vista de Meyer está Hegel. Isto explica tudo (como será claro, espero, aos leitores do capítulo 12). O hegelianismo de Meyer torna-se evidente na seguinte observação, -que é uma citação inconsciente, mas quase literal de Hegel; está em III, 256, quando Meyer fala de uma “avaliação chata e moralizante, que julga os grandes empreendimentos políticos com o metro da moralidade civil (Hegel fala de “ladainha de virtudes privadas”), ignorando os fatores mais profundos, verdadeiramente morais, do estado e as responsabilidades históricas.” (Isto corresponde exatamente aos trechos de Hegel citados no capítulo 12; cf. nota 75 ao cap. 12). Desejo valer-me uma vez mais desta oportunidade para tornar claro que não pretendo ser imparcial em meu julgamento histórico. Sem dúvida, faço o que posso para verificar os fatos de saliência. Mas estou consciente de que minhas avaliações (como as de qualquer um) devem depender inteiramente de meus pontos de vista. Admito isto, embora acredite plenamente em meus pontos de vista, isto é, em que minhas avaliações são certas.

16 — Cf. Meyer, ob. cit., IV, 367.

17 — Cf. Meyer, ob. cit., IV, 464.

18 — Deve-se ter em mente, porém, que, como se queixavam os reacionários, a escravidão em Atenas estava á beira da dissolução. Cf. a prova mencionada nas notas 17, 18 e 29 ao cap. 4; e mais, notas 13 ao cap. 5, 48 ao cap. 8 e 27-37 ao presente capítulo.

19 — Cf. Meyer, ob. cit., IV, 659. Meyer assim comenta este movimento dos democratas atenienses: “ Ora, quando era tarde demais, fizeram um movimento no rumo de uma constituição política que mais tarde ajudou Roma… a lançar os alicerces de sua grandeza.” Em outras palavras, em vez de creditar aos atenienses uma invenção constitucional de primeira ordem, censura-os; e o crédito é dado a Roma, cujo conservantismo é mais do gosto de Meyer.

O incidente na história romana a que Meyer alude é a aliança, ou federação, de Roma com Gabies. Mas imediatamente antes, na mesma página em que Meyer descreve essa federação (V, 135), pode-se ler também que: “todas essas cidades, ao se incorporarem a Roma, perderam sua existência… sem sequer receber uma organização política do tipo da “demes” ática”. Um pouco mais adiante, em V, 147, encontra-se nova referência a Gabies, e Roma, em sua generosa “liberalidade”, é de novo contraposta a Atenas; mas no fim da mesma página e no começo da seguinte, Meyer relata sem crítica o saque e a destruição da cidade de Veii por parte de Roma.

A pior de todas essas destruições romanas é talvez a de Cartago. Verificou-se quando Cartago já não constituía perigo para Roma, roubando a Roma, e a nós, as valiosíssimas contribuições que Cartago poderia ter feito á civilização. Limito-me a mencionar os grandes tesouros de informação geográfica que ali foram destruídos. (A história do declínio de Cartago não é dissemelhante da da queda de Atenas, em 404 A. G, discutida adiante neste capítulo; ver nota 48; os oligarcas de Cartago preferiram a queda de sua cidade á vitória da democracia.)

Mais tarde, sob a influência do estoicismo, derivado indiretamente de Antístenes, Roma começou a desenvolver pontos de vista altamente liberais e humanitários. O ponto culminante dessa evolução se produziu naqueles séculos de paz que sucederam a Augusto (cf., p. ex., a obra de Toynbee A Study of History, V, 343-346), mas é aqui que alguns historiadores românticos vêem o começo de seu declínio.

Com referência a esse próprio declínio, é sem dúvida ingênuo e romântico acreditar, como ainda fazem muitos, que ele se deveu á degeneração causada pela prolongada paz, ou á desmoralização, ou á superioridade dos povos bárbaros mais jovens, etc.; em suma, á súper- alimentação. (Cf. nota 45 (3) ao cap. 4). O devastador resultado de violentas epidemias (cf. H. Zinsser, Rats, Lice and History, 1937, 131 sgs.) e a descontrolada e progressiva exaustão do solo, e com isso a derrocada da base agrícola do sistema econômico romano (cf. G. Simkhovitch, “Feno e História” e “A Queda de Roma Reconsiderada”, em Towards the Understanding of Jesus, 1927) parecem ter sido algumas das causas principais. Cf. também W. Hegemann, Entlarvte Geschichte (1934).

20 —- Tucídides, VII, 28; cf. Meyer, ob. cit., IV, 535. A importante observação de que “isto lhes renderia mais” permite-nos, sem dúvida, fixar um limite superior aproximado para a proporção entre os tributos prèviamente impostos e o volume do comércio.

21 — Isto é uma alusão a um trocadilhozinho feio que devo a P. Milford: “ Uma Plutocracia é preferível a uma Furtocracia”. (A Plutocracy is preferable to a Lootocracy).

22 — Platão, Rep., 423b. Para o problema de manter constante o volume da população, cf. nota 7, acima.

23 — Cf. Meyer, Gesch. d. Altcrtums, IV, 577.

24 — Ob. cit., V, 27. Cf. também nota 9 a este capítulo e o texto de nota 30 do capítulo 4. * Sobre a passagem de Leis, ver 742a-c. Platão desenvolve aí a atitude espartana. Expõe “uma lei que proíbe que os cidadãos particulares possuam qualquer quantidade de ouro ou prata… A nossos cidadãos só devem ser permitidas moedas que tenham curso legal entre nós, mas nenhum valor em outra parte… Em razão de uma força expedicionária, ou de visita oficial ao exterior, tal como embaixadas ou outras missões necessárias… é mister que o estado possua moeda (de ouro) helênica. E se um cidadão particular for obrigado a ir ao estrangeiro, poderá fazê-lo, desde que tenha obtido dos magistrados a devida permissão. E se lhe tiver restado, ao regressar, algum dinheiro estrangeiro, deverá então entregá-lo ao estado e aceitar o seu equivalente em moeda doméstica. E se alguém for encontrado a guardá-lo, deverá ser-lhe ele confiscado, e quem o importou, como quem quer que tenha deixado de denunciá-lo, estará sujeito a maldições e condenações, além de uma multa não inferior ao total do dinheiro envolvido.” Ao ler este trecho, ficamos a pensar se não injuriamos Platão ao descrevê-lo como um reacionário que copiava as leis da cidadania totalitária de Esparta, pois aqui ele se antecipa mais de dois mil anos aos princípios e práticas que hoje em dia são quase universal- . mente aceitos como política sadia pelos mais progressistas governos democráticos da Europa Ocidental (os quais, como Platão, esperam que algum outro governo ande atrás da “ moeda de ouro helênica universal”.

Uma passagem posterior (Leis, 950d) tem, entretanto, tom de menor liberalidade ocidental. “ Primeiro, nenhum homem menor de quarenta anos obterá permissão para ir ao exterior, seja qual for o lugar. Segundo, ninguém obterá permissão na qualidade de particular; a serviço público, a permissão só poderá ser concedida aos arautos, embaixadores e a certas missões de inspeção… E esses homens, apás regressarem, ensinarão aos jovens que as instituições políticas dos outros países são inferiores ás do seu próprio.” Leis semelhantes são baixadas para a recepção de estrangeiros. Pois “ a intercomunicação entre os estados necessariamente resulta em mistura de caracteres… e na importação de novos costumes; e isso deve causar o maior dano ao povo que goza… das leis retas.” (949e/950a).

25 — Isto é admitido por Meyer (ob. cit. IV, 433 sg.) que, numa passagem muito interessante, diz dos dois partidos: “ cada um deles proclama que defende “o estado paternal”… e que o adversário está infectado do moderno espírito de egoísmo e violência revolucionária. Na realidade, ambos estão infectados. Os costumes e a religião tradicional acham-se enraizados mais profundamente no partido democrático; seus inimigos aristocráticos, que lutam sob a bandeira da restauração dos tempos antigos, estão… inteiramente modernizados”. Cf. também ob. cit., V, 4 sgs., 14 e nota seguinte.

26 — Da Constituição Ateniense de Aristóteles, cap. 34, § 3, aprendemos que os Trinta Tiranos adotaram a princípio o que pareceu a Aristóteles um programa “moderado”, a saber, o do “estado paternal”. — Quanto ao niilismo e á modernidade de Crítias, cf. sua teoria da religião discutida no cap. 8 (ver esp. nota 17 a esse capítulo e nota 48 ao presente capítulo).

27 — É muito interessante confrontar a atitude de Sófocles em relação á nova fé com a de Eurípides. Sófocles queixa-se (cf. Meyer, ob. cit., IV, III) : “ É errado que… os de baixa estirpe floresçam, enquanto os bravos e os nobremente nascidos são infortunados”. Eurípides replica (com Antifonte; cf. nota 13 ao cap. 5) que a distinção entre os de nobre e os de baixo nascimento (especialmente escravos) é meramente verbal: “ Só esse nome traz vergonha ao escravo”. — Quanto ao elemento humanitário em Tucídides, cf. a citação na nota 12 a este capítulo. Para a questão de verificar até onde a Grande Geração se ligava a tendências cosmopolitas, ver a evidência exposta na nota 48 ao cap. 8, esp. as testemunhas hostis, isto é, o Velho Oligarca, Platão e Aristóteles.

28 — “Misólogos”, ou inimigos do argumento racional, são comparados por Sócrates aos “misantropos”, ou inimigos dos homens; cf. Fedon, 89c. Em contraste, cf. a observação misantrópica na Rep., 496c-d (cf. notas 57 e 58, cap. 8).

29 — A citação deste parágrafo é dos fragmentos de Demócrito, Diels, Vorsokratiker, 2, frag. ns. 41, 179, 34, 261, 62, 55, 251, 247 (autenticidade discutida por Diels e por Tarn, cf. nota 48 ao cap. 8), 118.

30 — Cf. texto á nota 16, cap. 6.

31 — Cf. Tucídides, II, 37-41. Cf. também observações na nota 16 ao cap 6.

32 — Cf. T. Gomperz, Greek Thinkers, 1. V, cap 13, 3 (ed. al., II, 407).

33 — A obra de Heródoto, com sua tendência pro-democrática, aparece (cf. p. ex., III, 80) cerca de um ano ou dois depois da oração de Péricles (cf. Meyer, Gesch. d. Altertums, IV, 369).

34 — Isso tem sido indicado, p. ex., por T. Gomperz, Greek Thinkers, V, 13, 2 (ed. al. II, 406 sg.) ; as passagens da Rep. para que ele chama a atenção são: 557d e 561c sgs. A similaridade é sem dúvida intencional. Cf. também a edição de Adam da Rep., vol. II, 23S, nota a 557d26. Ver também Leis, 699d/e sgs. e 704d-707d. Para observação semelhante com referência a Heródotb, III, 80, ver nota 17 ao cap. 6.

35 — Alguns sustentam ser o Menexeno espúrio, mas eu creio que isso apenas mostra sua tendência para idealizar Platão. O Menexeno é ratificado por Aristóteles, que cita uma passagem déle como devida ao “Sócrates do Diálogo Funeral” (Retórica, I, 9, 30 = 1367b8; e III, 14, 11 = 1415b30). Ver esp. fim da nota 19 ao cap. 6; também nota 48, cap. 8, e notas 15 (1) e 61 a este capítulo.

36 — A Constituição de Atenas do Velho Oligarca, (ou Pseudo Xenofonte) foi publicada em 424 A. C. (de acordo com Kirchhoff, citado por Gomperz, Greek Thinkers, ed. al., I, 477). Quanto a ser atribuída a Crítias, cf. J. E. Sandys, Aristotle’s Constituion of Athens, Introdução, IX, esp. nota 3. Ver também notas 10 e 11 a este capítulo. Quanto a sua influência sobre Platão, ver esp. nota 59 ao cap. 8 e Leis, 704a-707d. (Cf. Aristóteles, Pol., 1326b; Cícero, De Republica, II, 3 e 4.)

37 — Aludo ao título do livro de M. M. Rader, No Compromise — The Conflict between Two Worlds (1939), excelente crítica da ideologia do fascismo. Sobre a alusão posterior, neste parágrafo, à advertência de Sócrates contra a misantropia e a misologia, ver nota 28 a este capítulo.

38 — (1) Sobre a teoria de que aquilo que pode ser chamado a “invenção do pensamento crítico” consiste na fundação de uma nova tradição — a tradição de discutir criticamente os mitos e teorias tradicionais — ver agora minha palestra Towards a Rational Theory of Tradition, publicada no Rationalist Annual, 1949. (Só uma nova tradição assim pode explicar que, na escola jónica, as três primeiras gerações produzissem: três filosofias diferentes). As escolas (especialmente as Universidades) conservaram desde então certos aspectos de tribalismo. Mas não devemos pensar só em seus emblemas, ou no Velho Elo Escolar, com todas as suas implicações sociais de casta, etc., mas também no caráter patriarcal e autoritário de tantas escolas. Não foi só por acaso que Platão, quando fracassou no restabelecimento do tribalismo, fundou em lugar disso uma escola; nem é por acaso que as escolas são tantas vezes fortalezas da reação e, professores, ditadores em edição de bolso.

Como ilustração do caráter tribalista dessas antigas escolas, darei aqui uma lista de alguns dos tabus dos primitivos pitagóricos. (A lista é de Early Greek Philosophy, 2, de Burnet, 160, que a tira de Diels, cf. Vorsokratiker 5, vol. I, p. 97 sgs.; e ver também a prova de Aris- toxeno, em ob. cit., p. 101). Burnet fala de “genuínos tabus de tipo completamente primitivo”. — Abster-se de feijões. — Não apanhar o que caiu. — Não tocar num galo branco. — Não partir pão. — Não pisar num travessão. — Não atiçar o fogo com ferro. — Não comer de um pão inteiro. — Não arrancar uma grinalda. — Não se sentar numa medida de quartilho. — Não comer coração. — Não caminhar por uma estrada. — Não deixar andorinhas no telhado de casa. — Ao tirar a panela do fogo, não deixar sua marca nas cinzas, mas desmanchá-las. — Não olhar em espelho ao lado de uma luz. — Depois de levantar-se, enrolar as roupas de cama e apagar nelas a marca do corpo.

39 — Interessante paralelismo a esse desenvolvimento é a destruição do tribalismo pelas conquistas persas. Essa revolução social levou, como acentua Meyer (ob. cit, vol. III, 167 sgs.), ao surgimento de certo número de religiões proféticas — isto é, em nossa terminologia, histo- ricistas — do destino, da degeneração e da salvação, entre as quais a do “povo escolhido”, os Judeus (cf. cap. 1).

Algumas dessas religiões se caracterizavam pela doutrina de que a criação do mundo não está ainda concluída, mas prossegue. Isto deve ser comparado com a primitiva concepção grega do mundo como um edifício e com a destruição heracliteana dessa concepção, descrita no cap. 2 (ver nota 1 a esse capítulo). Pode-se mencionar aqui que mesmo Anaximandro não gostava muito desse edifício. Sua ênfase sobre o caráter ilimitado, ou indeterminado, ou indefinido do material do edifício pode ter sido a expressão de um sentimento de que o edifício podia não possuir arcabouço definido, que podia estar em fluxo (cf. nota seguinte).

O desenvolvimento dos mistérios dionisíacos e órficos na Grécia provavelmente depende do desenvolvimento religioso do oriente (cf. Heródoto, II, 81). O pitagorismo, como bem se sabe, tinha muito de comum com o ensinamento órfico especialmente com relação á-teoria da alma (ver também nota 44, a seguir). Mas o pitagorismo tinha um sabor definidamente aristocrático, em contraposição ao ensinamento órfico, que representava uma espécie de versão “ proletária” desse mo-vimento. Meyer (ob. cit, III, p. 428, § 246) provàvelmente tem razão ao descrever os inícios da filosofia como uma contra-corrente natural em oposição ao movimento dos mistérios; cf. a atitude de Heráclito nesses assuntos (fragm. 5, 14, 15; e 40, 129, Diels 5; 124-129; e 16-17, Bywater). Ele odiava os mistérios e Pitágoras; o pitagórico Platão desprezava os mistérios (Rep., 364e sg.; cf. todavia Adam, apêndice IV ao livro IX da Rep., vol. II, 378 sgs. de sua edição).

40 — Para Anaximandro (cf. nota precedente) ver Diels 2, fragm. 9: “A origem das coisas é o indeterminado de onde são elas geradas, aí se devem dissolver, por necessidade. Pois devem fázer penitência umas às outras por sua injustiça, de acordo com a ordem do tempo”. A interpretação de Gomperz foi a de que a existência individual parecia a Anaximandro uma injustiça (Greek Thinkers, ed. al., vol. I, p. 46; notar a similaridade com a doutrina da justiça de Platão) ; mas essa interpretação tem sido severamente criticada.

41 — Parmenides foi o primeiro a procurar salvar-se dessa tensão interpretando seu sonho do mundo paralisado como uma revelação da verdadeira realidade, e o mundo de fluxo em que vivia como um sonho. “O ser real é indivisível. É sempre um todo integrado, que nunca transgride sua ordem; nunca se dispersa e, assim, nunca se reune” (D5, fragm. 2). Sobre Parmenides, cf. também nota 22 ao cap.-3 e texto.

42 — Cf. nota 9 ao presente capítulo (e nota 7 ao cap. 5).

43 — Cf. Meyer, Geschichte des Altertums, III, 443, e IV, 120 sg.

44 — J. Burnet, “ Á Doutrina Socrática da Alma”, Proceedings of the British Academy, VIII (1915/16), 235 sgs. Sinto-me tanto mais desejoso de acentuar esta concordância parcial quanto não posso comcordar com Burnet na maior parte de parte de suas outras teorias, especialmente as que se referem às relações de Sócrates com Platão; sua opinião, em especial, de que politicamente Sócrates é o mais reacionário dos dois (Greek Philosophy, I, 210) parece-me simplesmente insustentável. Cf. nota 56 a este capítulo.

Com relação à doutrina de Sócrates sobre a alma, creio que Burnet tem razão ao insistir em que é socrática a sentença “cuida de tua alma”) pois essa sentença expressa os interesses morais de Sócrates. Mas acho inteiramente improvável que Sócrates sustentasse qualquer teoria metafísica da alma. As teorias de Fedon, República, etc., a meu ver, são de origem indubitavelmente pitagórica. (Para a teoria órfico- pitagórica de que o corpo é o túmulo da alma, cf. Adam, apêndice IV ao livro,IX de Rep.; ver também a nota 39 a este capítulo). E em vista da clara afirmação de Sócrates em Apologia, 19c, de que ele “nada em absoluto tinha que ver com todas essas coisas;’, isto é, com as especulações acerca da natureza (ver nota 56 (5) a este capítulo), não posso concordar de forma alguma com a opinião de Burnet no sentido de que Sócrates era um pitagórico, nem com a de que ele tinha uma doutrina metafísica definida sobre a “ natureza” da alma.

Acredito que a sentença de Sócrates “ cuida de tua alma” constitui uma expressão de seu individualismo moral (e intelectual). Poucas doutrinas suas me parecem tão bem sustentadas pelos dados disponíveis como sua teoria individualista da auto-suficiência moral do homem virtuoso. (Ver as provas mencionadas nas notas 25 ao cap. 5 e 36 ao cap. 6). Mas isto se acha intimamente relacionado com a ideia manifestada na sentença “cuida de tua alma”. Com sua insistência sobre a auto-suficiência, Sócrates queria expressar o seguinte: podem destruir teu corpo, mas jamais conseguirão destruir tua integridade moral. Se esta for a que mais te importe, não te poderão causar realmente dano.

Parece que Platão, ao travar conhecimento com a teoria metafísica pitagórica da alma, sentiu que a atitude moral socrática necessitava de um fundamento metafísico, especialmente uma teoria da sobrevivência. Em consequência, substituiu a ideia de que ‘‘ não é possível destruir a integridade moral” pela da indestrutibilidade da alma. (Cf. também notas 9 sgs. ao cap. 7). Contra essa interpretação, tanto os metafísicos como os positivistas poderiam argumentar que não pode existir uma ideia moral — não metafísica — da alma, tal como a que atribuo a Sócrates, visto como qualquer tratamento que dermos á alma deve necessariamente ser metafísico. Não tenho maiores esperanças de convencer os metafísicos platônicos, mas tratarei de mostrar aos positivistas (materialistas, etc.), em troca, que eles também crêem numa “alma” em sentido muito semelhante ao que atribuo a Sócrates, e que a maioria deles valoriza essa “ alma” muito mais do que o corpo.

Primeiramente, até os positivistas devem admitir que é possível fazer uma distinção perfeitamente empírica e com “significado”, embora algo imprecisa, entre as enfermidades “ físicas” e as “ psíquicas”. Na realidade, essa distinção é de considerável importância prática para a organização dos hospitais, etc. (É muito provável que algum dia seja superada por um critério mais exato, mas isso é outra questão). Ora, a maioria dentre nós, e mesmo os positivistas, preferiríamos, se de nós dependesse, uma enfermidade física benigna a uma benigna enfermidade mental. Os próprios positivistas, além disso, prefeririam, provavelmente, uma longa e incurável enfermidade física (desde que não fosse demasiado dolorosa) a uma enfermidade igualmente prolongada e incurável das faculdades mentais, ou talvez mesmo a uma enfermidade mental curável. Desse modo, parece-me que podemos dizer, sem nos valermos de termos metafísicos, que os que assim pensam cuidam de suas “almas” mais que de seus “corpos” (Cf. Fedon, 82d: “Cuidam de suas almas e não são criados de seus corpos”. Ver também Apologia, 29d-30b). E esta forma de expressar-se seriá perfeitamente independente de qualquer teoria que possam ter com relação á “alma”, ainda que sustentem que, em última instância, esta também faz parte do corpo, não sendo qualquer doença mental mais do que uma enfermidade física. (O que veria a significar mais ou menos o seguinte: estimam o cérebro mais do que as outras partes do organismo).

Podemos agora passar a uma consideração semelhante de outra ideia da “alma” que se acha ainda mais próxima da ideia socrática. Muitos estamos dispostos a sofrer consideráveis agruras físicas apenas em vista de fins intelectuais. Estamos, por exemplo, dispostos a sofrer a fim de impulsionar o conhecimento científico e também para favorecer nosso próprio desenvolvimento intelectual, isto é, a fim de alcançar “sabedoria”. (Para o intelectualismo de Sócrates, cf. por exemplo o Criton, 44d/e e 47b). Coisa semelhante poderíamos dizer da promoção de fins morais, como a justiça igualitária, a paz, etc. (Cf. Criton, 47e/48a, onde Sócrates explica que entende por “alma” aquela parte de nosso ser que “melhora com a justiça e se corrompe com a injustiça”.) E muitos somos os dispostos a afirmar, com Sócrates, que é precisamente a possibilidade de adotar tal atitude o que nos dá orgulho de ser homens, e não animais.

Tudo isso, creio eu, pode ser dito sem qualquer referência a uma teoria metafísica da “natureza da alma”. E não vejo razão alguma para que devamos atribuir a Sócrates teoria semelhante, ante sua clara afirmativa de nada ter com especulações desse jaez.

45 — No Górgias, que creio ser socrático em parte (embora os elementos pitagóricos assinalados por Gomperz mostrem também boa proporção de platonismo; cf. nota 56 a este capítulo), Platão coloca nos lábios de Sócrates um ataque contra “os portos, cais e muralhas” de Atenas e contra os tributos ou taxas impostos a seus aliados. Esses ataques, tais como expressos, são indubitavelmente de Platão, o que poderia explicar por que se parecem tanto com os dos oligarcas. Acho, porém, inteiramente possível que Sócrates haja sustentado pensamentos semelhantes em se anelo por salientar aquelas coisas que, a meu ver, lhe importavam mais que quaisquer outras. Mas acredito que ele teria amaldiçoado a ideia de que sua crítica moral se pudesse converter em traidora propaganda oligárquica contra a sociedade aberta e, em particular, contra Atenas, que a representava. (Sobre a questão da lealdade de Sócrates, cf. esp. nota 53 a este capítulo e o texto).

46 — As figuras típicas, nas obras de Platão, são Calicles e Tra- símaco. Historicamente, as versões mais aproximadas talvez sejam as de Teramenes e Crítias; Alcibíades também, embora seja muito difícil julgar-lhe o caráter e os atos.

47 — As observações seguintes são altamente especulativas e não incidem sobre minha argumentação. Considero possível que a base do Primeiro Alcibíades seja a conversão do próprio Platão por Sócrates, isto que, que Platão haja escolhido neste diálogo a figura de Alcibíades para retratar sua própria experiência. Além disso, poderoso fator deve ter operado para induzí-lo a contar a história de sua conversão; com efeito, Sócrates, quando acusado de responsável pelos delitos de Alcibíades, Crítias e Cármides (ver mais adiante), em sua defesa perante o tribunal, referiu-se a Platão como exemplo vivo e testemunha de sua verdadeira influência educativa. Não parece improvável que Platão, com seu empenho em deixar um testemunho literário, se tenha sentido impelido a contar a história de suas relações com Sócrates, história que, entretanto, não podia contar perante o tribunal (cf. Taylor, Sócrates, nota 1 á pg. 105). Usando o nome de Alcibíades e as circunstâncias especiais que o rodearam (p. ex., seus ambiciosos sonhos políticos, que bem poderiam ter sidú semelhantes aos de Platão antes de sua conversão), alcançaria seu propósito apologético (cf. texto de notas 49-50), demonstrando que a influência moral de Sócrates em geral e sobre Alcibíades em particular era muito diferente da que seus acusadores afirmavam. Não acho improvável que o Carmides seja, em grande parte, um auto-retrato. (Não é sem interesse notar que. o próprio Platão empreendeu conversões semelhantes, embora de modo diverso, até onde podemos julgar, não tanto por direto apêlo pessoal moral, mas antes pelo ensinamento institucional da matemática pitagórica como um pré-requisito da intuição dialética da Ideia do Bem. Cf. as histórias sobre suas tentativas para converter Dionísio, o Moço). Para o Primeiro Alcibíades e problemas relacionados, ver também Grote, Platão, I, esp. págs. 351-355.

48 — Cf. Meyer, Gesch. d. Altertums, V, 38 (e a Helénica de Xenofonte). No mesmo volume, pgs. 19-23 e 36-44 (ver esp. p. 36) podem achar-se todas as provas necessárias para a interpretação que damos no texto. A Cambridge Ancient History (1927, vol. V; cf. esp. pp. 369 sgs.) dá uma interpretação dos fatos muito semelhante. Pode-se acrescentar que o número de cidadãos na plenitude dos seus direitos que os Trinta mataram durante os oito meses de terror aproxima-se provavelmente de 1.500, o que representa, de acordo com os elementos de que dispomos, não muito menos da décima parte (possivelmente, cerca de oito por cento) do número total de cidadãos que haviam sobrevivido á guerra, o que equivale a um por cento ao mês — façanha mal ultrapassada, mesmo em nossos dias… Escreve Taylor sobre os Trinta (Sócrates, Short Biographies, 1937, p. 100, nota 1) : “ É apenas de j ustiça lembrar que esses homens devem ter “perdido a cabeça” ante a tentação apresentada por sua situação. Crítias fora anteriormente conhecido por sua vasta cultura e suas tendências políticas eram claramente democráticas”. Creio falha essa tentativa de diminuir a responsabilidade do governo títere e, especialmente, do amado tio de Platão. Sabemos bastante bem o que pensar dos efêmeros sentimentos democráticos professados naqueles dias, nas situações oportunas, pelos jovens aristocratas. Além disso, o pai de Crítias (cf. Meyer, vol. IV, p. 579, e Lysias, 12, 43 e 12, 66) e provavelmente o próprio Crítias haviam pertencido á Oligarquia dos Quatrocentos, e os escritos de Crítias que ainda se conservam nos dão cabais mostras de suas traidoras preferências por Esparta, assim como de sua formação oligárquica (cf. p. ex. Diels 5, 45), de seu cru niilismo (cf. nota 17 ao cap. 8) e de sua ambição (cf. Diels, 5, 15; cf. também Xenofonte, Memorabilia, I, 2, 24 e Htlenica, II, 3, 36 e 47). Mas o ponto decisivo está simplesmente em ter ele procurado aplicar consistentemente o programa do “ Velho Oligarca”, autor da Constituição de Atenas atribuída a Xenofonte (cf. nota 36 a este mesmo capítulo) ; isto é, procurou suprimir a democracia fazendo deliberada tentativa para conseguí-lo com o auxílio de Esparta, se Atenas fôsse derrotada. O grau de violência empregado é o resultado lógico da situação. Não indica que Crítias houvesse perdido a cabeça, mas, antes, que ele estava bem consciente das dificuldades, isto é, da ainda formidável capacidade de resistência dos democratas.

Meyer, cuja grande simpatia por Dionísio I prova que ele, pelo menos, não tem preconceitos contra tiranos, diz a respeito de Crítias (oh. cit., V, p. 17), depois de esboçar-lhe a surpreendente carreira de oportunista político, que ele era “tão inescrupulpso como Lisandro”, o conquistador espartano, e, portanto, o chefe adequado para o govêrno : títere de Lisandro.

Parece-me haver impressionante semelhança entre os caracteres de Crítias, soldado, poeta, esteta e companheiro cético de Sócratès, e Frederico II da Prússia, chamado o “Grande”, também soldado, esteta, poeta e discípulo cético de Voltaire e que foi um dos piores tiranos e um dos mais implacáveis opressores da história moderna. (Sobre Frederico, cf. W. Hegemann, Entlarvte Gcschichtc, 1934; ver esp. p. 90 sobre sua atitude para com a religião, reminiscente da de Crítias.)

49 — Este ponto é muito bem explanado por Taylor, Sócrates, Short Biographies, 1937, p. 103, que aí acompanha a nota de Burnet ao Eutifron, 4c, 4, de Platão. O único ponto em que me sinto inclinado a desviar-me, embora levemente, do excelente tratamento que Taylor (ob. cit., 103, 120) dá ao processo de Sócrates é a interpretação das tendências da acusação, especialmente da que se refere á introdução de “novas práticas religiosas”, (ob. cit., 109 e 111 sgs.).

50 — As provas que mostram isso podem encontrar-se em Sócrates,
de Taylor, 113-115; cf. esp. nota 1, p. 115, onde é citado Êsquines, I, 173; “Condenastes à morte o sofista Sócrates porque se comprovou que ele havia educado Crítias.”

51 — Era característico da política dos Trinta envolver em seus atos terroristas o maior número possível de pessoas; cf. as excelentes anotações de Taylor em Sócrates, 101 sgs. (esp. nota 3 á p. 101). Sobre Querofonte, ver nota 56 (5-e6) ao presente capítulo.

52 — Como fazem Crossman e outros; cf. Crossman, Plato To-Day, 91/2. Concordo neste ponto com Taylor, Sócrates, 116; ver também suas notas 1 e 2 a essa página. Que o plano da acusação não era fazer de Sócrates um mártir, que o julgamento poderia ter sido evitado, ou levado a cabo diversamente, se Sócrates se tivesse mostrado disposto a transigir, isto é, a deixar Atenas ou mesmo a prometer ficar quieto, tudo isso parece muito claro em vista das alusões de Platão (ou de Sócrates) na Apologia, assim como no Criton. (Cf. Criton, 45e e esp. 52b/c, onde Sócrates diz que lhe teriam permitido exiliar-se, se no julgamento se tivesse oferecido para fazê-lo.)

53 — Cf. especialmente Criton, 53b/c, onde Sócrates explica que, se aceitasse a oportunidade de fugir, confirmaria o que acreditavam seus juizes; pois quem corrompe a lei também pode corromper os jovens. A Apologia e o Criton foram escritos provavelmente não muito depois da morte de Sócrates. O Criton (possivelmente o primeiro dos dois) foi talvez escrito a pedido de Sócrates para que se tornassem conhecidos os motivos por que recusou fugir. Na verdade, tal desejo pode ter sido a primeira inspiração dos diálogos socráticos. T. Gomperz (Greek Thinkers, V, II, 1, ed. al., II, 358) considera o Criton posterior e explica sua tendência geral com a hipótese de que Platão estava ansioso por mostrar sua lealdade ao mestre. “ Não conhecemos — escreve Gomperz — a situação imediata a que este pequeno diálogo deve sua existência; mas é difícil resistir á impressão de que Platão está aqui mais interessado em defender-se, e a seu grupo, da suspeita de abrigar opiniões revolucionárias”. Embora a sugestão de Gomperz se encaixe facilmente em minha interpretação geral das opiniões de Platão, acho que o Criton tem muito mais o aspecto de ser uma defesa de Sócrates que de Platão. Mas concordo com a interpretação de Gomperz sobre sua tendência. Sócrates, por certo, tinha o maior in- teresse em defender-se de uma suspeita que punha em perigo a obra de sua vida. — Relativamente a esta interpretação do conteúdo do Criton, volto a concordar plenamente com Taylor (Sócrates, 124 sg). Mas a lealdade do Criton e seu contraste com a deslealdade evidente da República, que abertamente se coloca ao lado de Esparta contra Atenas, parece refutar a opinião de Burnet e Taylor de ser a Rep. socrática e de que Sócrates era mais fortemente oposto á democracia do que Platão (cf. nota 56 a este capítulo).

Relativamente à afirmação de Sócrates de sua lealdade á democracia, cf. especialmente as seguintes passagens do Criton: 51d/e, onde é acentuado o caráter democrático das leis, isto é, a possibilidade de poderem os cidadãos modificar as leis sem violência, por meio do argumento racional (como diz Sócrates, podem eles “convencer” as leis) ; 52b sg., onde Sócrates insiste em que não tem; divergências com a constituição ateniense; 53c/d, onde ele descreve não só a virtude e a justiça, mas especialmente as instituições e as leis (as de Atenas) como as melhores coisas entre os homens; 54c, onde ele diz que pode ser vítima dos homens, mas insiste em que não é vítima das leis.

Em vista de todas essas passagens (e esp. de Apologia, 32c; cf. nota 8 ao cap. 7) creio devermos deixar de parte a única passagem de aspecto muito diferente, a saber, 52e, onde Sócrates implicitamente louva as constituições de Esparta e Creta. Considerando especialmente 52b/c, onde Sócrates diz não ter curiosidade de conhecer outros estados ou suas leis, pode-se ser tentado a sugerir que a observação sobre Esparta e Creta em 52e é uma interpolação, feita por alguém que tentava conciliar o Criton com escritos posteriores, especialmente com a República. Seja ou não a passagem um acréscimo platônico, parece extremamente improvável que seja socrática. Basta apenas lembramos o empenho de Sócrates em nada fazer que pudesse ser interpretado como pró-espartano, empenho que nos mostra o Anabasis de Xenoforite, III, 1, 5. Lemos ali que “ Sócrates receava que ele (isto é, seu amigo, o jovem Xenofonte, outra jovem ovelha desgarrada) pudesse ser censurado como desleal, pois era sabido que Ciro auxiliara os espartanos na guerra contra Atenas”. (Esta passagem é’por certo muito menos suspeita do que as da Memorabilia; não há aqui influência de Platão e Xenofonte efetivamente se acusa, por implicação, de haver considerado com demasiada leviandade seus devêres para com sua pátria e de haver merecido seu exílio, mencionado em ob. cit., V, 3, 7 e VII, 7, 57.)

54 — Apologia, 30e, 31a.

55 — Os platônicos, naturalmente, concordarão com Taylor quando diz, na última frase de seu Sócrates : “Sócrates teve apenas um “sucessor”: Platão”. Somente Grote parece às vezes sustentar opiniões semelhantes às expostas no texto; o que ele diz, por exemplo, na passagem citada aqui na nota 21 ao cap. 7 (ver também nota’ 15 ao cap. 8) pode ser interpretado pelo menos como uma expressão de dúvida sobre se Platão traiu Sócrates ou não. Grote deixa perfeitamente claro que a República (e não só as Leis) teria fornecido a base teórica para condenar o Sócrates da Apologia, e que este Sócrates jamais seria admitido no estado melhor de Platão. E chega a apontar que a teoria de Platão concorda com o tratamento prático que Sócrates recebeu da parte dos Trinta. (Um exemplo demonstrativo de que a perversão do ensinamento de um mestre por um aluno é coisa que pode suceder mesmo quando o mestre ainda é vivo, famoso e protesta em público, pode ser visto na nota 58 ao cap. 12.)

Quanto às observações sobre as Leis, feitas mais adiante neste capítulo, ver especialmente as passagens das Leis citadas nas notas 19-23 ao cap. 8. Mesmo Taylor, cujas opiniões sobre esses assuntos são diametralmente opostas ás aqui apresentadas (ver também a nota seguinte), admite: “A pessoa que primeiro propôs fossem consideradas as falsas opiniões sobre teologia como ofensivas ao estado foi o próprio Platão, no décimo livro das Leis.’’ (Taylor, ob. cit., 108, nota 1).

No texto, ponho em contraste especialmente a Apologia e o Criton de Platão com suas Leis. A razão para essa escolha é a de que quase todos, mesmo Burnet e Taylor (ver a nota seguinte) concordariam em que a Apologia e o Criton representam a doutrina socrática, ao passo que as Leis podem ser descritas como platônicas. Parece-me, portanto, muito difícil entender como Burnet e Taylor podem defender sua opinião de que a atitude de Sócrates para com a democracia era ainda nais hostil que a de Platão. (Esta opinião vem expressa em Greek Philosophy, de Burnet, I, 209 sg. e em Sócrates, de Taylor, ISO sg. e 170 sg.). Não vejo como defender essa opinião sobre Sócrates, que lutou pela liberdade (cf. esp. nota 53 a este cap.) e morreu por ela, e sobre Platão, que escreveu as Leis.

Burnet e Taylor sustentam essa estranha opinião porque se aferraram á ideia de que a Rep. é socrática e não platônica, e porque se pode dizer que a Rep. é levemente menos anti-democrática do que o Estadista e as Leis de Platão. Mas as diferenças entre a República e o Estadista, assim como as Leis são realmente muito leves, especialmente se não se consideram só os primeiros livros das Leis, mas igualmente o último; de fato, a concordância de doutrina é bem mais estreita do que se poderia esperar de dois livros separados pelo menos por uma década, e provavelmente por três ou mais, e muito dissemelhantes em temperamento e estilo (ver nota 6 ao cap. 4 e muitos outros pontos deste livro em que a similaridade, se não identidade, entre as doutrinas das Leis e da Rep. é mostrada). Não existe a menor dificuldade interna em admitir que a Rep. e as Leis são platônicas; mas a própria admissão feita por Burnet e Taylor de que sua teoria leva á conclusão de ser Sócrates não só inimigo da democracia, mas ainda maior inimigo do que Platão, mostra a dificuldade, se não o absurdo, de sua ideia de que não só a Apologia è o Criton são socráticos, como também a Rep. (Para todas essas questões, ver a nota seguinte).

56 — Acho desnecessário dizer que esta frase é uma tentativa de sintetizar minha interpretação do papel histórico da teoria de. justiça de Platão (sobre o fracasso moral dos Trinta, cf. Xenofonte, Helenica, II, 4, 40-42) ; e particularmente das principais doutrinas políticas da República, interpretação que tenta explicar as contradições entre os primeiros diálogos, especialmente o Górgias, e a República, como oriundas da diferença fundamental entre as concepções de Sócrates e as dos últimos tempos de Platão. A importância cardeal da questão que é comumente chamada o Problema Socrático pode justificar que eu entre aqui num debate extenso e parcialmente metodológico.

(1) A mais antiga solução do Problema Socrático admitia que um grupo dos diálogos platônicos, especialmente a Apologia e o Criton, eram socráticos (isto é. de modo geral historicamente corretos e assim propositadamente feitos), ao passo que a maioria dos diálogos é platônica, incluindo muitos daqueles em que Sócrates é o principal interlocutor, como por exemplo o Fedon e a Rep. As mais antigas autoridades justificavam essa opinião recorrendo por vezes a uma “testemunha independente”, Xenofonte, e indicando a similaridade entre o Sócrates xenofôntico e o Sócrates do primeiro grupo de diálogos e as dissemelhanças entre o Sócrates de Xenofonte e o “ Sócrates” do grupo platônico de diálogos. A teoria metafísica das Formas ou Ideias, mais especialmente, era de modo geral considerada platônica.

(2) Contra essa concepção, um ataque foi lançado por J. Burnet. apoiado por A. E. Taylor. Burnet denunciou o argumento sobre que se baseava a “solução mais antiga” (como a denomino), como de círculo vicioso e inconvincente. Não é razoável, sustentou ele, seFcionar um grupo de diálogos unicamente porque a teoria das Formas é neles menos evidente, chamá-los socráticos e dizer em seguida que a teoria das Formas não é de autoria de Sócrates, mas de Platão. E não é razoável considerar Xenofonte como testemunha independente, pois não temos razão alguma para crer em sua independência e, sim, razões muito boas para crer que ele devia conhecer boa quantidade de diálogos platônicos quando começou a escrever Memorabilia. Burnet sustentava que devíamos partir da suposição de que Platão não pretendia dizer senão o que textualmente diz e que, ao fazer com que Sócrates defer desse determinada doutrina, ele acreditava e queria fazer os leitores crerem que essa doutrina era representativa dos ensinamentos socráticos.

(3) Embora as opiniões de Burnet acerca do problema socrático me pareçam insustentáveis, creio que tiveram grande valor do ponto de vista do estímulo a ulteriores investigações. Uma teoria audaz, ainda quando falsa, sempre significa progresso; e os livros de Burnet são cheios de ideias ousadas e nada convencionais. Tanto mais é isto de apreciar quanto os temas históricos sempre mostram tendência para tornar-se rançosos. Mas, por muito que eu admire Burnet por suas brilhantes e audaciosas teorias, por muito que lhes aprecie o efeito salutar, não posso convencer-me, considerando as provas de que disponho, de que essa teoria seja sustentável. Em seu valiosíssimo entusiasmo, Burnet, creio eu, nem sempre foi bastante crítico de suas próprias ideias. E eis porque outros, em seu lugar, acharam necessário criticar essas opiniões.

Relativamente ao problema socrático, creio, com a maioria dos autores, que a opinião que chamamos “ solução mais antiga” é fundamentalmente correta. Em época recente foi bem defendida dos ataques de Burnet e Taylor por G. C. Field (Plato and His Contemporaries, 1930) e A. K. Rogers (The Socratic Problem, 1933) ; e são muitas as autoridades que parecem aderir a esse ponto de vista. Apesar de considerar os argumentos até agora apresentados suficientemente convincentes, permito-me acrescentar outros, utilizando os resultados colhidos no presente livro. Mas, antes de passar a criticar Burnet, quero afirmar que devemos a Burnet nossa compreensão do seguinte princípio de método: a evidência trazida por Platão é a única de primeira mão que nos é disponível; toda outra evidência é secundária. (Burnet aplicou este princípio a Xenofonte, mas devemos aplicá-lo também a Aristófanes, cuja evidência foi rejeitada pelo próprio Sócrates na Apologia; cf. (5), a seguir).

(4) Explica-nos Burnet que seu método é o de supor que “ Platão apenas queria dizer o que disse”. De acordo com esse princípio metodológico, o “Sócrates” de Platão deve ser tido como um retrato do Sócrates histórico. (Cf, Grcek Fhilosophy, I, 128, 212 sg. e nota sobre pág. 349/50; cf. Taylor, Sócrates, 14 sg., 32 sg. 153). Admito que o princípio metodológico seja um razoável ponto de partida. Mas tratarei de mostrar, em (5), que os fatos são tais que não tardam em levar todos a abandoná-lo, inclusive os próprios Burnet e Taylor. Também eles, assim como os demais, se vêem forçados a interpretar o que Platão diz, mas, enquanto os outros são conscientes desse fato e mostram, portanto, cuidadosa atitude crítica para com suas interpretações, é inevitável que aqueles que se aferram á crença de não estarem interpretando Platão, mas apenas aceitando o que ele disse, se vejam na impossibilidade de examinar criticamente suas próprias interpretações.

(5) Os fatos que tornam inaplicável a metodologia de Burnet e o forçam, e a todos os outros, a interpretar o que Platão disse são, com efeito, as contradições do retrato de Sócrates atribuído a Platão. Mesmo se aceitarmos o princípio de que não temos evidência melhor que a de Platão, somos forçados, pelas contradições internas de seus escritos, a não tomá-lo ao pé da letra, e a desistir da suposição de que ele “realmente queria dizer o que disse”. Se uma testemunha se envolve em contradições, não podemos aceitar seu testemunho sem interpretá-lo, ainda que se trate da melhor testemunha disponível. Darei primeiro apenas três exemplos dessas contradições internas.

(a) O Sócrates da Apologia repete por três vezes, de modo a rpressionar, que (18b-c, 19c-d, 23d) que não lhe interessa a filosofia tural (o que revela que não é um pitagórico). “Nada sei de tais isas, nem muito nem pouco”, disse ele (19c); “Eu, atenienses, nada mho em absoluto com tais coisas” (isto é, com especulações sobre a batureza). Sócrates assevera que muitos que se acham presentes ao julgamento podem testemunhar a verdade dessa afirmação; eles o haviam ouvido falar, mas nunca, em poucas ou muitas palavras, alguém o ouvira jamais falar sobre assuntos de filosofia natural (Ap., 19c-d). Por outro lado, temos (a’) o Fedon (cf. esp. 108d sg. com as citadas passagens da Apol.) e a República. Nestes diálogos, Sócrates aparece como um filósofo pitagórico da “ natureza”, tanto que Burnet e Taylor puderam dizer que ele era de fato um membro vanguardeiro da escola de pensamento pitagórico. (Cf. Aristóteles, que diz dos pitagóricos: “suas discussões… são todas acerca da natureza”; ver Metaf., 989b.)

Ora, eu sustento que (a) e (a’) se contradizem redondamente; e esta situação é piorada pelo fato de que a data da ação da Rep. é anterior á da Apol. e a do Fedon é posterior. Isto torna totalmente impossível conciliar (a) com (a’) mediante a suposição de que Sócrates houvesse abandonado o pitagorismo nos últimos anos de sua vida, entre a Rep. e a Apol., ou que se houvesse convertido ao pitagorismo no último mês de sua vida.

Não pretendo que não haja meio de eliminar esta contradição através de alguma suposição ou interpretação. Burnet e Taylor podem ter suas razões, talvez até muito boas, para confiar mais no Fedon e na Rep. do que na Apol. (Mas devem compreender que, se temos como correto o retrato de Platão, qualquer dúvida sobre a veracidade de Sócrates na Apol. o transforma num homem que mente para salvar a própria pele.) Tais questões, porém, não me importam no momento. Meu ponto é antes o de que, aceitando a evidência (a’) contra a evidência (a) Burnet e Taylor são forçados a abandonar sua admissão metodológica fundamental de que Platão “ realmente queria dizer o que disse”.

Mas a interpretação inconscientemente feita deve ser não-crítica; isto pode ser ilustrado pelo uso que Burnet e Taylor fazem da evidência de Aristófanes. Sustentam que as pilhérias de Aristófanes seriam sem sentido se Sócrates não fosse um filósofo natural. Mas acontece que Sócrates (sempre admito, com Burnet e Taylor, que a Apol. é histórica) previu essa própria argumentação. Em sua apologia, ele. advertiu precisamente os seus juízes contra essa interpretação de Aristófanes, insistindo, com o maior empenho (Ap., 18d-e), que não tinha pouco nem muito a ver com a filosofia natural, mas simplesmente nada, em absoluto. Sócrates sentiu como se estivesse a lutar contra sombras nesse assunto, contra as sombras do passado (Ap., 18d-e) ; mas agora podemos também dizer que ele estava lutando contra as sombras do futuro. Pois, quando ele desafiou seus concidadãos a se apresentarem — aqueles que acreditaram em Aristófanes e ousaram chamar Sócrates mentiroso •— nenhum apareceu. Isso se deu 2.300 anos antes que alguns platônicos se resolvessem a responder ao desafio.

Pode ser mencionado, a esse respeito, que Aristófanes, um anti- democrata moderado, atacou Sócrates como “sofista” e que a maioria dos sofistas era de democratas.

(b) Na Apol., (40c sgs.) Sócrates adota uma atitude agnóstica com relação ao problema da sobrevivência; (b’) o Fedon consiste principalmente de esmeradas provas sobre a imortalidade da alma. Burnet examina esta dificuldade (em sua edição do Fedon, 1911, p. XLVIII sgs.) de modo bastante pouco convincente (Cf. notas 9 ao capi 7 e 44 ao presente capítulo). Mas, tenha ou não razão, sua própri analise demonstra que se viu forçado a abandonar seu princípio me todológico, interpretando o que disse Platão.

(c) O Sócrates da Apol. sustenta que a sabedoria, mesmo a d mais sábios, consiste na compreensão do pouco que se sabe e que, por tanto, a sentença délfica dizendo “ conhece-te a ti mesmo” deve sei interpretada como “conhece tuas limitações”; e ele implica que os governantes, mais do que quaisquer outros, devem conhecer suas limitações. Opiniões semelhantes podem ser encontradas em outros dos primeiros diálogos. Mas os principais interlocutores do Estadista e das Leis propõem a doutrina de que os poderosos devem ser sábios; e por sabedoria não mais entendem um conhecimento das próprias limitações, mas antes a iniciação nos mais profundos mistérios da filosofia dialéctica, a intuição do mundo de Formas e Ideias, ou o adestramento na Ciência Real da Política. A mesma doutrina é exposta na Filebo, até como parte de uma discussão sobre a sentença délfica (Cf. nota 26 ao cap. 7).
(d) Fora essas três contradições flagrantes, posso mencionar mais duas contradições que facilmente poderiam ser postas de parte por aqueles que não acreditam ser genuína a Sétima Carta, mas que me parecem fatais para Bumet, pois este sustenta ser a Sétima Carta autêntica. A opinião de Burnet (insustentável mesmo se abandonarmos essa carta; cf., para toda a questão, nota 26 (5) ao cap. 3) de que Sócrates, mas não Platão, era quem sustentava a teoria das Formas, é contraditada nessa carta, em 342a sgs.; e sua opinião de que a Rep., mais especialmente, é socrática, refuta-se em 326a (cf. nota 14 ao cap. 7). Sem dúvida, todas essas dificuldades podem ser removidas, mas só por interpretação.

(e) Há numerosas contradições semelhantes, embora ao mesmo tempo mais sutis e mais importantes, que foram discutidas com certa amplitude nos capítulos anteriores, especialmente nos capítulos 6, 7 e 8. Posso sintetizar as principais dentre elas.

(e’) A atitude para com os homens, especialmente a juventude, muda-se de tal modo no retrato traçado por Platão que não se pode atribuir a um desenvolvimento de Sócrates. Este morreu pelo direito de falar livremente á juventude, que amava. Mas, na Rep., encontramo- lo em atitude de condescendência e desconfiança muito semelhante á pouco acolhedora atitude do Estrangeiro Ateniense (sabidamente o próprio Platão) nas Leis, e á descrença geral na humanidade tantas vezes expressa nessa obra. (Cf. texto de notas -17-18 ao cap. 4, 18-21 ao cap. 7 e 57-58 ao cap. 8.)

(e2) O mesmo se pode dizer da atitude de Sócrates em relação á liberdade e á livre expressão. Ele morreu por isso. Mas, na Rep., “ Sócrates” advoga a mentira; no Estadista, reconhecidamente platônico, uma mentira é oferecida como verdade; e, nas Leis, o livre pensamento é suprimido pelo estabelecimento de uma inquisição. (Cf. os mesmos locais citados e mais notas 1-23 e 40-41 ao cap. 8 e nota 55 ao presente capitulo).

(e3) O Sócrates da Apol. e outros diálogos é intelectualmente modesto; no Fedon, transforma-se num homem que está seguro da verdade de suas especulações metafísicas. Na Rep., é um dogmático, adotando uma atitude não muito distante do autoritarismo petrificadp do Estadista e das Leis. (Cf. texto de notas 8-14 e 26 ao cap. 7; 15 e 33 ao cap. 8; e (c) na presente nota).

(e4) O Sócrates da Apol. é um individualista; acredita na auto- suficiência do indivíduo humano. No Górgias, é ainda individualista. Na Rep., é um coletivista radical, muito semelhante á posição de Platão nas Leis. (Cf. notas 25 e 35 ao cap. 5; texto de notas 26, 32 e 48-54 ao cap. 6 e nota 45 ao presente capítulo).

(e5) Podemos dizer coisas semelhantes a respeito do igualitarismo de Sócrates. No Menon ele reconhece que um escravo participa da inteligência geral de todos os sêres humanos, sendo capaz de aprender até a matemática pura; no Górgias, defende a teoria igualitária da justiça. Mas na Rep., despreza os trabalhadores e os escravos e tanto se opõe ao igualitarismo como o próprio Platão no Timeu e nas Leis. (Cf. .as passagens mencionadas em (e,) ; além disso, as notas 18 e 29 ao cap. 4; nota 10 ao cap. 7 e nota 50 (3) ao cap. 8, onde se cita o Timeu, 51e).

(e6) O Sócrates da Apol. e do Criton é leal á democracia ateniense. No Menon e no Górgias (cf. nota 45 a este capítulo) observam- se certas sugestões de atitude crítica e hostil; na Rep. (e, segundo creio, também no Menexeno) ele se nos apresenta como um inimigo aberto da democracia, e embora Platão se expresse mais cautelosamente na Estadista e também no princípio das Leis, suas tendências políticas na última parte desta obra são reconhecidamente idênticas (cf. texto de nota 32 no cap. 6) ás do “ Sócrates” da Rep. (Cf. notas 53 e 55 ao presente capítulo e notas 7 e 14-18 ao cap. 4).

O último ponto pode ser mais apoiado pelo seguinte: Parece que Sócrates na Apol. não é simplesmente leal á democracia ateniense, mas faz direto apelo ao partido democrático, acentuando que Querofonte, um de seus mais ardorosos discípulos, pertencia ás fileiras daquele partido. Querofonte desempenha papel decisivo na Apol., visto como, ao interrogar o Oráculo, vem a ser instrumento para que Sócrates reconheça sua missão na vida e, deste modo, em última instância, para a recusa de Sócrates a transigir com o Demos. Sócrates introduz essa importante personalidade acentuando o fato {Apol., 20e/21a) de que Querofonte não só era seu amigo, como também dó povo, de cujo exílio compartilhara e com o qual retomara (presumivelmente tomara parte na luta contra os Trinta) ; isto é, Sócrates escolhe como a principal testemunha de sua defesa um ardoroso democrata. (Existem outras provas independentes das simpatias de Querofonte, como, por exemplo, nas Nuvens de Aristófanes, 104, 501 sgs. A inclusão de Querofonte no Cérmides deve haver obedecido ao propósito de obter uma espécie de contrapêso, pois, do contrário, a preeminência de Crítias e Cármides criaria a impressão de um manifesto em favor dos Trinta.) Por que Sócrates acentua sua intimidade com um membro militante do partido democrático? Não podemos admitir que isso fôsse apenas uma defesa especial com o fito de levar seus juízes a serem mais misericordiosos; todo o espírito de sua apologia é contra essa admissão. A hipótese mais provável é a de que Sócrates, apontando que tinha discípulos no campo democrático, queria negar, por implicação, a acusação (que também só estava implícita) de que ele fosse um adepto do partido aristocrático e um professor de tiranos. O espirito da Apol. excluiu a admissão de que Sócrates estivesse a proclamar amizade com um líder democrático sem ter verdadeira simpatia pela causa democrática. E a mesma conclusão deve ser extraida da passagem {Apol., 32b-d) em que ele frisa sua fé na legalidade democrática e denuncia os Trinta, em termos nada vagos.

(6) É simplesmente a prova interna dos diálogos platônicos que nos força a admitir que eles não são inteiramente históricos. Devemos, portanto, tentar interpretar essa prova apresentando teorias que possam ser criticamente comparadas com a evidência, usando o método de erros e acertos. Ora, temos razão muito forte para acreditar que a Apologia é, na parte principal, histórica, pois é o único diálogo que descreve um acontecimento público de considerável importância, bem conhecido de numerosas pessoas. Por outro lado, sabemos que as Leis são a última obra de Platão (excluída a duvidosa Epinome), francamente platónica. A admissão mais simples é, portanto, a de que os diálogos serão históricos ou socráticos na medida em que concordarem com as tendências da Apologia e platônicos onde contradisserem essas tendências. (Esta admissão nos traz praticamente de volta á posição que descrevi acima como a “ mais antiga solução” do Problema Socrático.)

Se considerarmos as tendências mencionadas acima em (ei) a (ea), verificaremos que podemos facilmente ordenar os mais importantes diálogos de tal modo que, para cada uma de suas tendências, a similaridade com a Apologia decresça e a existente com as Leis platônicas cresça. Eis a série:

Apologia e Criton — Menon — Górgias — Fedon — República — Estadista — Timeu — Leis.
Ora, o fato de que esta série ordena os diálogos de acordo com todas as tendências de (ei) a (ea) é em si mesmo uma corroboração da teoria de que aqui nos defrontamos com um desenvolvimento do pensamento de Platão. Mas podemos obter prova inteiramente independente. Investigações “ estilométricas” mostram que nossa série concorda com a ordem em que Platão escreveu os diálogos. Por fim, a série, pelo menos até o Timeu, exibe também um interesse continuamente crescente pelo pitagorismo (e pelo eleaticismo). Isso deve, portanto, ser outra tendência do desenvolvimento do pensamento de Platão.

Argumento muito diferente é este: Sabemos, pelo próprio testemunho de Platão, que Antístenes (cf. Fedon) era um dos mais íntimos amigos de Sócrates; e sabemos também que Antístenes proclamava preservar o verdadeiro credo socrático. É difícil acreditar que Antístenes tivesse sido amigo do Sócrates da República. Assim, devemos encontrar um ponto de partida comum para os ensinamentos de Antístenes e de Platão; e esse ponto comum nós o encontramos no Sócrates da Apologia e do Criton e em algumas das doutrinas postas nos lábios do “ Sócrates” do Menon, do Górgias e do Fedon.

Estes argumentos são inteiramente independentes de qualquer obra de Platão que tenha sido posta seriamente em dúvida (como o Alcibiades ou o Teages, ou as Cartas). Também são independentes do testemunho de Xenofonte. Baseiam-se apenas nas provas internas de alguns dos mais famosos diálogos platônicos.. Mas concordam com estas provas secundárias, especialmente com a Sétima Carta, onde, num esboço de seu próprio desenvolvimento mental (32S sg.) Platão refere- se mesmo, inequivocamente, á passagem chave da República como sua própria descoberta central: “Devo afirmar… que… nunca a raça dos homens será salva de sua provação sem que a raça dos genuínos e verdadeiros filósofos obtenha o poder político, ou sem que os que governam as cidades se tornem autênticos filósofos, pela graça de Deus” (326a; cf. nota 14 ao cap. 7 e (d) nesta nota). Não consigo ver como se possa aceitar, como faz Burnet, esta carta como autêntica sem admitir que a doutrina central da Rep. é de Sócrates e não de Platão, isto é, sem abandonar a ficção de que o retrato que Platão faz de Sócrates na República é histórico. (Para mais provas, cf. p. ex., Aristóteles, Sofista El., 183b7: “ Sócrates fazia perguntas mas não dava respostas, pois ele confessava que não sabia”. Isso concorda com a Apol., mas dificilmente com o Górgias e certamente não com o Fedon ou a Rep. Ver ainda o famoso relato de Aristóteles sobre a história da teoria das Ideias, admiravelmente discutido por Field, ob. cit.; cf. também nota 26 ao cap. 3).

(7) Contra provas deste caráter, pouco peso pode ter o tipo de provas usado por Burnet e Taylor. Eis um exemplo: Para demonstrar sua opinião de que Platão era politicamente mais moderado do que Sócrates e de que a família de Platão era antes “liberal”, Burnet usa o argumento de que um membro da afamilia de Platão se chamava “Demos” (Cf. Gorg., 481e, 513b. — É, porém, incerto, embora provável, que o pai de Demos, Pirilampes, ali mencionado, seja realmente o mesmo tio e padrasto de Platão mencionado em Carm. 58a e Parm., 126b, isto é, se Demos era parente de Platão). Que peso, pergunto eu, pode ter esse argumento, comparado com o registro histórico dos dois tiranos tios de Platão; com os fragmentos políticos de Crítias que nos chegaram (e que ainda ficam na família, mesmo que Burnet tenha razão, o que difícil, em atribuí-los ao avô deste; cf. Greck Phüosophy, I, 338, nota I, juntamente com Carm., I5e e 162d, onde se faz alusão aos dotes poéticos de Crítias, o tirano) ; com o fato de que o pai de Crítias pertencera á Oligarquia dos Quatrocentos {Lis., 12, 66) ; e com os próprios escritos de Platão em que o orgulho de família se combina a tendências não só anti-democráticas como anti-atenienses? (Cf. o louvor, no Timeu, 20a, a um inimigo de Atenas como Hermócrates da Sicília, sogro de Dionísio, o Velho.) O propósito que se oculta atrás desse argumento é, sem dúvida, fortalecer a teoria de que a Rep. é socrática. Outro exemplo de mau método pode ser extraído de Taylor, que argumenta (Sócrates, nota 2 á p. 148 sg.; cf. também p. 162) em favor da opinião de que o Fedon é socrático (cf. minha nota 9 ao cap. 7) : “No Fedon… a doutrina de que “a aprendizagem é apenas reconhecimento” é expressamente proclamada por Símias (aqui há um lapso da pena de Taylor, pois o interlocutor é Cebes), falando a Sócrates, como “a doutrina que tu repetes tão frequentemente”. A menos que queiramos considerar o Fedon como gigantesca e imperdoável mistificação, teremos d’ aceitar esta frase como prova de que a teoria pertence realmente a Sócrates”. (Para um argumento semelhante, veja-se a edição do Fedon de Burnet, p. XII, final do cap. II). Sobre isto, desejo fazer os seguintes comentários : (a) supõe-se aqui que Platão considerava-se um historiador ao escrever este trecho, pois, de outro modo, sua afirmação não teria por que ser considerada como “uma gigantesca e imperdoável mistificação”; em outras palavras, supõe-se o ponto mais discutível e decisivo da teoria; (b) ainda, porém, que Platão se tivesse visto no papel de historiador (o que me parece improvável) a expressão “uma gigantesca, etc… “me pareceria demasiado forte. É Taylor, e não Platão, quem grifa a palavra tu. A única intenção de Platão poderia ter sido, por exemplo, a de indicar que acha estarem os leitores do diálogo já familiarizados com essa teoria. Ou poderia mesmo ter querido referir-se ao Menon e, de tal modo, a si próprio. (E esta é precisamente a explicação que me parece mais aceitável em razão do que é dito no Fedon, 73a, sg., com sua alusão aos diagramas). Ou também poderia ser um lapso de sua pena. Mesmo os historiadores incorrem nesses pequenos equívocos. Burnet — para dar um exemplo — se considerava por certo no papel de historiador quando escreveu, em Greek Phüosophy, 1, 64, sobre Xenófanes: “ A história de que fundou a escola eleática me parece derivada de uma jocosa observação de Platão, segundo a qual até o próprio Homero teria sido heracliteano”. A isso ajunta Burnet, em nota de pé de página: “Platão, Sof., 242d. Ver E. Gr. Ph. 2, pág. 140”. Ora, é evidente que esta frase, na bôca de um historiador, envolve três consequências, a saber: (1) que a passagem de Platão que se refere a Xenófanes é jocosa, isto é, que não deve ser tomada ao pé da letra; (2) que sua jocosidade se manifesta na referência a Homero, isto é (3) ao qualificá-lo de heracliteano, o que só pode ser jocoso, pois Homero é muito anterior a Heráclito. Entretanto, nenhuma dessas três consequências pode ser sustentada. Com efeito, verificamos (1) que a passagem do Sofista (242d) relativa a Xenófanes não é jocosa, mas o próprio Burnet a recomenda, no apêndice metodológico ao seu Early Greek Philosophy como importante e valiosa fonte de informação histórica; (2) que ela não contém a menor alusão a Homero; e (3) que outra é a passagem que contém essa alusão (Teet., 179e), a qual Burnet confundiu com o Sofista em Gr. Ph. I (não existe tal êrro em E. Gr. Ph. 2), mas essa passagem não se refere a Xenófanes nem diz que Homero seja heracliteano; ao contrário, diz que algumas das ideias de Heráclito são tão antigas como Homero (o que por certo é muito menos jocoso). E tal quantidade de mal entendidos, interpretações errôneas e citações inexatas se encontra numa só observação histórica de um historiador tão destacado como Burnet. Daí podemos aprender que tais coisas acontecem mesmo aos melhores historiadores : todos os homens são falíveis. (Exemplo mais sério dessa espécie de falibilidade é discutido na nota 26 ao cap. 3). Mas, se assim é, pode estar certo, indago, deixar de lado a possibilidade de um engano relativamente menor em uma afirmação feita por Platão (que talvez não tivesse ideia de que seus diálogos dramáticos seriam algum dia considerados evidência histórica), ou dizer que tal engano seria uma “gigantesca e imperdoável mistificação”? Esta espécie de recurso de defesa não é um método razoável.
(8) A ordem cronológica dos diálogos platônicos que desempenham importante papel nestes argumentos é aqui admitida como aproximadamente a mesma da lista estilométrica de Lutoslawski (The Origin and Growth of Plato’s Logic, 1897). Uma lista desses diálogos que desempenham papel importante no texto é encontrada na nota 5 ao cap. 3. É traçada de modo a haver mais incerteza de datas dentro de cada grupo do que entre os vários grupos. Um desvio menor da lista estilométrica é a posição do Eutifron, que, em razão de seu conteúdo (discutido no texto de nota 60 deste capítulo) me parece posterior ao Criton; mas isto é coisa de pouca importância. (Cf. também nota 47 a este capítulo).

57 — Há uma passagem famosa e algo enigmática na Segunda Carta (314c) : “ Não existem nem jamais existirão escritos de Platão. Os que levam seu nome pertencem em realidade a Sócrates, remoçado e embelezado”. A solução mais provável deste enigma é a de que a passagem, se não toda a carta, é espúria. (Cf. Field, Plato and His Contemporaries, 200 sg., onde ele dá admirável resumo das razões para suspeitar da carta e, especialmente, das passagens 312d-313c e possivelmente até 314c; com referência a 314c, uma razão adicional é a de que o forjador talvez pretendesse aludir ou dar interpretação a uma observação algo semelhante da Sétima Carta, 341b/c, citada na nota 32 ao cap. 8). Mas se, por um momento, admitirmos, com Burnet (Gr. Ph., I, 212) que a passagem é autêntica então a observação “ remoçado e embelezado” certamente suscita um problema, especialmente por não poder ser considerada ao pé da letra; é que Sócrates em todos os diálogos platônicos é apresentado como velho e feio (a única exceção é o Parmenides, onde ele dificilmente é embelezado, embora ainda jovem). Se autêntica, a enigmática passagem quereria dizer que Platão, muito intencionalmente, apresentava um relato idealizado e não histórico de Sócrates; e perfeitamente bem se encaixaria em nossa interpretação ver que Platão estava realmente consciente de reinterpretar Sócrates como um aristocrata jovem e elegante, o qual, sem dúvida, era o próprio Platão. (Cf. também nota 11 (2) ao cap. 4, nota 20 (1) ao eap. 6 e nota 50 (3) ao cap. 8).

58 — Estou citando do primeiro parágrafo da Nota Introdutória de Davies e Vaughan á sua tradução da Rep. Cf. Crossman, Plato To-Day, 96.

59 — (1) A “ divisão” ou “ cisão” da alma, segundo Platão, é uma das mais salientes impressões de sua obra e especialmente da Rep. Só um homem que tivesse de lutar arduamente para manter seu autocontrole ou o governo de sua razão sobre os instintos animais poderia acentuar esse ponto tanto quanto o fez Platão; cf. as passagens referidas na nota 34 ao cap. 5, esp. o relato da besta no homem (Rep., 588c), que é provavelmente de origem órfica, e notas 15 (l)-(4), 17 e 19 ao cap. 3, que não só mostram surpreendente similaridade com as doutrinas psico-analíticas mas também podem ser consideradas como exibindo fortes sintomas de repressão. (Ver também o começo do livro IX, 571d e 575a, que têm o tom de uma exposição do Complexo de Édipo. Quanto á atitude de Platão para com sua mãe, alguma luz talvez seja lançada pela Rep., 548e-549d, especialmente em vista do fato de que em 548e seu irmão Glaucon é identificado com o filho em foco). Uma excelente exposição dos conflitos em Platão e umá tentativa de análise psicológica de seu desejo de poder são dados por H. Kelsen, em The American Imago, vol. 3,1942, p. 1 a 110 e por Werner Fite, The Platonic Legend, 1939.

Aqueles platônicos que não estão dispostos a admitir que do empenho platônico por unidade, harmonia e regularidade podemos concluir que a ele mesmo faltavam essa unidade e essa harmonia poderiam lembrar-se de que esse modo de argumentar foi inventado por Platão. (Cf. Banquete, 200a sgs., onde Sócrates argumenta que é uma conclusão necessária, e não só provável, a de que quem ama ou deseja algo veementemente só Q ama e deseja porque não o possui.)

O que denominei teoria política da alma, de Platão, (ver também texto de nota 32 ao cap. 5), isto é, a divisão da alma de acordo com as divisões de classe da sociedade, constituiu durante muito tempo a base da maioria dos sistemas psicológicos, inclusive a psico-análise. Segundo a teoria de Freud, o que Platão havia chamado a parte diretriz da alma trata de manter sua tirania por meio de uma espécie de “ censura”, enquanto os rebeldes instintos proletários animais, que correspondem ao baixo mundo social, exercem em realidade uma ditadura oculta, pois são eles que determinam a política do chefe aparente. — Desde o “fluxo” e a “guerra” de Heráclito, o reino da experiência social influiu poderosamente sobre as teorias, metáforas e símbolos com que interpretamos a nós mesmos e ao mundo físico que nos rodeia. Menciono apenas a adoção, por Darwin, sob a influência de Malthus, da teoria da competição social.

(2) Uma observação pode ser aqui aduzida sobre o misticismo, em sua relação com as sociedades fechada e abertâ e a tensão da civilização.

Como McTaggart mostrou, em seu excelente estudo Mysticism (Cf. Philosophical Studies, editado por S. V. Keeling, 1934, esp. p. 47 sgs.), as ideias fundamentais do misticismo são duas: (a) a doutrina da união mística, isto é, a afirmativa de haver maior unidade no mundo das realidades do que aquela que reconhecemos no mundo da experiência ordinária, e (b) a doutrina da intuição mística, isto é, a afirmação de que há um modo de conhecimento que “coloca o conhecedor em relação mais direta e estreita com o que é conhecido” do que a relação entre o sujeito que conhece e o objeto conhecido na experiência ordinária. McTaggart assevera com razão (p. 48) que “dessas duas características, a unidade mística é a mais fundamental”, visto como a intuição mística é “ um exemplo da unidade mística”.

Podemos acrescentar que uma terceira característica, menos fundamental ainda, é (c) o amor místico, que é um exemplo de unidade mística e intuição mística.

Ora, é interessante ver (e isto não foi visto por McTaggart) que na história da filosofia grega o primeiro a enunciar com clareza a doutrina da unidade mística foi Parmênides, em sua teoria holista do Um (cf. a nota 41 ao presente capítulo) ; seguiu-se-lhe Platão, que acrescentou uma aprimorada doutrina de intuição mística e comunhão com o divino (cf. cap. 8), da qual já se encontram os próprios inícios em Parmênides; veio depois Aristóteles, p. ex., «m De Anima, 425b30 sg.: “ A audição real e o som real se fundem num só”; 430a20 e 431al; “ O conhecimento efetivo é idêntico a seu objeto” (Ver também De Anima 404bl6 e Metaf., 1072b20 e 1075a2; e cf. Platão, Titneu, 45b-c, 47a-d; Menon, 81a sgs., Fedon, 79d); vieram depois os neo-platônicos, que elaboraram a doutrina do amor místico, da qual só o comêço pode ser encontrado em Platão (por exemplo, em sua doutrina, na Rcp., 475 sgs., de que o filósofo ama a verdade, a qual se liga estreitamente ás doutrinas do holismo e da comunhão do filósofo com a verdade divina).

Em vista desses fatos, e de nossa análise histórica, somos levados a interpretar o misticismo como uma das reações típicas á derrocada da sociedade fechada, reação que, em sua origem, foi dirigida contra a sociedade aberta e que pode ser descrita como uma evasão para o sonho de um paraíso em que a unidade tribal se revele como a realidade imutável.

Esta interpretação entra em direto conflito com a de Bergson em Two Sources of Moral and Religion, pois Bergson afirma que é o misticismo que dá o salto da sociedade fechada para a aberta.

Deve, porém, ser sem dúvida admitido (como Jacob Viner bondosamente me indicou em uma. carta) que o misticismo é bastante versátil para trabalhar em qualquer direção política; e mesmo entre os apóstolos da Sociedade Aberta os misticos e o misticismo têm seus representantes. Foi a inspiração mística de um mundo melhor e menos dividido que, indubitavelmente, inspirou não só Platão como também Sócrates.

Pode-se recordar que no século XIX, especial mente em Hegel e Bergson, encontramos um misticismo evolucionário, que, louvando a mudança, parece colocar-se em direta oposição ao ódio á mudança de Parmênides e Platão. Contudo, a experiência subjacente dessas duas formas de misticismo parece ser a mesma, como o mostra o fato de que enorme ênfase sobre a mudança é comum a ambos. São ambos reações á aterradora experiência da mudança social, um, combinado á esperança de que ela possa ser detida, o outro com uma aceitação um tanto histérica (e sem dúvida ambivalente) da mudança como real, essencial, bem vinda. Cf. também notas 32-33 ao cap. 11, 36 ao cap. 12 e 4, 6, 29, 32 e 58, cap. 24).

60 — O Eutifron, um dos primeiros diálogos, é normalmente interpretado como uma tentativa mal sucedida de Sócrates pára definir a piedade. O próprio Eutrifon é a caricatura de um “pietista” popular que sabe exatamente o que os deuses querem. Á pergunta de Sócrates “Que é piedade e que é impiedade?” é-lhe atribuída a resposta: “Piedade é fazer como eu! Isto é, perseguir quem quer que seja culpado de assassínio, sacrilégio ou qualquer outro crime semelhante, seja o próprio pai ou mãe…; ao passo que não os perseguir é impiedade” (5d/e). Eutifron é apresentado como processando o próprio pai por haver assassinado um servo. (De acordo com a prova citada por Grote, Platão.. I, nota á p. 312, todo cidadão era obrigado a denunciar tais casos, pela lei ática).

61 — Menexeno, 235b. (Cf. nota 35 a este cap. e fim da nota 19, cap. 6).

62 — A afirmação de que quem deseja segurança deve abandonar a liberdade tornou-se um bastião da revolta contra a liberdade. Nada, porém, é menos verdadeiro. Não há, é claro, segurança absoluta na vida. Mas a segurança que pode ser atingida depende de nossa própria vigilância, reforçada por instituições que nos ajudem a vigiar, isto é, por instituições democráticas que são planejadas (para usar linguagem platônica) a fim de que o rebanho possa vigiar e julgar seus cães de guarda.

63— Sobre as “variações” e “irregularidades” cf. Rep., 547a, cit. no texto de notas 39 e 40 do cap. 5. Talvez se possa explicar em parte a obsessão de Platão pelo problema da propagação da espécie e do controle de nascimentos tendo em vista que ele compreendia as implicações do crescimento populacional. Na verdade (cf. texto de nota 7 e a este capítulo) a “ Queda”, a perda do paraíso tribal, é causada por uma falta “natural” ou “original” do homem, por assim dizer, por um desajustamento em sua proporção natural de procriação. Cf. também notas 39 (3) ao cap. 5 e 35 ao cap. 4. Quanto á citação seguinte, transcrita mais abaixo neste parágrafo, é de Rep., 566e, e texto correspondente á nota 20 do cap. 4. — Crossman, que trata exce-lentemente do período da tirania na história grega (Cf. Plato To-Day, 27-30) escreve: “ Assim, foram os tiranos que realmente criaram o Estado grego. Eles derrubaram a velha organização tribal da aristocracia primitiva..,” (Ob. cit., 29). Isto explica por que Platão odiava a tirania, talvez mesmo mais que a liberdade: cf. Rep., 577c. — (Ver, porém, nota 69 a este cap.) Suas passagens sobre a tirania, esp. 565-568, são brilhante análise sociológica de uma consistente política de poder. Eu gostaria de chamá-la a primeira tentativa no rumo de uma lógica do poder. (Escolho esse termo em analogia ao uso do termo lógica da escolha, por F. A. von Hayek, parâ a teoria econômica pura.) — A lógica do poder é muito simples e tem sido muitas vezes aplicada de modo magistral. A espécie oposta de política é muito mais difícil, em parte por ser ainda dificilmente entendida a lógica da política do anti-poder, isto é, a lógica da liberdade.

64 — É bem sabido que a maior parte das propostas políticas de Platão, inclusive o proposto comunismo de mulheres e filhos, estava “no ar” no período de Péricles. Cf. o excelente sumário na edição de Adam da Rep., vol. I, p. 354 sg. * e A. D. Winspear, The Genesis of Plato’s Thought, 1940.

65 — Cf. V. Pareto, Treatise on General Sociology, § 1843 (Trad, inglêsa, The Mind and Society, 1935, vol. Ill, p. 1281) ; cf. nota I ao cap. 13, onde a passagem é citada mais amplamente.

66 — Cf. o efeito que a apresentação feita por Glaucon da teoria de Licofronte teve sobre Carneades (cf. a nota 54 ao capítulo 6) e mais tarde sobre Hobbes. A confessada “amoralidade” de tantos marxistas é também um ponto a notar. Os esquerdistas frequentemente acreditam em sua própria imoralidade. (Isto, embora não venha muito ao caso, é às vezes mais modesto e mais agradável do que a auto- retidão dogmática de muitos moralistas reacionários.)

67 —’O dinheiro é um dos símbolos, assim como uma das dificuldades, da sociedade aberta. Não há dúvida de que ainda não dominamos o controle racional de seu uso; o maior de seus maus usos é poder ele. comprar o poder político. (A mais direta forma desse mau uso é a instituição do mercado escravo; mas justamente esta instituição é defendida na República, 563b; cf. nota 17 ao capítulo 4; e nas Leis Platão não se opõe á influência política da riqueza; cf. nota 20 (1) ao capítulo 6.) Do ponto de vista de uma sociedade individualista, o dinheiro é altamente importante. É parte da instituição do mercado livre (parcialmente), que dá ao consumidor certa extensão de controle sobre a produção. Sem uma instituição semelhante, o produtor pode controlar o mercado em’ tal grau que deixa de produzir em função do consumo, ao passo que o consumidor consumirá amplamente em função da produção. — O emprego mau, às vezes ofuscante, do dinheiro tornou-nos bastante sensitivos e a oposição que Platão faz do dinheiro á amizade é apenas a primeira de muitas tentativas, conscientes ou inconscientes, para utilizar esses sentimentos a serviço de propaganda política.

68 — O espírito grupai de tribalismo, sem dúvida, não se perdeu inteiramente. Manifesta-se, por exemplo, nas mais valiosas experiências de amizade e camaradagem; e também em movimentos tribalísticos da juventude, como os escoteiros (ou o Movimento da Juventude Alemã) e em certas organizações e sociedades de adultos como as descritas, por exemplo, por Sinclair Lewis, em Babbitt. A importância dessa experiência emocional e estética, talvez a mais universal de todas as desse gênero, não deve ser subestimada. Quase todos os movimentos sociais, totalitários assim como humanitários, são influenciadas por ela. Desempenha importante papel na guerra e é uma das mais poderosas armas da revolta contra a liberdade; mas também reconhecidamente o é na paz e nas revoltas contra a tirania. Nesses casos, porém, seu humanitarismo é muitas vezes posto em perigo por suas tendências românticas.

Uma tentativa consciente e não desprovida de sucesso de reviver essa experiência, com a finalidade de deter a sociedade e de perpetuar um domínio de classe, parece ter sito o Sistema Inglês de Escolas Públicas. (“ Ninguém pode crescer e tornar-se um bom homem a menos que seus primeiros anos tenham sido dedicados a nobres brinquedos”, é o seu lema, extraído da República, 558b.)

Outro produto e sintoma da perda do espírito tribalístico de grupo é, sem dúvida, a ênfase que Platão dá á analogia entre a política e a medicina (cf. capítulo 8, especialmente a nota 4), ênfase que expressa o sentimento de que o corpo da sociedade está enfêrmo, isto é, o sentimento de tensão, de estar á deriva.

“Dos tempos de Platão para diante, os espíritos dos filósofos políticos ao que parece, têm recorrido a essa comparação entre a medicina e a política”, diz G. E. Catlin (A Study of the Principies of Politics, 1930, nota a 458, onde Tomás de Aquino, G. Santayana e Dean Inge são citados em apôio a sua afirmativa; cf. também as citações, em ob. cit? nota a 37, da Lógica de Mill). Catlin também fala, de modo muito característico, de “harmonia” e de “desejo de proteção, quer assegurados pela mãe, quer pela sociedade”. (Cf. também a nota 18 ao capítulo 5).

69 — Cf. o capítulo 7 (nota 24 e textos; ver Aten., XI, 508) para os nomes de nove desses discípulos de Platão (incluindo Dionísio, o Moço, e Dion).

Suponho que a repetida insistência de Platão sobre o uso, não só da força, mas de “persuasão e força” (cf. Leis, 722b e notas 5, 10 e 18 ao capítulo 8), tivesse a intenção de ser uma crítica ás táticas dos Trinta, cuja propaganda era, em verdade, primitiva. Isto, entretanto, implicaria em estar Platão bem consciente da receita de Pareto para que os sentimentos sejam utilizados em lugar de ser combatidos. O fato de que o amigo de Platão, Dion (cf. riota 25 ao capítulo 7) governo Siracusa como um tirano é admitido até mesmo por Meyer, em sua defesa de Dion, cujo destino ele explica, a despeito de sua admiração por Platão como político, pondo em relêvo “ o abismo existente entre a teoria (platônica) e a prática”. (Ob. cit., V, 999). Meyer diz de Dion (loc. cit.) : “ O rei ideal tornara-se, externamente, indistinguível do tirano digno de desprêzo”. Mas ele acredita que, no seu íntimo, por assim dizer, Dion permanecesse um idealista e que sofresse profundamente quando a necessidade política o forçasse ao assassínio (especialmente ao de seu amigo Heráclides), impondo-lhe ainda medidas semelhantes. Eu penso, entretanto, que Dion agiu de acordo com a teoria de Platão, uma teoria que, pela lógica do poder, levou Platão, nas Leis, a admitir até mesmo a bondade da tirania (790e sgs.; no mesmo ponto, pode também haver uma sugestão de que a derrocada dos Trinta fôsse devida a seu grande número. Com Crítias sozinho tudo teria ido muito bem).

70 — O paraíso tribal é, sem dúvida, um mito (embora alguns povos primitivos, e acima de todos os esquimós, pareçam ser bastante felizes). Pode não haver sensação de estar á deriva na sociedade fechada, mas há ampla evidência de existirem outras formas de medo — o medo dos poderes demoníacos que se ocultam por trás da natureza. A tentativa de reviver esse medo e usá-lo contra os intelectuais, os cientistas, etc. caracteriza muitas das últimas manifestações da revolta contra a liberdade. Deve-se creditar a Platão, discípulo de Sócrates, nunca lhe haver ocorrido apresentar seus inimigos como os rebentos dos sinistros demônios das trevas. Neste ponto ele permaneceu esclarecido. Tinha pouca inclinação a idealizar o mal, que para ele era simplesmente bondade degradada, ou degenerada, ou empobrecida. (Só numa passagem das Leis, 896e e 898c há o que pode ser uma sugestão de uma idealização abstrata do mal.

71 — Uma nota final pode ser aqui acrescentada em relação com a minha observação sobre a volta às bestas. Desde que o darwinismo se intrometeu no campo dos problemas humanos (intrusão pela qual não podemos culpar Darwin), muitos “zoólogos sociais” tem provado que a raça humana está fadada a degenerar fisicamente, por causa da insuficiente competição física e porque a possibilidade de proteger o corpo através dos esforços do espírito impede que a seleção natural atue sobre nossos corpos. O primeiro a formular essa ideia (embora sem acreditar nela, foi Samuel Butler, que escreveu: “ O único perigo sério que este escritor (um escritor “ Nenhuriano”) temia foi o de que as máquinas (e, podemos ajuntar, a civilização em geral) tanto… diminuíssem a severidade da competição que muitas pessoas de físico inferior conseguiram sobreviver e transmitir sua inferioridade a seus descendentes” (Erewhon, 1872; cf. ed. Everyman, p. 161). Tanto quanto sei, o primeiro a escrever maciço volume sobre esse tema foi W. Schallmayer (cf. nota 65 ao cap. 12), um dos fundadores do racismo moderno. De fato, a teoria de Butler tem sido continuamente redescoberta (especialmente por “naturalistas biológicos” no sentido do capitulo 5). De acordo com alguns escritores modernos (ver, p. ex., G. H. Eastabrooks, Man: The Mechanical Misfit, 1941) o homem cometeu o erro decisivo quando se tornou civilizado e especialmente quando começou a ajudar os fracos; antes disso, ele era um quase perfeito animal-homem; mas a civilização, com seus métodos artificiais de proteger os débeis, leva á degeneração e, portanto, deve acabar por destruir-se. Em réplica a tais argumentos, acho que poderiamos primeiramente admitir que o homem possivelmente desaparecerá um dia deste mundo, más devemos acrescentar que isso também é verdade quanto ás mais perfeitas bestas, para nada dizer daquelas que são apenas “quase perfeitas”. A teoria de que a raça humana poderia viver um pouco mais se não tivesse cometido o êrro fatal de auxiliar os fracos é muito discutível; mas, mesmo se fosse verdadeira, — será realmente a simples extensão da sobrevivência da raça tudo quanto desejamos? Ou será o animal-homem tão eminentemente valioso para que prefiramos um prolongamento de sua existência (de qualquer modo, ele existiu por tempo bem considerável) á nossa experiência de auxiliar os fracos?

A humanidade, creio eu, não se tem saído tão mal. Apesar da traição de alguns de seus líderes intelectuais, apesar dos efeitos estupefacientes dos métodos platônicos na educação e dos devastadores resultados da propaganda, tem havido alguns sucessos surpreendentes. Muitos fracos têm sido ajudados e, há já cerca de cem anos, a escravidão foi praticamente abolida. Algum dia ela poderá, em breve talvez, ser reintroduzida. Penso mais otimistamente e, afinal de contas, isso dependerá de nós. Mas mesmo se tudo isso devesse ser de novo perdido, mesmo que tivéssemos de retornar ao quase perfeito homem-animal, isso não alteraria o fato de que certa vez (ainda que por curto tempo) a escravidão desapareceu da face da terra. Essa realização e sua lembrança, creio eu, poderão consolar alguns de nós de todos os nossos desajustamentos, mecânicos ou o que sejam; e poderão mesmo compensar, para alguns de nós, o engano fatal que nossos antepassados cometeram, ao perder a oportunidade áurea de deter toda mudança — de retornar á jaula da sociedade fechada e estabelecer, para todo o sempre, um perfeito jardim zoológico de macacos quase perfeitos.


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