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Comentários a ‘O Fascínio de Platão’ de Karl Popper – Introdução

No dia 25 de março de 2019 os inscritos no programa Novos Pensadores começaram a se debruçar sobre o primeiro volume de A Sociedade Aberta e Seus Inimigos, de Karl Popper (1945), intitulado O Fascínio de Platão.

Entender as razões do fascínio de Platão é fundamental para a aprendizagem democrática.

Como uma canja para os que não estão fazendo o programa vamos publicar aqui os textos originais de Popper – com destaques em vermelho e os comentários provocativos em azul – que geraram conversações democráticas entre os participantes do curso.

Republicamos abaixo a introdução do primeiro volume.

INTRODUÇÃO

Não desejo ocultar o fato de que só posso encarar com repugnância… a inflada presunção de todas esses volumes saturados de sabedoria, como os que agora estão em moda. De fato, estou plenamente convencido de que… os métodos aceitos devem aumentar infindavelmente essas loucuras e disparates, e de que mesmo a completa aniquilação de todas essas fantasiosas realizações não chegaria possivelmente a ser tão prejudicial quanto essa ciência fictícia, com sua maldita fertilidade.

KANT

Este livro suscita questões que podem não ser evidentes a leitura do índice.

Esboça ele algumas das dificuldades enfrentadas pela nossa civilização, uma civilização que talvez se possa descrever como objetivando a humanidade e a razoabilidade, a igualdade e a liberdade, uma civilização, por assim dizer, ainda na infância e que continua a crescer a despeito do fato de tantas vezes haver sido traída pelos dirigentes intelectuais do gênero humano. Tenta mostrar que essa civilização ainda não se recuperou de todo do choque de seu nascimento, da transição da sociedade tribal, ou “sociedade fechada”, com sua submissão às forças mágicas, para a sociedade aberta, que põe em liberdade as faculdades críticas do homem. Procura demonstrar que o choque dessa transição é um dos fatores que tornaram possível o surgimento daqueles movimentos reacionários que tentaram, e ainda tentam, derrubar a civilização e retornar ao tribalismo. E sugere que aquilo a que hoje damos o nome de totalitarismo pertence a uma tradição que é tão antiga, ou tão nova, como a nossa própria civilização.

Eis um problema, já no primeiro parágrafo da introdução. O que ele, Popper, chama de “civilização”? A submissão às forças mágicas, inventadas ou manejadas por sacerdotes, existiu sim na sociedade patriarcal, que é o que, correntemente, chamamos de civilização (e que correspondeu à militarização, ou seja, à sociedades onde a hierarquia foi um padrão de organização predominante), não na pré-história dos grupos de caçadores e coletores, das tribos paleolíticas ou, mesmo, nas aldeias agrícolas neolíticas. Só há opressão de forças mágicas quando os deuses são sobrenaturais, não quando são naturais, como a deusa neolítica e outras forças associadas aos elementos ou fenômenos da vida. Assim como não define civilização, Popper também não deixa claro o que entende por ‘tribalismo’. O tribalismo dos Ianomâmis seria, porventura, obsessor ou gerador de totalitarismo. Onde não há poder vertical, guerra (ou seja, autocracia) – e Estado, como tronco gerador de programas verticalizadores – não pode haver totalitarismo.

Busca este livro, assim, contribuir para que compreendamos o totalitarismo e a significação da permanente luta contra ele.

Mais ainda, tenta examinar a aplicação dos métodos críticos e racionais da ciência aos problemas da sociedade democrática. Analisa os princípios da reconstrução social democrática, os princípios daquilo que posso denominar “mecânica social gradual”, em oposição à “mecânica social utópica” (como se explica no Capítulo 9). E procura varrer alguns dos obstáculos que impedem um encaminhamento racional dos problemas da reconstrução social, o que faz pela crítica daquelas filosofias sociais responsáveis pelo amplamente difundido preconceito contra as possibilidades da reforma democrática. A mais poderosa dessas filosofias é uma que chamo historicismo. A história do aparecimento e da influência de algumas formas importantes de historicismo é um dos tópicos principais do livro, que poderia mesmo ser descrito como uma coleção de notas marginais relativas ao desenvolvimento de certas filosofias historicistas. Umas poucas observações sobre a origem do livro indicarão o que entendemos como historicismo e como se relaciona ele com as demais questões mencionadas.

Ao que parece o interesse de Popper é descobrir os antecedentes lógicos (lato sensu) das filosofias da história que levam ao totalitarismo.  Ele quer descobrir por que se formaram narrativas que atribuem à história um sentido imanente (em especial o marxismo). Mas, em virtude disso, seu olhar retrospectivo é orientado pelo resultado esperado. Popper quer mostrar que o historicismo é intrinsecamente avesso à democracia, o que está correto. Mas esses antecedentes lógicos não podem ser confundidos com precedentes históricos: do contrário teríamos que concordar com a afirmação de que sociedades tribais são contrárias à democracia, o que é um absurdo. Elas não têm nada a ver com democracia porque não são autocracias. A democracia é um movimento ou processo de desconstituição de autocracia e só faz sentido como resistência à tirania. Este é o seu genos.

Embora eu esteja principalmente interessado nos métodos da física (e conseqüentemente em certos problemas técnicos que estão bem distantes dos tratados neste livro), também me tenho interessado, por muitos anos, pelo problema do estado algo insatisfatório de certas ciências sociais e especialmente da filosofia social. Isso, naturalmente, suscita o problema de seus métodos. Meu interesse por este problema foi grandemente estimulado pelo aparecimento do totalitarismo e pelo malogro das várias ciências e filosofias sociais em dar-lhe sentido.

Com relação a isto, um ponto me parecia de particular urgência.

Vezes demais ouvimos a sugestão de que certa forma ou outra de totalitarismo é inevitável. Muitos que deviam ser responsabilizados pelo que dizem, em vista de sua inteligência e experiência, anunciam que não há meio de fugir a isso. Perguntam-nos se somos realmente bastante ingênuos para acreditar que a democracia possa ser permanente; se não vemos que ela é apenas uma das muitas formas de governo que vêm e vão no decurso da história. Argumentam que a democracia, a fim de combater o totalitarismo, é forçada a copiar-lhe os métodos, tornando-se assim também totalitária. Ou asseveram que nosso sistema industrial não pode continuar a funcionar sem adotar os métodos do planejamento coletivista e, dessa inevitabilidade de um sistema econômico coletivista, inferem que a adoção de formas totalitárias de vida social é igualmente inevitável.

Tais argumentos podem parecer bastante plausíveis. Em tais assuntos, porém, a plausibilidade -não é orientação em que se possa confiar. Com efeito, não se deveria entrar na discussão desses especiosos argumentos antes de ter considerado a seguinte questão de método: está dentro do alcance de qualquer ciência social fazer tão amplas profecias históricas? Podemos esperar mais do que a resposta irresponsável do adivinho, quando perguntamos a alguém o que o futuro reserva para a humanidade ?

Trata-se aqui do método das ciências sociais. E isso é claramente mais fundamental do que qualquer debate sobre qualquer argumento apresentado em particular como sustentáculo de qualquer profecia histórica.

Um exame cuidadoso desta questão levou-me à convicção de que essas profecias históricas de largo alcance estão inteiramente fora do âmbito do método científico. O futuro depende de nós mesmos, e nós não dependemos de qualquer necessidade histórica. Há, contudo, influentes filosofias sociais que sustentam posição oposta. Proclamam que todos tentam usar o cérebro para predizer acontecimentos vindouros; que é por certo legitimo tentar um estrategista prever o resultado de uma batalha; e que são tênues as fronteiras entre predições dessa ordem e as mais ambiciosas profecias históricas. Asseveram que a tarefa da ciência em geral é fazer predições, ou antes, aprimorar nossas predições cotidianas, colocando-as em bases mais seguras; e que, de modo especial, cabe às ciências sociais fornecer-nos profecias históricas a longo prazo. Também acreditam haver descoberto leis históricas que habilitam a profetizar o curso dos acontecimentos históricos. As várias filosofias sociais que sustentam afirmações dessa espécie, agrupei-as sob o nome de historicismo. Noutra parte, em The Poverty of Historicism (Economica, 1944-45), tentei rebater essas afirmativas é mostrar que, a despeito de sua plausibilidade, são baseadas em grosseira incompreensão do método da ciência e, especialmente, no esquecimento da distinção entre predição científica e profecia histórica. E enquanto me dedicava à análise e à crítica sistemáticas das asseverações do historicismo, tentei também coligir algum material para ilustrar seu desenvolvimento. As notas reunidas com essa finalidade tomaram-se as bases deste livro.

Correto. A história não pode ter sentido e não vai para lugar algum. Não é o desdobramento de uma substância. Não pode ter leis conhecíveis por alguns (como queria o materialismo histórico marxista). Não pode ter um futuro determinado por seu próprio mecanismo de desdobramento. Não há, portanto, um futuro, senão múltiplas linhas temporais possíveis, o que inviabiliza a profecia (entendida como previsão do que ainda não aconteceu). A sociedade aberta (isso ele não chega a dizer claramente, mas pode ser inferido, é a que tem o futuro aberto). Do ponto de vista epistemológico estão corretas as críticas de Popper.

A análise sistemática do historicismo objetiva algo como o rigor científico. Este livro não o faz. Muitas das opiniões manifestadas são pessoais. O que ele deve ao método científico é, amplamente, a consciência de suas limitações: não oferece provas onde nada pode ser provado, nem pretende ser cientifico onde nada mais pode dar que uma opinião pessoal. Não procura substituir os velhos sistemas de filosofia por um novo sistema. Não procura juntar-se a todos aqueles volumes saturados de sabedoria, às metafísicas da história e do destino que atualmente estão em voga. Busca, antes, mostrar que essa sabedoria profética é prejudicial, que as metafísicas da história impedem a aplicação dos métodos graduais da ciência aos problemas da reforma social. E, ainda, tenta mostrar que podemos tomar-nos os artífices de nosso destino, quando deixarmos de posar como seus profetas.

Ao pesquisar o desenvolvimento do historicismo, verifiquei que o costume perigoso da profecia histórica, tão difundido entre nossos dirigentes intelectuais, tem várias funções. É sempre lisonjeiro pertencer ao círculo íntimo dos iniciados, possuir os insólitos poderes de predizer o curso da história. Além disso, há a tradição de que os dirigentes intelectuais são dotados de tais poderes, de modo que não os possuir pode levar à perda de categoria. Por outro lado, o perigo de serem desmascarados como charlatães é muito pequeno, pois podem sempre argumentar que é por certo permissível fazer predições menos abrangentes; e os limites entre estas e os augúrios são fluidos.

Às vezes, porém, há outros e talvez mais profundos motivos que sustentam as crenças historicistas. Os profetas que profetizam a vinda de um milênio de venturas podem dar expressão a um sentimento profundamente arraigado de insatisfação; e seus sonhos, na verdade, talvez deem esperança e encorajamento a muitos que, sem eles, dificilmente os teriam. Mas devemos também notar que sua influência pode impedir-nos de enfrentar as tarefas diárias da vida social. E aqueles profetas menores que anunciam o provável acontecimento de certas ocorrências, como uma queda no totalitarismo (ou talvez no “empresarismo”), podem, desejem-no ou não, ser instrumentos para que tais coisas aconteçam. Sua declaração de que a democracia não deve durar sempre é tão verdadeira, ou tão pouco exata, como a asserção de que a razão humana não deve durar sempre, visto como só a democracia fornece um arcabouço institucional que permite a reforma sem violência e, assim, o uso da razão nos assuntos políticos. O que dizem, porém, tende a desencorajar os que combatem o totalitarismo; seu motivo é sustentar a revolta contra a civilização. Outro motivo ainda parece poder ser encontrado se considerarmos que os metafísicos historicistas são capazes de aliviar os homens do ônus de suas responsabilidades. Se soubermos que as coisas estão para acontecer, não importa o que façamos, então poderemos sentir-nos livres para desistir de lutar contra elas. Poderemos, mais especialmente, desistir de tentar controlar aquelas coisas que a maioria considera serem males sociais, como a guerra; ou, para mencionar algo menor, embora não menos importante, a tirania do funcionário mesquinho.

A afirmação de que “só a democracia fornece um arcabouço institucional que permite a reforma sem violência e, assim, o uso da razão nos assuntos políticos” é problemática. Em primeiro lugar porque a democracia não é propriamente sem violência e sim sem guerra (e guerra não é violência e sim construção e manutenção de inimigos como pretexto para estruturar cosmos sociais a partir de padrões de organização hierárquicos e modos autocráticos de regulação de conflitos – o que só ocorreu a partir do que chamamos de civilização). Em segundo lugar porque a democracia pressupõe, antes da razão (e do raciocinar) um emocionar amistoso (não-adversarial). Há também uma afirmação, ainda mais problemática, de que o motivo dos que querem desencorajar o combate ao totalitarismo seria “sustentar a revolta contra a civilização”. Ora… novamente a história de que a tal ‘civilização’ é benéfica por contraposição a um maléfico tribalismo. A civilização que floresceu em cidades-Estado mesopotâmicas, como Nippur, Ur, Kish, Uruk, Lagash era benéfica? Em que sentido era mais benéfica do que as sociedades sem-Estado de Çatalhüyük ou Jericó?

Não desejo sugerir que o historicismo deva ter sempre tais efeitos. Há historicistas —especialmente os Marxistas — que não desejam aliviar os homens do ônus de suas responsabilidades. Por outro lado, há certas filosofias sociais que podem, ou não, ser historicistas, mas que proclamam a impotência da razão na vida social e que, por esse anti-racionalismo, propagam esta atitude: “segue o Líder, o Grande Estadista, ou torna-te tu mesmo um Líder”. Tal atitude, para a maioria das pessoas, deve significar a submissão passiva às forças pessoais ou anônimas que governam a sociedade.

Ora, é interessante observar que alguns dos que acusam a razão e a culpam mesmo pelos males sociais de nosso tempo, assim o fazem, de um lado, porque se convencem do fato de que a profecia histórica ultrapassa a força da razão e, de outro lado, por não se poderem convencer de que uma ciência social, ou a razão na sociedade, tenham outra função que não a da profecia histórica. São, em outras palavras, historicistas desiludidos; são homens que, a despeito de compreender a pobreza do historicismo, não se capacitam de que retêm o fundamental preconceito historicista: a doutrina de que as ciências sociais, para terem alguma utilidade, devem ser proféticas. É claro que tal atitude deve conduzir à rejeição da aplicabilidade da ciência e da razão aos problemas da vida social, levando, em última instância, à doutrina do poder, da dominação e da submissão.

Por que todas essas filosofias sociais sustentam a revolta contra a civilização? Qual o segredo de sua popularidade? Por que atraem e seduzem tantos intelectuais? Inclino-me a pensar que a razão está em darem expressão a uma profunda insatisfação para com um mundo que não vive, nem pode viver, à altura de nossos ideais morais e de nossos sonhos de perfeição. A tendência do historicismo (e das posições afins) para sustentar a revolta contra a civilização pode ser devida ao fato de ser o próprio historicismo, em grande escala, uma reação contra o ônus de nossa civilização e sua exigência de responsabilidade pessoal.

Não se pode entender o ultra-racionalismo popperiano que estabelece que as filosofias sociais historicistas são uma revolta anti-racionalista contra a civilização (seja lá o que for).

Estas últimas alusões são um tanto vagas, mas devem bastar para um introdução. Mais adiante serão justificadas por material histórico, especialmente no capítulo “A Sociedade Aberta e seus Inimigos”. Estive tentado a colocar esse capítulo no início do livro; dado o interesse do assunto, teria por certo constituído introdução mais convidativa. Achei, porém, que o pleno peso dessa interpretação histórica não poderia ser sentido se não fosse precedido pelo material que o livro antes debate. Parece-me que primeiro o leitor deve impressionar-se com a identidade entre a teoria platônica da justiça e a teoria e prática do totalitarismo moderno, para que então possa sentir quanto é urgente a interpretação dessas questões.

Popper vai buscar, em Heráclito, Hesíodo e Platão os fundamentos historicistas do totalitarismo. Está certo, porém não exatamente pelas razões que toma como válidas, como veremos na sequência do livro.


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