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Como as democracias nascem

Muita gente anda preocupada – e com razão – com a crise da democracia na contemporaneidade. Livros, como o de Levitsky e Ziblat (2018), “Como as democracias morrem“, e como o de Runciman (2017), “Como a democracia chega ao fim”, viraram best-sellers. Todavia, sintomaticamente, não há tanta gente assim interessada em saber ‘Como as democracias nascem’. É como se elas, as democracias, nas cabeças das pessoas e nas suas conversações, não pudessem mais nascer ou renascer.

Como podemos investigar isso? Bem, parece necessário começar por uma reconstrução da primeira invenção da democracia e da sua reinvenção pelos modernos (nas variantes inglesa, americana e francesa), tendo como hipótese básica a ideia de que a democracia não nasceu de uma vez e pronto. Ela nasce (ou renasce) a cada vez que regulamos conflitos de modo não-guerreiro. Ela não nasce num (único) Big Bang. Ela nasce ou renasce em Small Bangs, tipo assim buracos brancos (ou bombas-gama). E onde acontecem essas explosões criativas? Não há mais a menor dúvida sobre isso: elas acontecem em comunidades.

Diante da regressão em curso, em escala global – recessão, desconexão e desconsolidação da democracia sob uma terceira grande onda de autocratização – a única proposta democrática consistente parece ser a de articular novas comunidades políticas. Em homenagem ao que Václav Benda e Václav Havel chamaram, no final dos anos 70 do século passado, de “poleis paralelas” (ou “estruturas paralelas”), elas também serão uma espécie de polis.

As assembleias surgidas em Atenas, após a reforma distrital de Clístenes (508 a.C.), eram poleis, quer dizer, comunidades (κοινωνία) políticas. Naquela época elas eram construções de um contra-poder (o poder do demos contra o poder do genos – os aglomerados familiares da aristocracia fundiária) e foram incorporadas ao novo regime político. Sim, a democracia não foi criada por um decreto de Clístenes, nem veio de Marte ou de Vênus: ela foi nascendo, concretamente, nessas novas comunidades políticas. Como foi dito acima, não nasceu de uma vez, num único evento fundante, e sim que continua nascendo, como uma sucessão de explosões criativas. Esse processo levou mais ou menos meio século, até que pudessem surgir agentes como Efialtes, Péricles, Aspásia, Protágoras e outros sofistas.

Efialtes, aliás, um dos principais agentes democráticos, poderia ser considerado como um dos “pais fundadores” da primeira democracia – se a democracia tivesse propriamente fundadores – pelo fato de ter proposto, por volta de 462 a.C., a aprovação de uma lei privando o Areópago – um velho conselho aristocrático – da maior parte de suas prerrogativas judiciárias (e políticas). Mas Efialtes, tido pela lenda como um pobretão, por ser ‘qualquer um do povo’, ao contrário dos outros “fundadores” (mais famosos, como Clístenes e Péricles), que provinham da oligarquia das grandes famílias de senhores de terra, não era um alienígena. Surgiu em alguma das comunidades políticas que se formaram a partir da reforma distrital de Clístenes. Ao que tudo indica, não era um pensador, um filósofo, e sim apenas um democrata – uma pessoa comum que nasceu numa rede de conversações.

Sobre esse ponto, é preciso ver que os primeiros inventores da democracia não queriam propriamente desvendar o mundo, captar uma ordem oculta geradora da realidade visível, estabelecer princípios de como viver melhor nesse mundo ou prescrever comportamentos para restabelecer a sintonia com alguma ordem perfeita ou mais próxima da perfeição. Isso faziam alguns filósofos, como Platão que, via de regra, eram adversários da democracia; não, porém, alguns sofistas, que estão entre seus primeiros experimentadores.

“Ah! – diziam-lhes os bem-pensantes da época – mas o mundo é assim, tal como é, em razão disso ou daquilo. Seja porque há uma imutabilidade na ordem das coisas ocultas que produzem as coisas aparentes, seja porque uma antiga ordem, mais pura, reta e perfeita, se corrompeu por efeito do tempo e, então, cabe aos sábios orientar a sua restauração”.

“OK – retrucariam os democratas, se conversassem nestes termos – mas será que não podemos criar outros mundos em nossa convivência?”. 

A democracia nunca foi mesmo um programa de sabedoria. Foi, com perdão dos neologismos meio sem-jeito, um programa open de vivedoria (ou melhor, de convivedoria). Os primeiros democratas queriam experimentar viver de modos inéditos, ainda quando todos dissessem que as coisas não são assim como eles queriam que fossem porque não poderiam ser (e aqui, para quem consegue perceber, está a raiz do realismo político e, na verdade, de todo realismo). Arendt (c. 1950) percebeu esse componente original do “genoma” da democracia. Maturana (1993) também insistiu nesse ponto e ensaiou até uma reconstrução imaginativa do processo pelo qual as pessoas inventaram a democracia a partir das suas conversações como uma obra de arte.

Na época de Benda e Havel as poleis que eles propunham eram chamadas de “paralelas” porque não faziam parte do regime e sim da resistência ao regime autocrático, que eles chamavam de “pós-totalitário”: não eram embriões de um novo Estado e sim um modo de articular e aglutinar setores dissidentes da sociedade que se opunham ao Estado tal como estava organizado e funcionava.

Hoje, em plena recessão democrática (diagnosticada, entre outros, por Larry Diamond) e sob uma terceira grande onda de autocratização (estudada por Lührmman, Lindberg e pelos pesquisadores do V-Dem Institute), sobretudo diante da irrupção de uma segunda grande guerra fria, as “poleis paralelas” serão modos de resistir à autocratização das democracias (principalmente por erosão) promovida pelos novos populismos do século 21 (tanto o populismo-autoritário dito de extrema-direita, quanto o neopopulismo dito de esquerda). As novas “poleis paralelas” serão, em certo sentido, áreas livres de populismos.

Mais do que isso, porém. Não se trata agora apenas de defender as democracias que temos e sim de experimentar novas democracias que queremos. Os agentes democráticos que se dedicarem a isso terão como papel precípuo configurar ambientes propícios à gestação desses novos mundos-bebês.

Vale a pena estudar – como propôs meu amigo Nilton Lessa – processos concretos de nascimento (ou renascimento, o que é a mesma coisa) da democracia sucedentes a períodos autocráticos (em especial na Alemanha e no Japão, após a segunda guerra). Nosso objetivo, entretanto, não é apenas saber como a democracia nasceu (ou renasceu) em situações históricas passadas e sim como elas podem nascer (ou renascer) em qualquer momento.

Há aqui um ponto importante. Como a democracia é sempre um processo de desconstituição de autocracia, fica mais fácil ver como a democracia pode ser instaurada ou restaurada após um regime autocrático. O problema é saber como ela pode nascer contínua ou intermitentemente em regimes democráticos formais, como as democracias eleitorais parasitadas por populismos. Neste caso se trata de saber como é possível incrementar o conteúdo ou as práticas liberais dessas democracias (ou seja, como democracias eleitorais podem transitar para democracias liberais).

E há ainda outro ponto. Mesmo as democracias liberais estão em crise ou em processo de deconexão e desconsolidação (porque boa parte das pessoas que vivem nesses regimes – como diagnosticou Yascha Mounk (2018) – não aposta mais na democracia com o mesmo entusiasmo). Ou seja, para superar esse processo de morte lenta ou de esgotamento da democracia, mesmo as democracias liberais têm que se reinventar (continua ou intermitentemente).

Isso nos remete, novamente, à dimensão (perdida) da democracia como modo-de-vida (ou de convivência social), para além do tratamento que a questão está recebendo no âmbito da teoria política, digamos, tradicional (focada em direitos políticos e liberdades civis). Ou seja, temos de ver quais as condições sociais que permitem a invenção e a reinvenção do regime político democrático (e, mais do que isso, do modo-de-vida democrático).

Há evidências de que esse processo se dá molecularmente, na base da sociedade. Que ele tem a ver com o fluxo e/ou o estoque de capital social, ou seja, com as redes. Em primeira instância tem a ver com comportamentos consonantes com ideias de liberdade como sentido da política, de autonomia, colaborativas, de auto-organização e de rede (mais distribuída do que centralizada). Tem a ver com convivencialidade (amistosa ou não-adversarial). E tem a ver com um fundamento associativo do espaço público, na linha do que pensou John Dewey.

Até há pouco pensávamos que a formação democrática da vontade política teria como fonte originária a liberdade individual de opinar protegida da interferência do Estado (segundo a visão clássica do liberalismo moderno), o reino público constituído pela argumentação discursiva (segundo as visões do republicanismo político de Arendt e do procedimentalismo democrático de Habermas) ou a convergência comunal de desejos pessoais para contender com um problema ou realizar um projeto (segundo a visão de democracia cooperativa de Dewey). Ainda que fiquemos tentados a dizer que todas as hipóteses estão corretas sob pontos de vista não colidentes (e excludentes), é forçoso reconhecer que, com a manipulação das mídias sociais para falsificar o processo de formação da opinião pública, haverá uma transição das duas primeiras para a terceira – a menos que não haja mais nascimento de democracia, o que significará, aí sim, a sua morte.

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