Este artigo é parte de um estudo, em curso, sobre as classificações correntes de regimes políticos. Ele foi provocado pelas seguintes perguntas:
Democracias (apenas) eleitorais são regimes da mesma natureza que democracias liberais? E podem ser chamadas propriamente de democracias?
O que fazer com os 58 regimes que o V-Dem classifica como democracias eleitorais (1)?
Ou o que fazer com os 48 regimes que a The Economist Intelligence Unit (EIU) chama de democracias defeituosas (flaweds democracies) (2) e, ainda, com os 36 regimes que a EIU chama de híbridos (3)?
Não parecem ser todos a mesma coisa. Ainda que sejam considerados (pelo V-Dem) democracias eleitorais, o regime de Portugal não se parece com o da Bolívia e o regime do Canadá não se parece com o do México. Ainda que sejam considerados (pela EIU) democracias defeituosas, o regime da República Checa não se parece com o do Brasil e, menos ainda, com o da Nigéria (hybrid). Qual a diferença entre eles?
Comecemos dizendo que esses regimes não são democracias (liberais).
Em dados de 2022, as mais avançadas democracias do planeta são as 32 democracias liberais (segundo o V-Dem) (4) ou as 24 democracias plenas (segundo a The Economist Intelligence Unit) (5).
Liberal, no sentido político do termo é quem toma a liberdade (e não a ordem, nem que seja a ordem mais justa imaginável do universo) como sentido da política. Os primeiros democratas atenienses, nesse sentido originário do conceito de liberdade, eram democratas liberais.
Nos termos de hoje um regime é democrático na medida em que observa o princípio liberal da democracia, que implica uma visão negativa do poder político: não propriamente a capacidade do governo de se impor à sociedade, mas a possibilidade da sociedade de controlar o governo. Bons exemplos são as democracias liberais na classificação do V-Dem (4) ou as democracias plenas na classificação da The Economist Intelligence Unit (5).
Claro que um regime democrático liberal tem um grau de liberalismo maior do que um regime democrático (apenas) eleitoral (na classificação do V-Dem). Um regime democrático pleno tem um grau de liberalismo maior do que um regime democrático defeituoso ou do que um regime híbrido (na classificação da The Economist Intelligence Unit).
Quando falamos de democracia estamos falando, no sentido pleno do conceito, de democracia liberal.
Isso porque democracia, nesse sentido forte do conceito, equivale à sociedade democrática (aquela que é capaz de controlar o governo). Isso sugere um exame das classificações correntes de regimes políticos. Aquelas categorias que são chamadas de democracias eleitorais (V-Dem) ou de democracias defeituosas e regimes híbridos (The Economist Intelligence Unit) não deveriam ser chamadas, no sentido pleno do conceito, de democracias e sim de regimes eleitorais em transição. Essa transição pode ser democratizante ou autocratizante na medida em que esses regimes se aproximam ou se afastam das democracias (liberais).
Mas há regimes eleitorais não autoritários (não-iliberais) e há regimes eleitorais autoritários (iliberais). Destrinchando a classificação do V-Dem, há democracias eleitorais não parasitadas por populismos (Canadá, Portugal, Malta), há democracias eleitorais parasitadas por neopopulismos, o populismo atual dito de esquerda (Bolívia, Argentina, México) e há democracias eleitorais parasitadas por populismos-autoritários, o populismo atual dito de direita ou de extrema-direita, também chamado de nacional-populismo (Polônia, Armênia, Bulgária). E ainda há democracias eleitorais parasitadas por dois populismos (ditos de esquerda ou de direita ou extrema-direita), como é o caso do Brasil afetado pelo lulopetismo e pelo bolsonarismo. Assim como há autocracias eleitorais neopopulistas (Venezuela, Nicarágua, Angola) e autocracias eleitorais populistas-autoritárias (Hungria, Turquia, Índia).
Regimes eleitorais não-autoritários podem ser considerados Estados democráticos de direito, mas isso não significa que correspondam, necessariamente, à sociedades democráticas. Em outras palavras, nem todos os Estados democráticos de direito possuem (ou melhor, são possuídos por) sociedades capazes de controlar o governo. Por exemplo, em regimes eleitorais não-autoritários parasitados por populismos, há um déficit de democratização da sociedade que impede que eles se convertam em democracias liberais, quer dizer, em democracias no sentido pleno do conceito.
Democracias (apenas) eleitorais (não-liberais) ou democracias defeituosas, enquanto estão sob o domínio de governos populistas, são impedidas de se converter em democracias liberais.
Regimes eleitorais autoritários não são Estados democráticos de direito. Está em aberto a questão de se poderiam ser chamados de Estados de direito (mesmo quando há império da lei). Eles se enquadram mais perfeitamente na categoria de autocracias eleitorais (usada pelo V-Dem).
Há também regimes não-eleitorais (Cuba, China, Arábia Saudita). Sobre esses, na época atual, não há dúvidas. Não são Estados democráticos de direito, nem mesmo Estados de direito (e neles não há império da lei e sim o mando absoluto do líder autocrata ou da sua organização). São as autocracias plenas.
Uma classificação mais condizente com as considerações deste artigo pode ser intentada. Por exemplo, no diagrama abaixo:
A classificação acima é referenciada no conceito de populismo (que é um comportamento político não-liberal). Mas nem todo regime eleitoral não-liberal é populista. Existem regimes eleitorais que não são parasitadas por populismos e que podem ser considerados transições mais próximas para uma democracia (considerando-se que toda democracia propriamente dita é liberal). Em contrapartida, todas os regimes eleitorais parasitados por populismos, conquanto não sejam autocracias, são transições mais próximas para uma autocracia populista (considerando-se que nem toda autocracia é populista, uma vez que autocracias não-eleitorais não são populistas).
Tudo isso, porém, ainda está longe, bem longe, de uma classificação adequada, que deveria ser centrada no conceito de liberalismo, lato sensu, como política que tem como sentido a liberdade, a rigor incluindo, portanto, o paleo-liberalismo dos primeiros democratas (atenienses), o liberalismo clássico (dos reinventores modernos da democracia) e, quem sabe, um futurível liberalismo pós-moderno (a aparecer – se aparecer – numa quarta onda de democratização que poderia ser considerada uma terceira invenção da democracia) (6).
Uma possibilidade classificatória a ser explorada seria a seguinte:
No diagrama acima vê-se que o que chamamos (quer dizer, o V-Dem chama) de democracias eleitorais denominam duas coisas diferentes: regimes em transição democratizante (não-parasitados por populismos) e regimes em transição autocratizante (parasitados por populismos). Os regimes eleitorais não-liberais que chamamos de democracia são, na verdade transições entre democracia (a democracia propriamente dita, quer dizer, a democracia liberal) e autocracia (eleitoral).
Nos regimes em transição democratizante (não parasitados por populismos) há mais elementos de liberalismo (político) do que nos regimes em transição autocratizantes (parasitados por populismos). Porque os populismos derruem os elementos liberais dos regimes eleitorais (como, por exemplo, a aceitação do pluralismo) (7). Nos dias de hoje (ou sob a terceira onda de autocratização) quase nenhum regime eleitoral vira um regime eleitoral autoritário (uma autocracia eleitoral) sem ter sido parasitado por um populismo (como aconteceu na Venezuela, com o neopopulismo chavista e na Hungria, com o populismo-autoritário orbanista). Claro que pode virar, isto sim, um regime não-eleitoral autoritário (uma autocracia fechada) se for vítima de um golpe de Estado em termos tradicionais (como aconteceu recentemente no Niger), mas estes casos estão longe de ser os mais frequentes atualmente.
A investigação continua.
Notas
(1) Electoral democracies (V-Dem 2023):
- Argentina
- Armenia
- Austria
- Bhutan
- Bolivia
- Botswana
- BiH
- Brazil
- Bulgaria
- Canada
- Cape Verde
- Colombia
- Croatia
- Dominican Republic
- Ecuador
- Gambia
- Georgia
- Ghana
- Greece
- Guyana
- Honduras
- Indonesia
- Jamaica
- Kenya
- Kosovo
- Lesotho
- Liberia
- Lithuania
- Malawi
- Maldives
- Malta
- Mauritius
- Mexico
- Moldova
- Mongolia
- Montenegro
- Namibia
- Nepal
- Niger
- North Macedonia
- Panama
- Paraguay
- Peru
- Poland
- Portugal
- Romania
- Tomé & P.
- Senegal
- Sierra Leone
- Slovenia
- Solomon Islands
- South Africa
- Sri Lanka
- Suriname
- Timor-Leste
- Trinidad and Tobago
- Vanuatu
- Zambia
(2) Flaweds democracies (EIU 2022):
- Albania
- Argentina
- Belgium
- Botswana
- Brazil
- Bulgaria
- Cabo Verde
- Colombia
- Croatia
- Cyprus
- Czech Republic
- Dominican Republic
- Estonia
- Ghana
- Greece
- Guyana
- Hungary
- India
- Indonesia
- Israel
- Italy
- Jamaica
- Latvia
- Lesotho
- Lithuania
- Malaysia
- Malta
- Moldova
- Mongolia
- Montenegro
- Namibia
- North Macedonia
- Panama
- Philippines
- Poland
- Portugal
- Romania
- Serbia
- Singapore
- Slovakia
- Slovenia
- South Africa
- Sri Lanka
- Suriname
- Thailand
- Timor-Leste
- Trinidad and Tobago
- United States of America
(3) Hybrid regimes (EIU 2022):
- Armenia
- Bangladesh
- Benin
- Bhutan
- Bolivia
- Bosnia and Hercegovina
- Côte d’Ivoire
- Ecuador
- El Salvador
- Fiji
- Gambia
- Georgia
- Guatemala
- Honduras
- Hong Kong
- Kenya
- Liberia
- Madagascar
- Malawi
- Mauritania
- Mexico
- Morocco
- Nepal
- Nigeria
- Pakistan
- Papua New Guinea
- Paraguay
- Peru
- Senegal
- Sierra Leone
- Tanzania
- Tunisia
- Turkey
- Uganda
- Ukraine
- Zambia
(4) Liberal democracies (V-Dem 2023):
- Australia
- Barbados
- Belgium
- Chile
- Costa Rica
- Cyprus
- Czech Republic
- Denmark
- Estonia
- Finland
- France
- Germany
- Iceland
- Ireland
- Israel
- Italy
- Japan
- Latvia
- Luxembourg
- Netherlands
- New Zealand
- Norway
- Seychelles
- Slovakia
- South Korea
- Spain
- Sweden
- Switzerland
- Taiwan
- United Kingdom
- Uruguay
- USA
(5) Full democracies (EIU 2022):
- Australia
- Austria
- Canada
- Chile
- Costa Rica
- Denmark
- Finland
- France
- Germany
- Iceland
- Ireland
- Japan
- Luxembourg
- Mauritius
- Netherlands
- New Zealand
- Norway
- South Korea
- Spain
- Sweden
- Switzerland
- Taiwan
- United Kingdom
- Uruguay
(6) Cf. a conclusão do meu artigo de 27/07/2023, As três ondas de democratização e de autocratização: uma nova abordagem, disponível em <https://dagobah.com.br/as-tres-ondas-de-democratizacao-e-de-autocratizacao-uma-nova-abordagem/>.
(7) Cf. o artigo de Juraj Medzihorsky & Stafan I. Lindberg (2023), Walking the Talk: How to Identify Anti-Pluralist Parties. Sage Journals (17/05/2023).