“A crença democrática é a crença no homem comum… é a crença na capacidade de todas as pessoas para dirigir sua própria vida”. John Dewey, 1939.
Em uma época em que a democracia vem sendo tão maltratada pelos militantes estatistas, que subordinam a liberdade à igualdade, convém refletir um pouco sobre a essência da democracia. Ao contrário da crença comum, a essência da democracia não é um governo do povo capaz de proporcionar o bem-estar dos cidadãos. Não é, igualmente, um regime capaz de defender os interesses da maioria contra as minorias. Não tem nada a ver com meritocracia, com o governo dos sábios (ou dos melhores), como queria Platão (e o seu Sócrates) e vem divulgando o platonismo nas academias (sim, as academias são projetos do platonismo) no último milênio. Talvez por isso, os principais focos de resistência à democracia encontram-se hoje nas universidades (além de nas corporações e nos partidos). A essência da democracia – e o que nos faz preferi-la às autocracias – é a possibilidade dos seres humanos se auto-conduzirem a partir de suas próprias opiniões. Vejamos.
A democracia – no sentido “forte” do conceito – é uma aposta na capacidade política dos seres humanos de se conduzirem por si mesmos, a partir da liberdade de proferir suas opiniões. Aqui está o centro, o coração da ideia: a aposta – baseada na aceitação da imprevisibilidade da política – de que é melhor a liberdade de opinião do que a ordem do saber quando se trata de regular os conflitos que surgem na sociedade.
A democracia não desvaloriza a sabedoria tradicional (embora grande parte do que assim se possa chamar seja autocrática). A democracia também não desvaloriza o saber filosófico, o saber (no sentido de conhecimento) científico ou o saber técnico (em todos os sentidos, inclusive no seu sentido, mais exato, de know how). O que a democracia não pode fazer é desvalorizar a opinião (doxa) em relação a quaisquer desses saberes (sejam episteme ou techné).
No entanto, todas as cruzadas contra a democracia, de Platão aos tecnocratas contemporâneos, concentraram-se nesse ponto: a desvalorização da opinião.
O episódio inteiro do julgamento de Sócrates – no fundo – refere-se a isso. Sócrates (o Sócrates platônico, nesse particular em nada divergente do xenofôntico) desvaloriza a opinião (doxa) em relação ao saber filosófico e, hoje seria possível dizer, ao conhecimento científico (episteme). Essa, aliás, é a raiz mais profunda do desprezo platônico (e socrático) à democracia, cuja síntese poderia ser descrita como liberdade de opinião, valorização da opinião e exercício da opinião (na praça; i. e., no espaço público). Não a “opinião” do sábio ou do técnico (sim, a doxa tem uma natureza diferente tanto da episteme quanto da techné) e sim a opinião do homem comum.
“A democracia – como disse John Dewey (1939) – é um modo de vida orientado por uma fé prática nas possibilidades da natureza humana. A crença no homem comum é um dos pontos familiares do credo democrático. Esta crença carece de fundamento e de sentido salvo quando significa uma fé nas possibilidades da natureza humana tal como essa se revela em qualquer ser humano, não importa qual seja a sua raça, cor, sexo, nascimento ou origem familiar, nem sua riqueza material ou cultural… A crença democrática é a crença na capacidade de todas as pessoas para dirigir sua própria vida, livre de toda coerção e imposição por parte dos demais, sempre que estejam dadas as devidas condições” (1).
Os gregos – os democratas, por certo, como Péricles ou Protágoras, ou mesmo Tersites (para citar um homem do povo, se estivesse vivo àquela altura), e não os que se posicionavam contra a democracia, como Sócrates e seus dois principais “biógrafos”, Platão e Xenofonte; isso para não falar dos discípulos golpistas de Sócrates, como Crítias e Alcebíades, que se tornaram ditadores – não queriam obter nada com a política, a não ser os homens comuns viverem como seres políticos, isto é, conviverem entre iguais (isonomia) em uma rede pactuada de conversações em que a livre opinião proferida (isegoria) é equitativamente valorizada em princípio (isologia). Ora, essa é a definição de democracia compatível com o sentido da política como liberdade, contra a qual, aliás, militava Platão.
Voltemos à velha Grécia homérica. Tersites, um homem do povo, desafia abertamente Agamênon, o rei. Foi numa assembleia. Como relata I. F. Stone (1988) em O Julgamento de Sócrates, “há muitas assembleias de guerreiros na Ilíada, mas essa é diferente de todas as outras. É a primeira e única ocasião em Homero em que um soldado raso se manifesta, exprimindo a posição dos soldados, e insulta o rei, Agamênon, em sua presença. É o surgimento do homem comum na história escrita, a primeira vez em que um homem do povo usa a liberdade de expressão contra um rei; e sua manifestação é reprimida pela força: Odisseu responde a sua fala não com uma argumentação, mas com uma surra”.
Homero – que apresenta Tersites como um homem tão deformado que chega a ser praticamente um aleijão (para chocar o senso estético da aristocracia, que gostava de heróis belos) e como uma pessoa de fala desagradável (para chocar os mesmos, que amavam a eloquência) – escreveu em uma passagem anterior:
É impossível que todos os aqueus sejamos reis aqui,
Não é bom uma multidão reinar; que haja um único senhor;
Um rei, a quem o filho do mau conselheiro Cronos conferiu
O cetro e o poder de estabelecer a lei, para que ele delibere por seu povo”.
Aqui está dito tudo que importa.
Mas vamos transcrever a passagem inteira do LIVRO II da Ilíada: 2.212-277 (na tradução de Haroldo de Campos):
“Só Tersites crocita, corvo boquirroto,
a cabeça atulhada de frases sem ordem,
sem tino, desatinos, farpas contra os reis,
tudo para atiçar o riso dos Aqueus.
Era o homem mais feio jamais vindo a Ílion:
vesgo, manco de um pé, ombros curvos em arco,
esquálido, cabeça pontiaguda, calva
à mostra, odioso para Aquiles e Odisseu,
que a ambos insultava e que agora ao divino
Agamêmnon afronta com sua voz estrídula
(os Aqueus, contra o rei, andavam ressentidos,
o coração roído de um rancor enorme).
Ele, vociferando, vitupera o Atreide:
“Filho de Atreu, de que reclamas, que te falta?
Tendas plenas de bronze, repletas de escravas,
fina flor, que os Aqueus te dão primazia
de escolha, quando às mãos nos tomba uma cidade.
Careces de mais ouro, que um Troiano, doma-
-corcéis, te traga de Ílion, resgate do filho,
apresado por mim ou presa de outro Aqueu?
Queres outra cativa, para, a teu prazer
apartá-la, possuí-la? Não te cabe, chefe
dos filhos dos Aqueus, cumulá-los de males!
Ó bando de adamados, não Aqueus, Aquéias,
voltemos para casa com as naus. Larguemos
esse um; que coma a sós, em Tróia, os seus despojos
e veja se lhe somos úteis ou inúteis.
Esse que agora mesmo, desfeiteando Aquiles —
melhor do que ele em tudo — rapinou-lhe o prêmio.
Ao coração de Aquiles, brando, faltou fel,
senão seria, Atreide, o teu último ultraje.
Contra o pastor-de-povos, Agamêmnon, rei,
assim falou Tersites. Odisseu divino
se acerca dele, olhar escuro, fala dura:
“Tersites, língua fátua, no arengar sonora,
segura-te, não queiras guerrear com reis.
Homem nenhum, pior que tu, chegou a Ílion
com os filhos de Atreu. É o que digo. Não ponhas
nomes de reis na boca ao proferir arengas.
Cala os insultos. Não te ocupes do retorno.
Não sabemos ao certo o fim de nossa empresa,
se os filhos dos Aqueus, bem ou mal, voltarão.
No entanto, fustigando Agamêmnon Atreide,
pastor-de-povos, eis que o culpas pelos dons
copiosos que lhe doaram destemidos Dânaos.
Arengas impropérios. Pois agora escuta:
prometo (e o cumprirei) se te pilho de novo
desvairando, a cabeça em meus ombros, ereta
eu, Odisseu, não mais terei, nem mais Telêmaco
há de ser filho meu, se não te apanho e dispo
da túnica e do manto, roupas que tu prezas,
dos panos que resguardam teu pudor, e às leves
naus te devolvo, aos trancos, humilhado, em prantos”.
Falou e com o cetro deu-lhe nos costados
e ombros. Ele dobrou-se, de olho lacrimoso.
Um vermelho vergão sangrou-lhe o lombo curvo,
golpe do cetro de ouro. Então sentou-se trêmulo,
olhos em branco, moído, enxugando-se as lágrimas.
Ressentidos embora, os Aqueus gargalharam,
uns aos outros dizendo divertidamente:
“Ó deuses! Odisseu já cumpriu mil façanhas,
príncipe em bons conselhos, ardiloso em guerra.
Feito nenhum, porém, entre os Aqueus melhor
do que este realizou, calando a logorréia
ao boquirroto de ânimo arrogante. Certo,
nunca mais este insano afrontará os reis”.
O que foi isso? Foi um motim das pessoas comuns que compunham a base do exército, duramente reprimido pelos chefes. Tersites xinga o governante. Acusa-o de ladrão e violador. Hoje, o xingaria com palavras de baixo calão (se é que não o fez na ocasião). Se puxasse uma vaia, certamente seria seguido pelo populacho.
Xenofonte, depois, vai falsificar tudo – omitindo a opinião de Homero, citada acima, sobre a impossibilidade das pessoas comuns governarem – para esconder a possibilidade de um homem do povo exercer em tal grau a sua liberdade de opinião e, sobretudo, para livrar a cara de Sócrates (que, no fundo, concordava com a opinião autocrática de Homero).
Pois bem. A democracia está fundada no princípio de que os seres humanos podem se autoconduzir a partir de suas opiniões; de que é possível, ao homem comum (como Tersites, citado acima), esgrimir opiniões com Sócrates; de que Tersites pode ter razão e Sócrates não; de que a polis (não a Cidade-Estado como em geral se traduz, mas a koinonia, a comunidade política), frequentemente poderá dar razão a um Térsites contra um Platão. Isso significa que – para a democracia – a razão política tem uma natureza diferente da razão filosófica, científica ou técnica; ou seja, aquela qualidade filosófica intrínseca que Platão, pela boca de Sócrates, atribui a qualquer Teeteto, os democratas atribuem-na, em termos políticos, a qualquer Tersites, detentor de uma opinião que não pode ser desvalorizada em relação ao saber: e essa é, aliás, a razão pela qual, para a democracia, não pode haver ciência política, a não ser como ciência do estudo da política.
Por que Sócrates foi condenado pela democracia grega? Isso não foi um sinal de intolerância? Não teria sido um mal-entendido? A pena que lhe foi imposta (de morte) é inaceitável atualmente, pelo menos para boa parte dos que estão convencidos da democracia. Mas, independentemente da pena, a condenação que recebeu teria sido justa ou injusta do ponto de vista da democracia?
Do ponto de vista da democracia pode-se sustentar que a condenação foi justa. Sócrates foi condenado não por ter se comportado contra uma ou outra lei de Atenas, senão contra a própria constituição da polis (não contra as leis ordinárias da cidade, mas contra o fundamento sobre o qual se constituía a koinonia, a comunidade política). Platão, Xenofonte e outros “biógrafos” contam que Sócrates foi acusado, entre outras coisas, de estar corrompendo a juventude. Sim, mas é preciso entender que tipo de corrupção ele praticou.
A corrupção praticada por Sócrates, atestada pelo comportamento de seus discípulos como Critias, Cármides e Alcebíades – que logo se transformaram em sanguinários adeptos da autocracia –, foi contra a ideia e a prática da democracia. Sócrates não acreditava na propalada liberdade de expressão dos atenienses. Segundo ele as opiniões dos homens comuns não passavam de doxa: “convicções sem substância, pálidas sombras da realidade, que não devem ser levadas a sério e que só teriam efeito de desencaminhar a cidade” (2).
Sócrates (ainda o “Sócrates de Stone” – tão válido como qualquer outro Sócrates de algum “biógrafo” tardio, que tentou interpretar seus pontos de vista, como Libânio, por exemplo), considerava “absurdo que se incentivasse a livre expressão de opiniões sem fundamento ou mesmo irracionais, ou que se fundamentasse a política da cidade em uma contagem de cabeças, como quem conta repolhos”. Portanto, não acreditava na democracia. Ele não só pensava assim, mas poderia ter declarado mesmo alguma coisa como:
“Acredito, e já o disse muitas vezes, que não deve o sapateiro ir além do sapato. Não creio em versatilidade. Recorro ao sapateiro quando quero sapatos e não ideias. Creio que o governo deve caber àqueles que sabem, e os outros devem, para seu próprio bem, seguir suas recomendações, tal como seguem as do médico” (3).
Coerentemente com essa visão (generalizada nos dias de hoje, como mostram todas as pesquisas de opinião sobre a importância e o significado da democracia), Sócrates contribuiu para transformar jovens aristocratas em esnobes pró-espartanos e aliados dos autocratas que deram três golpes na democracia ateniense, derrubando-a sucessivamente em 411 e em 404 e tentando novamente fazê-lo em 401 a. E. C., abolindo pela força a liberdade de opinião. Crítias e Cáricles, seus discípulos, foram membros da ditadura dos Trinta, que assassinou – segundo conta Xenofonte – 1.500 atenienses durante o curto período de oito meses em que estiveram no poder (um “número quase superior” ao dos que tinham sido mortos pelos espartanos durante os últimos dez anos da guerra do Peloponeso). Não em outro, mas em tal contexto, cerca de três anos depois do último desses golpes de mão, que Sócrates foi a julgamento. Mesmo assim, o resultado foi relativamente apertado (280 votos a favor da condenação e 220 a favor da absolvição), o que mostra a imensa tolerância dos democratas atenienses.
Hoje pode-se dizer – mas tal especulação não vale como método de investigação histórica – que Atenas teria saído fortalecida se absolvesse Sócrates em vez de condená-lo. No entanto, a condenação de Sócrates não foi um mal-entendido. Os cidadãos que reprovaram seu comportamento não estavam sendo intolerantes com a pluralidade de concepções. Estavam tentando proteger sua frágil invenção original, a incipiente autonomia de sua topia no meio de um mar de Cidades-Estado hierárquicas, imersas em utopias-míticas, sua ilha de liberdade cercada de autocracias por todos os lados: a democracia!
Esse episódio coloca uma questão relevante que permanece atual: qual o grau de tolerância que a democracia deve ter em relação aos inimigos da democracia? Até que ponto devemos dar liberdade aos que querem acabar com a liberdade? Até que ponto é possível conviver com os que parasitam a democracia com o propósito de aboli-la ou restringi-la?
Eis o ponto. Não é uma questão fácil, que admita uma resposta geral. Depende das salvaguardas democráticas disponíveis. As salvaguardas atenienses, como vimos, não foram capazes de proteger sua democracia de dois golpes sucessivos, aplicados por defensores de ideias oligárquicas, que estabeleceram, em 411, a ditadura dos Quatrocentos (que durou quatro meses) e, em 404, a ditadura dos Trinta (que durou oito meses). As duas conspirações foram apoiadas pela autocracia espartana – inclusive, a segunda, por forças militares de Esparta – e contaram com gente do entourage de Sócrates. Foi assim que na terceira tentativa de golpe, em 401, os atenienses, vacinados já contra os inimigos da liberdade, imediatamente mobilizaram todas as suas forças contra eles e mataram seus chefes, afastando o perigo de mais um período de brutalidade e terror.
As democracias atuais – os chamados Estados democráticos de direito – têm, por certo, outros dispositivos de defesa, mas ao deixarem seus golpistas, seus novos “Crítias” se aproveitarem da democracia, parasitá-la, para, enfim, aboli-la ou restringi-la, correm um sério risco. Pois que os autocratas e protoditadores de agora permanecem comportando-se basicamente como aqueles oligarcas golpistas de Atenas: beneficiam-se de liberdades que, uma vez no poder, negam a seus opositores.
Floresceu nos últimos tempos, no âmbito da chamada ciência política, uma estranha teoria das elites, segundo a qual a formulação de opiniões estaria ao alcance apenas de alguns (de uma elite). É bom analisar até que ponto tal teoria não está comprometida com os fundamentos autocráticos do pensamento platônico. Da crença platônica na superioridade da episteme (na verdade, uma ideologia) não se pode derivar que a doxa (a boa doxa? A orto-doxa?) seja privativa de uma elite, nem mesmo no sentido ampliado de “elite social”. Essa ideia é inaceitável do ponto de vista democrático, posto que a democracia se constitui propriamente como um esforço de estabelecer uma igualdade de condições de conceber e proferir opiniões no seio da comunidade política (a comunidade política já é a elite política; ou seja, geneticamente, para a democracia, não pode haver uma elite política superior, em algum sentido político, à comunidade política).
Platão, em “O Político”, usa um argumento desonesto para desqualificar a democracia ateniense, acusando-a falsamente de submeter à decisão coletiva, por meio do debate político, assuntos de natureza técnica (como a medicina ou a pilotagem naval, por exemplo). O argumento é desonesto porque ele sabia que os democratas gregos não procediam assim. Vale a pena ler a opinião de Castoriadis (1986), que analisou o texto de “O Político” em profundidade, sobre essa tentativa platônica de desqualificar a democracia como regime político baseado na opinião e não no saber científico-técnico:
“A maneira pela qual ele (Platão) descreve o regime democrático ateniense… é uma caricatura grotesca absolutamente inaceitável. Ele o apresenta como se fosse um regime que decide arbitrariamente sobre o que é bom ou mau na medicina, que designa por sorteio as pessoas que devem realizar as prescrições e depois lhes pede prestação de contas… Argumentação perfeitamente inadmissível e desonesta precisamente porque, em Atenas, aquilo sobre o que a cidade decide não são os problemas, as questões, os temas sobre os quais um saber técnico existe. A cidade decide sobre as leis em geral, ou decide sobre os atos do governo, mas não há leis referentes ao governo como atividade. Todo o paralelo feito por Platão com o governo de um navio ou com a atividade de um médico visa apresentar o dêmos ateniense decidindo em sua ignorância o que o capitão de um navio deve fazer impondo-lhe que siga as prescrições do dêmos a esse respeito. Ora, isso jamais ocorreu em Atenas, não há prescrições referentes ao governo como atividade. A atividade do dêmos se refere a pontos que não são técnicos. E o próprio Platão sabe disso muito bem por ter discutido isso no “Protágoras”, entre outros…” (4).
Platão não teve qualquer pejo de partir para a mais deslavada difamação da democracia, com base em uma falsa alegação. Alguma coisa muito importante devia estar em jogo, para levar o mais importante filósofo da Antiguidade a tal comportamento, reprovável segundo seus próprios valores.Talvez ele tenha sido o primeiro a perceber o perigo contido em um regime baseado na liberdade e na valorização da opinião, confirmando as hipóteses de que as raízes do nosso pensamento foram moldadas pela autocracia e de que, no campo das ideias, também se verifica a luta constante das vertentes autocráticas para fechar a brecha aberta com o advento da democracia.
Mas o processo de formação da vontade política coletiva (que constitui o core da política), quando democrático, leva em conta a interação de uma variedade de opiniões (tanto informadas quanto desinformadas pelo saber filosófico, científico ou técnico). A maravilha da democracia, aliás, reside nisso precisamente: em possibilitar a regulação sistêmica de uma complexidade de opiniões, de tal sorte que não se possa dizer, no final, de quem partiu a ideia resultante do processo. Ou seja, a política (a política propriamente dita, ex parte populis), tem sempre o desfecho aberto, é sempre imprevisível, não porque as elites mudem sempre de opinião e sim porque nunca se pode saber de antemão para qual direção apontará a resultante de miríades de inputs provenientes dos que não integram “as elites”. Vê-se que há aqui, e não por acaso, uma clara semelhança com os processos recentemente estudados de inteligência coletiva.
A questão de fundo colocada no parágrafo anterior é a seguinte: é impossível gerar ordem espontaneamente a partir da interação? Sempre é preciso alguém conduzir os outros a partir de capacidades exteriores àquelas que emergem da interação com os outros? Entre o sim e o não se separam os autocratas dos democratas. O processo espontâneo de surgimento de lideranças sugere a resposta não. Diante de uma questão posta para todos, sempre surge alguém – não necessariamente a mesma pessoa em todas as ocasiões – que consegue captar a confiança coletiva e propõe uma solução que todos acabam seguindo. Muito mais do que isso, todavia. Existem jogos, que podem ser aplicados cientificamente (com todo o rigor exigido pelo método experimental), que mostram que, em certas circunstâncias, não surge nem mesmo tal pessoa que lidera. O coletivo como um todo consegue se coordenar, por exemplo, para dirigir uma aeronave por meio de um programa computadorizado de simulação de voo, a partir de comandos remotos sobre as direções básicas – alto, baixo, esquerda, direita – que cada um maneja individualmente. Isso é o que chamamos de coordenação emergente. É ordem emergindo espontaneamente.
Essa é a aposta da democracia; uma aposta mesmo, pois não se pode provar que a resultante do entrechoque de múltiplas opiniões que refratam interesses distintos e, em muitos casos, contrários, existentes em uma sociedade onde se exercita um processo democrático de decisão, seja melhor, para o presente e para o futuro daquela sociedade, do que a decisão tomada por apenas algumas pessoas portadoras de conhecimentos acumulados sobre a matéria que está sendo objeto da decisão. A aposta de que os seres humanos podem se conduzir a partir das suas livres opiniões – que define a democracia política como liberdade de opinião contra a autocracia iluminada como ordem dos sábios, como toda autocracia o é em alguma medida – é uma aposta de que os seres humanos deixados a si mesmos saberão formar coletivos convivenciais estáveis, não tendo uns que assumir a tutela de outros, em nome de seu suposto saber e em virtude de seu efetivo poder, para regular heteronomamente os conflitos; ou seja, é uma aposta contra a inexorabilidade da (autocrática) solução hobbesiana.
Desvalorizar a liberdade de opinião, substituindo a imprevisibilidade da política pelo planejamento qualificado e informado dos portadores do saber, conduz à autocracia. Pois onde não existe lugar para o acaso também não há lugar para a liberdade. Se existe sempre um plano diretor regendo tudo, a liberdade não passa de uma liberdade de concordar – o que nega a ideia de liberdade.
(1) Cf. Dewey, John (1939). “Creative Democracy: the task before us” in The Essential Dewey: Vol. 1 – Pragmatism, Education, Democracy. Indianapolis: Indiana University Press, 1998.
(2) Cf. Stone, I, F. (1988). O julgamento de Sócrates. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
(3) Idem.
(4) Cf. Castoriadis, Cornelius (1986/1999). Sobre ‘O Político’ de Platão. São Paulo: Loyola, 2004.
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