Passamos muito tempo enganados, achando que estávamos vivendo em tempos de paz. Não estávamos. E não estamos. Desde que a polarização entre populismos se instalou estamos vivendo em tempos de guerra (ainda que a forma dessa guerra seja a política como continuação da guerra por outros meios).
Aliás, desde que um dos populismos do século 21 parasitou a nosssa democracia ele trouxe a guerra ao ensejar que outro populismo antagonista se erigisse e, então, uma polarização estiolante se instalasse. Como se sabe, os populismos do século 21, ao contrário dos populismos dos séculos passados, não são apenas comportamentos políticos caracterizados pela demagogia, pelo assistencialismo, pelo clientelismo e pela irresponsabilidade fiscal.
O populismo contemporâneo não é, principalmente, mais nada disso. É um modo de parasitar regimes eleitorais, degenerando a política como guerra (eleitoral), para consumir e dilapidar substância liberal. Seja para transformar as chamadas democracias eleitorais em autocracias eleitorais, seja para impedir que essas democracias eleitorais avancem no sentido de se transformar em democracias liberais. Na verdade, esses regimes em transição deveriam ser chamados de regimes eleitorais não-autoritários, de vez que não reunem todas as condições suficientes para ser plenamente caracterizados como democracias (como começamos a mostrar no artigo Democracia é democracia liberal) (1).
Sim, populismo é guerra (entendida não como destruição de inimigos e sim como construção e manutenção de inimigos = “nós” x “eles”): guerra fria eleitoral.
O centro da questão é que os populismos não são todos antidemocráticos da mesma maneira (o populismo-autoritário é, sem dúvida, mas o neopopulismo não, pelo menos não ostensivamente, posto que precisa de um regime eleitoral não-autoritário para sobreviver). O populismo-autoritário é um parasita que mata o hospedeiro. O neopopulismo é um parasita que convive com o hospedeiro, mas o paralisa (quer dizer, paralisa o processo de democratização). O que é realmente relevante para entender os populismos contemporâneos é que todos (digam-se de direita ou de esquerda) são i-liberais ou não-liberais.
O neopopulismo (o populismo dito de esquerda que floresceu na América Latina no dealbar do século 21) ainda que nem sempre tenha como objetivo ou consequência imediata matar o hospedeiro, pode acabar fazendo isso (como aconteceu na Venezuela e na Nicarágua). Em qualquer caso, ao se instalar acaba construindo – talvez por enantiodromia – um populismo oposto (como aconteceu no Brasil, em El Salvador e pode vir a acontecer na Argentina).
Pois bem. Estamos em guerra e é preciso entender todas as consequências dessa realidade.
Antes de qualquer coisa é preciso ter claro que não importa quem vença essa guerra. A guerra é a autocracia. Uma vez deflagrada a guerra, a democracia já perdeu (o que não significa, necessariamente, que desapareceu).
Substituir um populista-autoritário de extrema-direita por um neopopulista de esquerda (ou vice-versa) não é a solução porque não muda as estruturas sociais que permitem a expansão da infecção populista.
Os populismos são hoje, no Brasil e no mundo, os principais adversários da democracia. Para os populismos, como se sabe, há o verdadeiro povo e o falso povo. Verdadeiro povo são apenas os que apoiam o líder populista. Os que não apoiam, mesmo que perfaçam a maioria da população, são sempre o falso povo, os inimigos do povo, os agentes das elites: para a esquerda são os capitalistas (agora os fascistas) e para a extrema-direita são os comunistas (agora supostamente disfarçados de progressistas ou identitaristas).
Por exemplo, para os neopopulistas de esquerda, que continuam apoiando os ditadores cubanos (e os venezuelanos e os nicaraguenses), há uma conspiração imperialista operada por agentes da CIA contra o povo trabalhador. Para os populistas-autoritários de extrema-direita há uma conspiração globalista operada por agentes comunistas, a soldo de Soros, contra o “true people” de Bannon. Por que a narrativa é formalmente a mesma? Ora, porque são dois populismos.
A visão de que a sociedade está atravessada por uma única clivagem que opõe esse “povo” às “elites” (ou ao “sistema”), desabilita a política como modo não-guerreiro de regulação de conflitos. Tudo vira um enfrentamento entre contingentes que têm que ser dirigidos por condutores de rebanhos. Povo, aqui, não é um conceito sociológico, mas antipolítico. Sem o líder não há o (verdadeiro) povo.
Um líder que tenha capacidade de fazer isso (seja dito de direita ou de esquerda) é como um buraco negro no campo social. Suga todas as energias autônomas da sociedade, impedindo que alternativas democráticas floresçam. Força alinhamentos em vez de ensejar diversidade de conexões que abram novos caminhos (e redes são múltiplos caminhos: daí que matar a rede seja um traço totalitário persistente em todos autoritarismos).
Sim, a substituição de um populismo de direita (ou extrema-direita) por um populismo de esquerda (ou vice-versa) não resolve o problema. O perdedor da disputa terá motivos para continuar organizado e atuante visando a dar o troco na próxima eleição (e, o que é pior, em todo o tempo que antecede a próxima eleição). Isso significa dizer, literalmente, que a questão não será pacificada. Ou seja, que a guerra fria (e a política como continuação da guerra por outros meios) continuará.
Para pacificar a questão só a democracia ajuda. Não se trata apenas do respeito ao Estado de direito (não violar a Constituição e as leis) e sim de preservar as regras não escritas que evitam que a democracia se desconsolide. Por exemplo, não encorajar a polarização (“nós” contra “eles”), não transformar os adversários em inimigos (da pátria, do povo, da nação, do Estado, de Deus) e tratar as divergências por meio de um debate aberto e tolerante, valorizando a moderação e a busca do consenso. Isso é tudo o que não fazem os populismos, digam-se de direita ou de esquerda.
Todos os populismos (pelo menos os contemporâneos) são i-liberais, majoritaristas e antipluralistas. Em primeiro lugar não aceitam que seja normal que a sociedade esteja dividida entre muitas – e às vezes transversais – clivagens. Pelo contrário, como já foi dito acima, acham que a sociedade está dividida por uma única clivagem, separando a vasta maioria (o “povo”) do “establishment” (as elites).
Em segundo lugar, não aceitam que a melhor maneira de lidar com essas clivagens é por meio de um debate aberto e livre, sob uma cultura política que valoriza a moderação e busca o consenso. Pelo contrário, acham que a polarização (povo x elites) deve ser encorajada e que os representantes do povo (que são os atores legítimos ou mais legítimos) não devem fazer acordos (a não ser táticos) ou construir consensos (idem) com os representantes das elites (posto que estes são ilegítimos ou menos legítimos) e sim buscar suplantá-los, fazendo maioria em todo lugar (majoritarismo).
Em terceiro lugar, não aceitam bem que o Estado de direito e os direitos de minorias precisam ser respeitados. Pelo contrário, acham que as minorias políticas (antipopulares) não devem ser toleradas (e devem mesmo ser deslegitimadas) quando impedem a realização das políticas populares e que a legalidade institucional (erigida para servir às elites) não deve ser respeitada quando se contrapõe aos interesses do povo.
Esse debate democrático tem de ser feito na sociedade. Mais do que um debate, porém, tudo isso deve se desdobrar em formas ativas de resistência, abrindo zonas protegidas do vírus populista. Resistir a um populismo (seja qual for a sua coloração) significa resistir a todos os populismos. Significa resistir à guerra, mesmo que seja a guerra fria, mesmo que seja a política concebida e praticada como continuação da guerra por outros meios. Ou seja, não propriamente (e obviamente) destruição de inimigos, mas o contrário: construção e manutenção de inimigos (e aqui encontramos – mais uma vez – o velho “nós” contra “eles”).
Só a democracia – um modo pazeante de regulação de conflitos – pode nos salvar dos populismos que ora tomaram a cena pública como uma epidemia. Por isso que os populismos são guerreiros e é preciso pacificar.
Mas a guerra – entenda-se bem – não é o conjunto de conflitos violentos episódicos e sim o estado de guerra. É o estado de guerra que permite reconfigurar cosmos sociais segundo padrões hierárquicos de organização regidos por modos autocráticos de regulação de conflitos. Portanto, o problema é o estado de guerra.
O populismo dito de esquerda quando se prolonga no governo ou converte o regime em uma ditadura (como aconteceu com Venezuela e Nicarágua) ou cria um ambiente favorável a ascensão do populismo de direita ou extrema-direita.
De qualquer modo, o populismo de esquerda gera instabilidade política (Peru, Equador) e dilapida o capital social que permite a consolidação da democracia (México). Nenhum governo populista permite que um regime eleitoral vire uma democracia liberal ou plena.
Os populismos de esquerda e direita têm muito mais pontos em comum do que diferenças. Finchelstein (2020) sugere que ambos levam a resultados igualmente caóticos e são, apesar da retórica socialista da esquerda, igualmente reacionários (2).
Os que dizem, como nós, que os populismos (ditos de direita ou de esquerda) são os principais adversários da democracia liberal, não estão sozinhso. Krauze (2006) (3), Pappas (2016) (4), Naim (2017) (5), Mounk e Kyle (2018) (6) e Galston (2020) (7) – para citar apenas alguns analistas – acham mais ou menos a mesma coisa. Os intelectuais de academia, entretanto, formaram um consenso majoritário para dizer (ou fazer de conta) que o populismo de esquerda não existe. Só existe o populismo de extrema-direita e só ele representa uma ameaça à democracia. Eles tentam dizer que os populistas de esquerda são, na verdade, social-democratas e têm uma dificuldade tremenda de enquadrar nessa categoria líderes como Chávez, Lula, Evo, Correa, Funes, Zelaya, Cristina, Lugo ou Obrador – para não falar de Maduro e Ortega, que viraram ditadores. Então, vergonhosamente, decidem que esse é um não-assunto.
Dito tudo isso, permanece a questão principal: como os que prezam a democracia liberal devem se comportar diante dessa guerra.
Certamente não será entrando na guerra. Mas resistindo a ela por meio da política. Mas é preciso ter em mente que, em tempos de guerra, a política tem de ser feita de outros modos pois os campos sociais estão deformados (como já foi explicado no artigo Quinze declarações sobre a guerra) (8).
Eis um breve resumo dos principais constrangimentos à livre ação política democrática sob estado de guerra:
• Em estado de guerra não adianta apelar para noções de verdade e para qualquer sentido moral. Essas noções já estão desabilitadas. Toda guerra contra mentiras (fake news) reforça, como deveria ser óbvio, a guerra. Todo apelo ao que seria correto é inútil, posto que passam a existir duas morais: a nossa e a deles (o que leva ao amoralismo).
• Em estado de guerra as emoções predominantemente adversariais e o juízos baseados em contra-valores humanísticos configuram ambientes avessos à democratização das relações (a democracia como modo-de-vida) na medida em que a legitimidade do outro é negada e sua opinião é desvalorizada (a ponto de não se permitir sequer o seu proferimento – e isso é o que se chama atualmente de ‘cancelamento’). Um exemplo: para um bolsonarista-raiz, os comunistas (ou progressistas e identitaristas) e, para um militante lulopetista, os fascistas, não fazem parte do mesmo país (ou da mesma comunidade política) e devem, portanto, ser impedidos de coexistir por todos os meios eficazes (mesmo que sejam ilegítimos do ponto de vista da democracia).
• Em estado de guerra não adianta argumentar com base na história ou na ciência. A história já está mitificada e o saber (científico ou filosófico) sacerdotalizado. Assim, argumentos racionais que contrariam as narrativas influentes (e dominantes) em ambientes de produção e reprodução intelectual (como as universidades, as organizações não governamentais, os meios jornalísticos, as mídias sociais e os programas de mensagens, por exemplo, os grupos e as listas de transmissão de WhatsApp ou Telegram) não serão aceitos como válidos. Esses argumentos serão rejeitados liminarmente, antes mesmo da apreciação do seu conteúdo.
• Em estado de guerra os agentes políticos são obrigados a estar organicamente ligados a contingentes preparados para a guerra (tribos: a política como continuação da guerra por outros meios exige tribalização). Um agente político sem uma tribo (com engrenagens corporativas, sindicais, associativas, partidárias) que o defenda, mesmo tendo grande popularidade e considerável histórico de realizações e, consequentemente, amplo espaço nas mídias, ficará vulnerável aos ataques continuados de seus inimigos e poderá sucumbir (como aconteceu, por exemplo, com João Dória). A questão aqui é: como ter uma tribo (ou o equivalente a uma tribo) sem entrar na dinâmica da guerra (de tribos)?
Não há resposta pronta para esse que fazer. Sabemos que democratas defendem a democracia e que a democracia é um modo pazeante de regulação de conflitos, quer dizer, que democracia significa sem-guerra. Mas não sabemos tudo que isso significa em termos de comportamento político nas várias situações concretas em que um agente político é obrigado a se envolver.
Há uma pista, porém geral e de longo prazo. Como não há democracia sem democratas, é claro que a articulação e a animação de redes de conversação democrática, a configuração de novos ambientes de aprendizagem democrática e a decorrente multiplicação do número de agentes democráticos é a tarefa mais importante dos democratas. Isso permanece válido com guerra ou sem guerra. Em estado de guerra parece mais difícil. Mas talvez não seja, considerando que o genos da democracia é ser um processo de desconstituição de autocracia (e a autocracia é a guerra). Entretanto…
• Em estado de guerra o processo de multiplicação dos democratas terá uma dinâmica molecular. Não será mais possível promover mega eventos com o propósito de ‘evangelizar’ multidões de pessoas sobre o que é a democracia, como defendê-la, como reinventá-la. O campo social deformado pela polarização não permite a configuração de grandes ambientes favoráveis à aprendizagem da democracia. Agora é um a um (talvez, no fundo, tenha sido sempre assim). Os democratas (como agentes liberais-inovadores) devem continuar caminhando, mesmo na escuridão, configurando novos mundos glocais – em comunidades abertas de aprendizagem, de prática ou de projeto – nos quais seja possível manter conversações democráticas e atuar de acordo com elas, experimentando a democracia como modo-de-vida e usando suas pequenas luzes para usinar matrizes inéditas de interação com o mundo, preparando a abertura de novas janelas nas décadas de virão.
Notas
(1) Franco, Augusto (2023). Democracia é democracia liberal. Dagobah (01/09/2023). Linkado no texto.
(2) Cf. Smith, Richard Cândida (2020). Federico Finchelstein, Fascism, and Populism. Society for U.S. Intellectual History (24/05/2020). Disponível em https://dagobah.com.br/federico-finchelstein-fascism-and-populism/
(3) Krauze, Enrique (2006). Os dez mandamentos do populismo. O Estado de São Paulo (15/04/2006). Disponível em https://dagobah.com.br/a-praga-do-populismo/
(4) Pappas, Takis S. (2016). “Distinguishing Liberal Democracys Challengers”, Journal of Democracy, Volume 27, Número 4, Outubro de 2016.
(5) Naim, Moisés (2017). Manual do populismo. O Estado de São Paulo (06/02/2017). Disponível em https://dagobah.com.br/manual-do-populismo/
6) Mounk, Yascha & Kyle, Jordan (2018). The Populist Harm to Democracy: An Empirical Assessment. Tony Blair Institut for Global Change, 26th December 2018. Tradução em português disponível em https://dagobah.com.br/o-estrago-que-o-populismo-faz-na-democracia-uma-avaliacao-empirica/
(7) Galston, William A. (2020). “The Enduring Vulnerability of Liberal Democracy”, Journal of Democracy Volume 31, Number 3 July 2020 © 2020 National Endowment for Democracy and Johns Hopkins University Press. Tradução em português disponível em https://dagobah.com.br/a-persistente-vulnerabilidade-da-democracia-liberal/
(8) Franco, Augusto (2016). Quinze declarações sobre a guerra. Dagobah (10/06/2016). Linkado no texto.