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Meus artigos de maio de 2023 na Crusoé

Não somos governados por um democrata

Quando Lula legitima o regime ditatorial de Nicolás Maduro na Venezuela, ele não está “errando”: está sendo coerente com o que realmente pensa

Augusto de Franco, Crusoé (02/06/2023)

Lula é hiperminoritário no Parlamento. Seu partido, o PT, detém 13% da Câmara e conta com apoio leal de apenas 25% dos deputados (só 130 em 513).

Não podendo reeditar o mensalão do seu primeiro mandato, não sobra a Lula alternativa senão despejar mais dinheiro em emendas e distribuir mais cargos. Mas isso não garante a aprovação de medidas que contrariem a inclinação majoritária (como se viu na aprovação do marco temporal na Câmara na última terça-feira, 30 de maio).

Não tendo condições de mobilizar grandes massas nas ruas para pressionar os parlamentares, não lhe resta quase nada além de intensificar a atividade da imprensa chapa-branca.

A popularidade do governo Lula depende hoje dos grandes meios de comunicação simpáticos, de dois institutos de pesquisa e dos intelectuais que criam fake news (como a de que o PT e Lula são social-democratas ou de que a democracia corre grave risco se o governo não der certo).

Não tem como Lula governar com uma base parlamentar tão minoritária. Não tem. Só se manietar o Parlamento a partir de um Judiciário controlado, mas isso significaria abolir o regime democrático. Esse foi, aliás, o caminho de autocratização adotado na Venezuela.

Afinal, chegamos então na Venezuela. A fala de Lula na recepção irresponsável ao ditador Maduro (repetida no dia seguinte), foi indefensável até para os jornalistas amigos. Então o que eles fizeram? Contornaram o assunto falando que a Venezuela é importante na luta pela preservação da Amazônia e coisa e tal.

O curioso é que jornalistas de diferentes canais de TV apresentaram essa mesma justificativa, como se estivessem dublados. Sinal de que tem alguém, como diz Lula, elaborando as “narrativas” que devem ser divulgadas para mudar a opinião das pessoas. Esse alguém é o partido chamado PT, que, ao contrário do que pensam os tolos, existe e está atuante. A popularidade do governo Lula depende hoje dessa rede de contra-informação. Pode-se dizer que, afinal, aprenderam alguma coisa com Putin.

Ao legitimar o regime ditatorial da Venezuela (e defender o governo assassino de Nicolás Maduro) chamando-o de “democracia” porque promove eleições, Lula confrontou as nações democráticas e todas as sociedades que prezam os direitos humanos, abrindo uma disputa que não é capaz de ganhar. Por que ele fez isso? Várias hipóteses (não excludentes) podem ser levantadas:

1) Falta de consciência de si, arrogância e megalomania (ele “se acha” ou tem uma opinião muito favorável sobre si mesmo).

2) Já deu de barato que não conseguirá fazer um governo “extraordinário” para se notabilizar mundialmente (e ser canonizado como o salvador dos pobres) e aposta, então, em ser um dos grandes líderes desse delírio chamado Sul Global.

3) Está se lixando para as nações democráticas porque se alinhou ao eixo autocrático que reúne ditaduras e regimes eleitorais contraliberais parasitados por populismos (China, Rússia, Irã, Síria, Índia, Cuba, Venezuela, Nicarágua, Indonésia, Argentina, México, Bolívia, Hungria, Turquia etc.).

Mas, como? Aí nesse saco de gatos estão regimes ditos de esquerda e de direita (ou extrema direita). Pois é. Eventos recentes vêm desabilitando o esquema interpretativo esquerda x direita. A recente reeleição antidemocrática de Erdogan é o melhor exemplo de que não faz mais sentido tal divisão. Erdogan só venceu com o apoio econômico-financeiro das ditaduras de Putin, da Arábia Saudita e do Catar. E sua vitória foi comemorada pelas ditaduras da Venezuela, de Cuba, da Nicarágua e, no Brasil, por militantes do PT. Está na cara que a divisão que importa agora é entre autocracia (seja a dita de direita ou de esquerda) e democracia.

Maduro não é ditador da Venezuela porque é de esquerda ou comunista. Bukele não é protoditador de El Salvador porque é de direita ou capitalista. Ortega não é ditador da Nicarágua porque é de esquerda ou comunista. Erdogan não é ditador da Turquia porque é de direita ou capitalista. Todos esses são ditadores (autocratas eleitorais) porque não aceitam a democracia, são iliberais ou contraliberais. Porque — dizendo-se de esquerda ou de direita — são populistas.

Sim, existem populistas que viraram ditadores e existem populistas que (ainda) não viraram ditadores (ou talvez nunca virem). Todos, porém — dizendo-se de esquerda ou de direita —, amam de paixão eleições, mas odeiam a democracia liberal. No poder ou fora dele, na esquerda, por exemplo, Evo e Arce na Bolívia, Lula e Dilma no Brasil, Lugo no Paraguai, Fernández e Kirchner na Argentina, Funes e Cerén em El Salvador, Petro na Colômbia, Obrador no México. Na direita, Orbán na Hungria, Modi na Índia, Duterte nas Filipinas, Duda na Polônia, Salvini e Berlusconi na Itália e… Putin na Rússia.

Curioso que todos esses (ou quase) são favoráveis a Putin, não porque sejam de esquerda ou de direita, e sim porque não aceitam a democracia liberal.

Entretanto… Boric no Chile é de esquerda, mas não é populista. Lacalle Pou no Uruguai é de direita, mas não é populista. Rodrigo Chavez na Costa Rica é dito social-democrata progressista, mas não é populista. Nenhum deles tem problema com a democracia liberal. Como se sabe, Chile, Uruguai e Costa Rica são as três (únicas) democracias liberais da América Latina.

Segundo os principais institutos que monitoram a democracia no mundo, o Brasil é uma democracia. Para o V-Dem (da Universidade de Gotemburgo), não é uma democracia liberal, mas é uma democracia eleitoral. Para a The Economist Intelligence Unit, não é uma democracia plena, mas uma democracia defeituosa. Para a Freedom House, é um regime livre (e, portanto, uma democracia). Isso, entretanto, diz respeito ao regime político, não ao governante.

O regime brasileiro manteve o mesmo status democrático quando Bolsonaro estava no governo (embora ele, Bolsonaro, não seja um democrata e, como populista-autoritário que é, seja iliberal).

E agora, com Lula no governo, o Brasil continua sendo uma democracia (embora Lula não seja uma pessoa convertida à democracia e, como neopopulista ou populista de esquerda que é, seja contraliberal).

É justamente por isso que Lula elogia ditadores, ou seja, líderes populistas que não se dão bem com a democracia liberal. É a mesma razão pela qual Lula tem tanta dificuldade de apoiar a resistência ucraniana contra o ditador Putin. E é também por isso que Lula não se alinha à coalizão das democracias liberais articulada para resistir ao avanço do eixo autocrático. Pelo contrário, Lula continua achando que os principais inimigos do seu projeto são os EUA (uma democracia liberal) e a União Europeia (um conjunto de democracias liberais) —repetindo o discurso de Putin e Xi Jinping de que os americanos são imperialistas e os europeus, neocolonialistas.

Então, quando Lula legitima o regime ditatorial de Maduro, ele não está “errando”. Está sendo coerente com o que realmente pensa. Se Lula não tivesse sérios problemas com a democracia liberal, não se comportaria como vem se comportando.

Mas o fato, preocupante (e, poder-se-ia mesmo dizer, apavorante) é que não há mais como negar que não somos governados por um democrata.


O G7 que revelou Lula

As maiores nações democráticas do planeta já entenderam que o presidente se alinhou ao eixo autocrático

Augusto de Franco, Crusoé (25/05/2023)

Muito bom o discurso de Lula como convidado do G7. Vejam dois trechos:

A humanidade está passando por uma época de mudança revolucionária. A formação de um mundo mais justo e multipolar continua. O modelo desequilibrado de desenvolvimento mundial que, durante séculos, permitiu às potências coloniais desenvolver-se economicamente de forma mais acelerada à custa da apropriação dos recursos dos territórios e países dependentes na Ásia, África e no Hemisfério Ocidental, está a tornar-se coisa do passado e não voltará mais. A soberania e a competitividade das potências mundiais extra-ocidentais e dos líderes regionais está a reforçar-se. A reestruturação da economia mundial, a sua colocação numa nova base tecnológica (incluindo aplicação prática da inteligência artificial, das tecnologias de informação e comunicação mais avançadas, das tecnologias energéticas, biológicas e nanotecnologia), o crescimento da consciência nacional, a diversidade cultural e civilizacional e outros fatores objetivos aceleram o processo de redistribuição do potencial de desenvolvimento a favor de novos centros de crescimento econômico e influência geopolítica, contribuindo para a democratização das relações internacionais.

“No entanto, as mudanças em curso, que são, de modo geral, favoráveis, não são aceitas por alguns países que estão habituados a pensar em termos de domínio global e neocolonialismo. Eles não querem aceitar as realidades de um mundo multipolar e buscar acordo sobre os parâmetros e princípios da ordem mundial neste contexto. Estão a tentar conter o curso natural da história, eliminar concorrentes nas áreas político-militar e económica e suprimir a dissidência. Estão a utilizar uma vasta gama de instrumentos e métodos ilegais, entre os quais medidas coercivas (sanções) sem consultar o Conselho de Segurança da ONU, a provocação de golpes de Estado e de conflitos armados, ameaças, chantagem, manipulação da consciência de alguns grupos sociais e povos inteiros, operações ofensivas e subversivas no espaço de informação. A imposição de atitudes ideológicas neoliberais destrutivas… é um método correntemente utilizado para interferir nos assuntos internos dos países soberanos. Como consequência, a influência destrutiva estende-se a todas as esferas das relações internacionais“.

Gostaram?

Mas é falso. Trata-se de trechos do Decreto 229, assinado em 31/03/2023 por Vladimir Putin, estabelecendo as bases conceituais da nova orientação da política externa da Rússia.

Isso revela tudo, ou quase. Esse artigo poderia parar aqui. Mas tem mais.

No discurso que Celso Amorim provavelmente redigiu (e que ele realmente leu), Lula continua esgrimindo com o fantasma do neoliberalismo e do “Estado mínimo“. Continua afirmando que cabe ao Estado, exclusivamente ou quase, o papel de grande protagonista do desenvolvimento. Continua culpando a ordem democrática global pelos problemas dos países parasitados por populismos irresponsáveis (como a Argentina). Continua contemporizando com a agressão militar de Putin à Ucrânia ao não se colocar claramente em defesa das democracias e do direito internacional violados por uma ditadura expansionista e assassina. Como convidado para o segmento ampliado da Cúpula de Hiroshima, Lula desvalorizou o G7 propondo um G20 ampliado (com países do Sul Global – isso ele não disse, mas ficou subentendido) e defendeu a ideologia da multipolaridade proposta instrumentalmente por Rússia e China.

No domingo, 21de maio, após deixar a cúpula, mas ainda no Japão, Lula tuitou:

Se houvesse oposição democrática no Brasil, seria a hora de refutar amplamente essas infâmias presidenciais. Vejamos oito pontos básicos dessa refutação:

1 – É mentira que Zelensky não fale de paz. Ele está o tempo todo falando de paz, apresentou sua fórmula de paz, com o apoio da sociedade civil ucraniana e da imensa maioria das democracias liberais do planeta. Mas a Ucrânia é um país militarmente invadido por uma ditadura expansionista. Não pode haver paz enquanto continuar a invasão.

2 – Por que Lula nunca se alinha à coalizão das democracias para conter o avanço da ditadura russa? Não adianta reunir grandes autocracias, aliadas da Rússia, como China e Índia, para impor pela força, de fora para dentro, uma paz na Ucrânia. O plano apresentado pela China era favorável a Putin, pois não previa a retirada das tropas invasoras, congelando a situação de ocupação russa altamente desvantajosa para a Ucrânia. Se fosse aceito pelos ucranianos, o próximo passo seria a expansão russa em todas as direções e o fim da Ucrânia como nação.

3 – Ao contrário do que diz Lula, Zelensky não quer a guerra e não está convencido de que vai ganhar. A guerra só existe porque ele resiste à invasão russa. E não pode simplesmente dizer que vai perder. Se fizer isso, enfraquece a resistência ucraniana e a Ucrânia desaparece como nação.

4 – Zelensky não é responsável pela morte de pessoas, e sim Putin, que invadiu o país, está matando os seus habitantes civis e destruindo toda a infraestrutura do país. A Ucrânia está apenas se defendendo.

5 – Não adianta Lula dizer que condena a invasão se não exige a retirada das tropas invasoras.

6 – Não adianta Lula condenar a ocupação territorial da Ucrânia da boca para fora, sem aprovar as sanções impostas ao invasor. Se não sofrer sanções, Putin não vai parar. Para parar Putin as sanções têm que aumentar, não diminuir.

7 – A política (ou antipolítica) de Putin é a guerra. Apoiar a defesa da Ucrânia é a única maneira de se colocar contra a guerra (a guerra de Putin, que é a sua política, quer dizer, antipolítica). Falar em paz, mas não apoiar a defesa da Ucrânia — e ainda condenar os países que a apoiam, como se eles tivessem optado pela guerra — é, na verdade, objetivamente, apoiar a guerra.

8 – Não há qualquer equivalência entre Zelensky e Putin, como Lula insiste em mistificar. O primeiro é o agredido (mais fraco), o segundo o agressor (mais forte). Foi Putin que violou o direito internacional, não Zelensky. Foi Putin que dizimou cidades e populações, destruindo direitos humanos, não Zelensky.

Ser neutro em relação à violação do direito internacional e dos direitos humanos é ser contra o direito internacional e os direitos humanos. Não há neutralidade diante da invasão russa na Ucrânia. É como ser neutro em relação à agressão nazista — e felizmente o Brasil (conquanto no início relutantemente) no final não foi.

O fato é que Lula se revelou. As maiores nações democráticas do planeta já entenderam que o Brasil de Lula — ao contrário do que aconteceu em 1942 — se alinhou ao eixo autocrático.


Lula está acertando em tudo

O PT não vai abrir mão de seu projeto de se delongar no governo até controlar a sociedade a partir do Estado aparelhado pelo partido

Augusto de Franco, Crusoé (18/05/2023)

O fato de Bolsonaro ser inadmissível do ponto de vista da democracia não torna Lula automaticamente admissível. Ele teria de conquistar isso, o que não está fazendo. Para começar, Lula teria que tomar, pelo menos, três medidas básicas.

Em primeiro lugar descer do palanque, parar de investir na polarização e começar um esforço de pacificação do país. Não adianta vir com o papo-furado de um plano de paz para a Ucrânia (favorável à Rússia), se em vez de promover a paz no Brasil, joga mais lenha na fogueira da política como continuação da guerra por outros meios (a autocrática fórmule-inverse de Clausewitz-Lenin).

Em segundo lugar, honrar sua palavra de que iria governar numa coalizão de frente ampla. A frente ampla democrática serviu apenas para elegê-lo. Uma vez eleito, passou a governar com uma frente de esquerda hegemonizada pelo PT. Não adianta colocar no governo dois enfeites de “frente ampla” — como Alckmin e Simone Tebet — se os cargos-chave todos estão na mão do PT ou dos partidos satelizados pelo PT.

Isso implicaria uma reforma ministerial, substituindo parte dos petistas puro-sangue por atores de um amplo espectro democrático. Não tem sentido manter nas mãos do PT Fazenda, Casa Civil, Secretaria Geral da Presidência, Relações Exteriores, Relações Institucionais, Educação, Desenvolvimento Social, Comunicação Social, Desenvolvimento Agrário, Gestão, Mulher, Trabalho, Direitos Humanos, CGU, AGU, Petrobras, BNDES. Assim como não tem sentido manter Justiça, Igualdade Racial, Integração Regional e Previdência nas mãos de partidos satelitezados pelo PT.

Em terceiro lugar, abandonar velhas pautas petistas do início do século (na verdade, do século passado), resistindo à tentação de: manipular preços de combustíveis, sair construindo refinarias, investir no desenvolvimento da indústria naval nacional, editar uma política industrial a qualquer preço e reeditar iniciativas de promover “campeões nacionais“, dar subsídios a indústrias poluentes (como a automotiva), multiplicar programas de crédito subsidiado para furar a regulação monetária do Banco Central, atentar contra a autonomia do Banco Central e das agências reguladoras e tentar reverter leis não estatistas aprovadas pelo Congresso, remover ou esticar qualquer limite para a gastança fiscalmente irresponsável, reestatizar o que foi privatizado, tentar estabelecer algum tipo de controle governamental sobre as mídias tradicionais ou sociais, financiar ditaduras amigas e socorrer regimes parasitados pelo populismo de esquerda, se aliar a autocracias (como China, Rússia e Índia) contra a coalizão das democracias liberais. Em vez disso, Lula e o PT deveriam ter corrigido sua proposta de arcabouço fiscal para que ele servisse como um efetivo sistema de controle de gastos, promover a reforma tributária e outras reformas importantes, como a reforma política.

Claro que Lula e o PT jamais farão isso. Partidos populistas de esquerda, como o PT, usam as eleições não como dispositivos normais do metabolismo democrático e sim como instrumentos para chegar ao governo e nele se manter por tempo suficiente para tomar o poder. Enquanto continuarem pensando (e agindo) assim, não serão atores admissíveis do ponto de vista da democracia liberal. Sempre é bom lembrar que a democracia liberal é medida por uma visão negativa do poder político: não propriamente a capacidade do governo de se impor à sociedade, mas a capacidade da sociedade de controlar o governo.

A maioria das análises sobre o governo Lula erram, entretanto, por desconhecer o que é uma organização política com as características do PT. Sugere-se uma releitura atenta da terceira parte de Origens do Totalitarismo de Hannah Arendt (1951), sobretudo das passagens em que ela fala da força de uma “organização viva” (ou, como disse Lula recentemente sobre o PT: do “único partido com cabeça, tronco e membros“).

Um trecho, em especial, deve ser lido e relido:

“As organizações de vanguarda cercam os membros dos movimentos com uma parede protetora que os separa do mundo exterior normal; ao mesmo tempo, constituem a ponte que os leva de volta à normalidade e sem a qual os membros, na fase anterior à tomada do poder, sentiriam com demasiada clareza as diferenças entre as suas crenças e as das pessoas normais, entre a mentirosa ficção do seu mundo e a realidade do mundo normal. A engenhosidade desse expediente, durante a luta do movimento pelo poder, é que a organização de vanguarda não apenas isola os membros, mas lhes empresta uma aparência de normalidade externa que amortece o impacto da verdadeira realidade de maneira mais eficaz que a simples doutrinação.”

Organizações desse tipo criam uma espécie de réplica do mundo, perfeitamente lógica, mas de uma lógica distinta daquela que orienta o pensamento das pessoas que não veem a realidade refratada pela organização. É por isso que o PT está achando que temos uma situação revolucionária no Brasil. Mesmo na ausência de condições objetivas, avalia que bastam as condições subjetivas (configuradas pela volta do PT ao governo) para avançar em seu projeto de controle sobre a sociedade.

E é por isso que o PT não vai abrir mão de seu projeto de se delongar no governo até conseguir controlar a sociedade a partir do Estado aparelhado pelo partido. Ele sabe que não há mais condições objetivas para alcançar tal objetivo. Mas já definiu como imperativo não sair do governo. Para seus partidários é um tudo ou nada. Vamos ver o que acontecerá.

Enquanto isso, porém, o colunismo político continua achando que Lula está cometendo erros porque está mal assessorado ou influenciado por uma suposta “esquerda do PT”. Dois erros conjugados. O primeiro é que Lula não está errando em nada. Como mostrei em artigo nesta Crusoé, intitulado “Lula não está cometendo nenhum erro”, ele está acertando em tudo, de acordo com sua concepção, que é a concepção do PT. O segundo erro é que a esquerda do PT é o PT. É a presidente do partido. É a tendência majoritária do PT, não um grupo marginal minoritário. E é, fundamentalmente, o presidente de honra eterno (e dono) da organização.

Lula está acertando em tudo. É justamente por isso que ele não é admissível do ponto de vista da democracia liberal.


Como o petismo contribuiu para o surgimento do bolsonarismo

Irritação com o patrulhamento, com a incapacidade de reconhecer os próprios erros e com a condenação moral que o PT promove dos seus críticos deu força à antítese do partido

Augusto de Franco, Crusoé (11/05/2023)

As pessoas ainda não entenderam bem o que foi o surgimento do bolsonarismo. Tem todas as características de uma revolução social, embora uma revolução para trás, reacionária. Não foi um movimento conservador e sim retrógrado.

Mas talvez tenha sido a transformação mais ampla e mais rápida de nossa história de uma população politicamente passiva (PPP) em população politicamente ativa (PPA). Ao converter uma quantidade enorme de eleitores e espectadores (PPP) em agentes políticos (PPA), o bolsonarismo produziu uma mudança profunda no país.

Desgraçadamente, a ativação desses novos atores (sem qualquer mediação e educação políticas) trouxe consigo a lama que estava decantada no fundo do poço da cultura patriarcal. Preconceitos e conceitos, que estavam presentes no subsolo das consciências — e que se esperava já sepultados pela vida cívica e pela convivência democrática modernas — também foram revivescidos.

Aí apareceram, não se sabe de onde, legiões de zumbis atacando os direitos humanos, defendendo o armamentismo popular, elogiando a ditadura militar e a tortura, pregando o extermínio de adversários (comunistas ou globalistas), reforçando antigas discriminações (de gênero, raça, etnia ou cor, credo, nacionalidade, condição física ou psíquica etc.) e levantando as bandeiras de Deus (e da religião), da família tradicional (monogâmica) e da pátria (nacionalista).

Essas pessoas não foram bem convertidas intelectualmente e sim capturadas emocionalmente a partir do seu ressentimento por não serem levadas em conta para nada e por não serem reconhecidas pelo sistema político como sujeitos válidos. Entraram no movimento para “dar o troco” àqueles que sempre as desprezaram. Vingança e revanche, ódio, cólera e intolerância, alimentaram esse emocional guerreiro que se instalou.

E vieram então com suas opiniões retrógradas — que antes só eram admitidas ou toleradas em ambientes privados, nas conversas com amigos e colegas de trabalho, nas mesas de jantar de suas casas, nos botecos e nas filas de ônibus, nas cadeiras de barbeiro e nos salões de beleza e de bilhar — poluir o espaço público. Em outras palavras, tomaram a coragem de proferir tais opiniões cruas no espaço público, desafiando os constrangimentos impostos pela cultura cívica da modernidade.

Vieram sem qualquer educação política, achando que a política é uma espécie de religião ou de torcida organizada de clube, em que o principal é desqualificar e retirar a legitimidade do outro (o inimigo) para exterminá-lo.

Por isso, o bolsonarismo, antes de ser uma ameaça política, foi uma ameaça social, quer dizer, à vida humana em sociedade, à aceitação do outro como um legítimo outro na convivência, à convivência amistosa e prazerosa com o diferente, à colaboração e, sobretudo, aos valores e às normas liberais do modo de vida democrático.

Mas tão extensa e profunda foi essa revolta dos desprezados (majoritariamente das camadas médias da sociedade) que pode-se dizer que a ascensão do bolsonarismo teve as características de uma revolução social molecular, uma alteração nos fluxos interativos da convivência social, ainda quando não tenha se concretizado como uma revolução política (na medida em que não conseguiu mudar o regime político).

Esse fenômeno da ascensão do populismo-autoritário (ou nacional-populismo), dito de extrema direita, aconteceu no mundo inteiro e não apenas no Brasil.

No Brasil, porém, a ascensão da extrema direita populista teve causas particulares. O bolsonarismo nasceu — juntamente com uma insatisfação com o sistema — do antipetismo, depois cavalgado pela extrema direita. Há ainda muito antipetismo (e ele é maior do que o bolsonarismo-raiz). Mas só há antipetismo porque houve (e há) petismo. É o óbvio, que entretanto precisa ser repetido. Pois bem. O que é o petismo? E por que uma extensa parcela que se tornou politicamente ativa da população rejeitou esse tipo de comportamento político chamado de petismo?

Podemos listar oito fatores “alergênicos” que explicam por que o petismo irritou as pessoas a ponto de deixá-las vulneráveis ao bolsonarismo: o espírito militante patrulhador e a intolerância (com quem pensa diferente); a condenação moral de quem não segue o partido; a incapacidade de reconhecer os próprios erros; o hegemonismo; o tratamento instrumental dos aliados; a contradição evidente de se dizer democrata, mas apoiar ditaduras (ditaduras amigas, de esquerda – mas não só); o caráter iliberal (ou não liberal) do projeto petista; e, resumindo tudo, a estratégia do neopopulismo lulopetista, que visa mudar homeopaticamente o genoma do regime democrático, prevendo estabelecer uma hegemonia sobre a sociedade a partir do Estado controlado pelo partido com o fito de nunca mais sair do governo (ou nele se delongar indefinidamente).

Bem… tudo isso irritou, contrariou e deixou ressentidas as pessoas que engrossaram o antipetismo. Ou seja, o antipetismo não caiu da árvore dos acontecimentos, nem veio de Marte ou de Vênus. Ele tem uma fonte inequívoca: o petismo! Irritadas, parte dessas pessoas aderiu a qualquer alternativa capaz de evitar a continuidade do petismo ou o seu retorno ao centro do palco. Como, num primeiro momento, não havia alternativa democrática, permaneceram contrariadas, algumas até negando a política. E, em alguma medida, ressentidas. Infelizmente, a alternativa antipetista que surgiu foi o lavajatismo seguido do bolsonarismo (é simbólico que a famosa República de Curitiba tenha virado, sem a menor cerimônia, comitê eleitoral de Bolsonaro). As pessoas ficaram então vulneráveis às alternativas antidemocráticas. Vulneráveis, elas se deixaram capturar.


A regulamentação fake das mídias sociais

Se as plataformas prestam serviços públicos, isso significa que a regulação precisa ser pública. Mas isso não é sinônimo de estatal e, muito menos, de governamental

Augusto de Franco, Crusoé (04/05/2023)

Quais os problemas de uma regulamentação das mídias sociais para evitar fake news? Seria preciso saber três coisas básicas para entrar nesse debate. Sem elas, corremos o risco de ter uma regulamentação fake.

A primeira coisa a saber é que mídias sociais não são redes sociais, como se diz no Brasil. Redes sociais não são sites, aplicativos, tecnologias. E sim pessoas interagindo por qualquer meio. Redes são padrões de organização (convencionalmente com topologia mais distribuída do que centralizada), não ferramentas. A mídia utilizada pelo network da Filadélfia, que redigiu a várias mãos a Declaração de Independência dos Estados Unidos (1776), foi a carta escrita em papel e entregue pelo correio americano (a cavalo). Foi uma verdadeira rede social, sem Facebook, Instagram ou Twitter.

O problema das mídias sociais com algoritmos caixa preta é que elas não são boas tecnologias de netweaving e não são vulneráveis à autorregulação que é própria das redes sociais. Ou seja, podem falsificar a dinâmica emergente da rede ou impedir a manifestação da fenomenologia da interação que promove essa autorregulação. Assim, os proprietários privados das mídias sociais podem, centralizadamente, decidir o que um interagente vai ver, qual será o alcance do que for emitido por ele etc. Com isso não há aglomeramento (clustering) emergente, ideias não podem enxamear (swarming) e ser imitadas (cloning) de modo mais distribuído do que centralizado e os graus de separação não podem ser contraídos ou amassados (crunching) diminuindo o tamanho social do mundo e aumentando a sua capacidade de encorajamento (empowerment) dos agentes do sistema. Além disso, não se formam mais, espontaneamente, múltiplos laços de retroalimentação de reforço (e de looping de recursão), que permitem que uma pequena perturbação, mesmo que parta da periferia do sistema, mude o comportamento dos agentes do sistema como um todo.

Por enquanto, não há solução para isso. Mídias sociais vulneráveis às dinâmicas próprias de redes sociais ainda não apareceram; ou, se apareceram, não conseguiram conectar um número significativo de interagentes.

A segunda coisa a saber é que não são os conteúdos que desorganizam o debate público e sim a dinâmica instalada de – como dizia Steve Bannon –  “flood the zone with shit” (inundar a área com merda). Foi assim que a desinformação ou a informação fraudulenta (fake news) perturbou o debate público como modo de inviabilizar o processo de formação da opinião pública. E a democracia não tem proteção eficaz contra isso, quer dizer, contra a falsificação da opinião pública a partir da manipulação das mídias sociais, que desabilita qualquer razão comunicativa, destruindo o espaço discursivo de interações de opiniões. Essa é a quarta falha genética da democracia. As outras três, contra as quais a democracia também não tem proteção eficaz, são o discurso inverídico (do velho demagogo, que já pontificava na Atenas do século 5 e na república romana), o uso da democracia (notadamente das eleições) contra a própria democracia (como fazem os populismos contemporâneos) e a destruição das normas não escritas que estão abaixo do sistema legal-institucional e o sustentam (que é hoje a principal via de erosão democrática, muitas vezes sem violar abertamente as leis).

Não adianta tirar um conteúdo falso do ar. Em seguida aparecerá outro e depois outro e mais outro, não dando tempo para qualquer curadoria feita pela imprensa profissional ou pelas agências de checagem.

Ademais, ataques de enxame (swarm attacks, contra os quais não se conhece defesa) para inviabilizar a emergência de uma opinião pública, substituindo-a pela soma de opiniões privadas, estilhaçam a esfera pública em miríades de esferas privadas, destruindo o processo de formação e de verificação da vontade política coletiva. Embora o problema seja recente, notadamente depois que mídias sociais e programas de mensagens apareceram e foram colonizados por facções populistas, já há vasta literatura sobre o fenômeno, mas não solução. Hoje esse é o problema mais importante que a democracia enfrenta e que pode inviabilizá-la como modo prevalente de regulação de conflitos.

Há um relativo consenso de que a formação democrática da vontade política tem como fonte originária: (a) a liberdade individual de opinar protegida da interferência do Estado (segundo a visão clássica do liberalismo moderno); (b) o reino público constituído pela argumentação discursiva (segundo as visões do republicanismo político de Arendt e do procedimentalismo democrático de Habermas). Todavia, uma terceira fonte, embora já aventada no final da primeira metade do século passado, mas nunca suficientemente explorada, também merece ser considerada: (c) a convergência comunal de desejos pessoais para contender com um problema ou realizar um projeto (segundo a visão de democracia cooperativa do filósofo americano John Dewey).

Com a manipulação das mídias sociais para falsificar o processo de formação da opinião pública – que literalmente estilhaçou o espaço público em miríades de esferas privadas, opacas à interação horizontal –, com as fake news (expressão que – nunca é demais lembrar – deve ser traduzida por “notícias fraudulentas”) e a chamada pós-verdade (desabilitando o papel formador da opinião pública da interação de opiniões sobre os mesmos fatos, na medida em que inventa novos fatos), a democracia dependerá, cada vez mais, de uma transição de (a) e (b) para (c). Mas ainda estamos longe de poder adotar amplamente tal solução, que exige nada menos que uma nova reinvenção da democracia. E talvez ela nunca possa ser adotada a não ser glocalmente.

Não há mais liberdade individual de opinar protegida da interferência do Estado. Pelo contrário, o Estado (democrático de direito) está sendo chamado a interferir mais, pois a liberdade individual de opinar virou, em grande medida, atentado à democracia, com a deslegitimação das instituições, a pregação da intolerância, a difusão do ódio e a disseminação calculada de mentiras e a defesa aberta de regimes autocráticos e comportamentos autoritários e, não raro, ilegais. Isso é contraditório pois a liberdade vem sendo tomada – sobretudo pelo populismo-autoritário – como a liberdade de acabar com a liberdade.

Ademais, o reino público ficou muito reduzido e vem sendo substituído pelo surgimento caótico de miríades de reinos privados tribais (na medida em que o broadcasting privado se tornou viável com o abuso das mídias sociais). Estamos correndo o sério risco de que quase ninguém mais preste atenção à argumentação discursiva; ou seja, de que não seja mais o debate, a interação e a polinização mútua de opiniões, que forme uma opinião pública e sim a replicação de versões urdidas para impedir que as opiniões sejam modificadas pela interação.

A terceira coisa a saber é que a opinião que vira incitação concreta ao crime não é feita principalmente nas mídias sociais e sim em outros tipos de programas privados de mensagens e em foruns fechados de debates (como os subforuns de 8chan, subreddits etc). Além disso, trocas de mensagens privadas entre cidadãos terão sempre sigilo garantido constitucionalmente (a menos que não se queira mais viver numa democracia). E a turma que trama ações criminosas na deep web não usa nem os nossos navegadores usuais.

Deve haver regulação das mídias sociais. Se elas prestam serviços públicos, isso significa que a regulação precisa ser pública. Mas público não é sinônimo de estatal e, muito menos, de governamental. Devemos encontrar soluções democráticas para o problema, que exigem conversação democrática ampla. Aprovar uma regulamentação fake, a toque de caixa, passando o rolo compressor, não trará bons resultados. No final do dia teremos menos-democracia e não mais-democracia.

No caso do PL das Fake News, em discussão no Congresso Nacional, há várias inconsistências que podem ser evidenciadas por meio de quatro perguntas simples:

1 – Representantes eleitos podem cometer fake news à vontade? E, por exemplo – como sugeriu Mario Vitor Rodrigues no Twitter – se Bolsonaro, estando no governo, ao sugerir que vacinas contra Covid desenvolvem Aids no paciente, comete uma fake news, por que Lula dizer que Dilma sofreu um golpe de Estado, também não comete?

2 – Quem será o órgão regulador? A Anatel? Mas o Conselho Diretor da Anatel é nomeado pelo presidente da República. Se for outro coletivo, como ele será composto (por nomeação governamental, eleição, sorteio)? E quais serão suas prerrogativas e atribuições (será um órgão autônomo, com mandato definido, poderá tomar decisões punitivas bypassando o poder judiciário)?

3 – E se algum conjunto organizado de militantes resolver denunciar postagens de seus inimigos políticos, isso será encarado como vigilância cidadã válida?

4 – A arregimentação para ações antidemocráticas não é feita principalmente nas mídias sociais e sim nos programas de mensagens e outros fóruns, usando outras mídias e tecnologias às quais o público não tem acesso. Como vigiar e punir isso sem atropelar direitos políticos e liberdades civis?

Quase nenhuma dessas perguntas, entretanto, entra nos problemas de fundo de qualquer regulamentação. Do ponto de vista do que se expõe neste artigo é uma regulamentação fake, porque diz que vai regulamentar, mas na verdade não vai. Não, a União Europeia não resolveu o problema: embora tenha dado um primeiro passo, não entrou ainda no cerne da questão (o que pode acontecer – torçamos – nas próximas décadas).

Se quisermos uma solução simples e errada do ponto de vista da democracia, talvez o caminho seja criar uma nova estatal para prover mídias sociais e programas de mensagem (tipo os Correios substituindo o Uber). Assim, imitando a China – como muitos governistas sonham –, teremos todo o controle sobre conteúdos que nos desagradam.

Por que as democracias da América Latina estão estagnadas

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