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Sócrates contra a democracia – O Julgamento de Sócrates de I. F. Stone – 4

Continuamos a transcrever o excelente livro de I. F. Stone (1988), O Julgamento de Sócrates, tradução brasileira de Paulo Henriques Britto, do original em inglês The Trial of Socrates, publicada pela Editora Schwarcz (São Paulo: Companhia das Letras, 2005).

Já foram publicados:

1) O Prefácio, o Prelúdio e os três primeiros capítulos da Primeira parte: 1 – As divergências básicas; 2 – Sócrates e Homero; 3 – Uma pista no episódio de Tersites

2) O quarto capítulo: A natureza da virtude e do conhecimento

3) O quinto capítulo: A coragem como virtude

Segue abaixo o sexto capítulo da Primeira parte.

6. UMA BUSCA INÚTIL: SÓCRATES E AS DEFINIÇÕES ABSOLUTAS

PARA SÓCRATES, quando não se podia definir uma coisa de modo absolutamente abrangente e invariável, então não se sabia o que essa coisa era. Tudo que não fosse uma definição absoluta era poreje considerada doxa, ou simples opinião, em oposição ao verdadeiro conhecimento, por ele denominado episteme. Esse último termo é com frequência traduzido como “ciência ou conhecimento científico . Mas essa tradução é enganosa. A episteme socrática não é a ciência que conhecemos, nem a que Aristóteles estabeleceu — a paciente observação e compilação de dados específicos, juntamente com a organização desses dados de modo a formar sistemas gerais de conhecimento. Para Sócrates, era apenas definição, a definição absoluta.

Aristóteles reconhecia que Sócrates inaugurara a questão da definição; considerava que fora essa a maior contribuição de Sócrates à filosofia. Na Metafísica, Aristóteles afirma que “Sócrates, deixando de lado o universo físico e restringindo seu estudo às coisas morais, nesse âmbito buscou o universal e pela primeira vez aplicou o pensamento às definições” (1).

Essa ênfase nas definições, porém, por vezes levava Sócrates ao contrassenso, e com frequência fazia-o chegar a afirmações absurdas. As definições são importantes para livrar a argumentação das ambiguidades, para deixar claro qual a questão que está sendo discutida, de modo que se evite a situação em que quase sempre se cai, na qual cada um está, na verdade, falando de coisas diferentes. A ênfase na definição também foi importante para o desenvolvimento da lógica, pois boa parte da lógica consiste em inferências feitas a partir de definições gerais.

No contexto do desenvolvimento da filosofia grega, a busca socrática da definição absoluta e imutável pode também ser encarada como uma reação à visão de mundo defendida pelo grande filósofo pré-socrático Heráclito, cujo tema era a mudança perpétua e inexorável. Heráclito observou que todas as coisas mudam e que — como ele disse — é impossível entrar duas vezes no mesmo rio.

Trata-se de uma observação profunda, que constituiu uma contribuição importante à filosofia. Mas, assim como outras grandes verdades, ela podia ser utilizada de modo a se tirarem conclusões exageradas. Heráclito era um místico e gostava de afirmar a identidade dos opostos. O caminho para cima e o caminho para baixo, disse ele uma vez, são o mesmo. No entanto, ele não levou em conta essa doutrina ao afirmar a ideia da perpétua mudança. De acordo com sua doutrina da identidade dos opostos, ela é ao mesmo tempo verdadeira e falsa. Tudo muda, num certo sentido, mas em outro muitas vezes permanece o mesmo.

Vivemos em meio a mistérios. Um deles é o mistério da mudança. O outro é o da identidade. Ambos são realidades, porém realidades inseparáveis. Os rios constantemente mudam e nunca são exatamente os mesmos. A água que neles passa está sempre fluindo e mudando. As margens e os leitos estão constantemente mudando, sob o impacto das enchentes e secas. Trata-se de fatos observáveis e inegáveis. Mas num outro sentido apesar dessas mudanças — os rios possuem uma identidade duradoura e inconfundível. O Amazonas, o Mississipi, o Danúbio e o Ganges existem há milênios, mais ou menos no mesmo lugar, seguindo mais ou menos o mesmo curso, e permanecem claramente reconhecíveis, apesar das mudanças constantes.

Analogamente, a criança e o homem são diferentes, mas há traços específicos que persistem e são reconhecíveis. Todo ser humano está constantemente mudando, perdendo células velhas e ganhando novas, constantemente crescendo e envelhecendo. Às vezes é difícil identificar um velho amigo, porém decerto ele ainda possui traços reconhecíveis, os quais percebemos ao examiná-lo mais detidamente. A mudança é uma constante, mas a identidade também é. A verdade integral só pode ser apreendida quando ambas são levadas em conta. É essa a inspiração bá sica da dialética hegeliana, que buscava reconciliar os opostos numa síntese mais elevada. Essa ideia também se manifesta no que o filósofo Morris R. Cohen, do City College de Nova York, denominava “princípio de polaridade”. Ignorar um dos pólos de um problema implica não captar a realidade integral.

Para Sócrates e para Platão, a busca de definições tornou-se a busca de uma “realidade” imutável, invariável, eterna e absoluta, por trás, acima e além desse universo heraclitiano de fluxo constante e contradições inextricáveis. A história dessa busca é a história da filosofia em ponto pequeno. Vemos-nos voltar, como se presos num labirinto metafísico, em cada século sucessivo, ainda que numa espiral de sofisticação e complexidade crescentes, ao mesmo punhado de soluções básicas desenvolvidas pelos filósofos da Grécia antiga.

A busca socrática de definições veio desempenhar um papel central nessa discussão incessante. Mas levou seus discípulos a seguir em duas direções radicalmente opostas. Uma delas foi adotada por Platão, a outra por Antístenes. Ambos partiram da constatação de que seu mestre jamais conseguira chegar às definições que buscava, como ele próprio admitia. Encontraram, porém, soluções fundamentalmente diferentes para saírem desse dilema. Essas direções opostas vêm caracterizando a filosofia desde então.

Uma das direções leva a um ceticismo completo, à negação da possibilidade do conhecimento. A outra — a de Platão — leva à criação de outro mundo, muito acima deste nosso, um mundo de “ideias” eternas e imutáveis, que é então tomado como o mundo real. Esse mundo real de Platão era repleto de objetos irreais, dotados, portanto, de uma natureza eterna e imutável muito tranquilizadora. Platão buscou refugio nesse paraíso metafísico.

Platão representa a quintessência do conservadorismo. Mais do que qualquer outra coisa, ele temia a mudança, e sua filosofia tentou encontrar um modo de fugir a ela. No decorrer dessa busca, ele construiu uma maravilhosa estrutura de pensamento, que é um prazer explorar. Mas essa estrutura está também cheia de jogos de palavras, contradições, incursões na teologia, êxtases místicos e encantadores absurdos, como as gárgulas que nos fitam dos cantos escuros de uma imensa catedral medieval.

Talvez o primeiro a atacar a teoria das Ideias ou Formas, que é o centro do pensamento de Platão, tenha sido o sofista Antifonte. As Formas platônicas são, naturalmente, personificações de conceitos universais, em oposição aos objetos específicos que os representam. Através de sua teoria das Formas, Platão foi o primeiro a chamar a atenção para a questão dos “universais”, para usar o termo empregado posteriormente. Mas Platão levou sua ideia às últimas consequencias, chegando às raias do absurdo, pois afirmava — como observou Aristóteles — que os objetos específicos só existem por “participação” em relação às Formas ou às Ideias (2). Apenas as Ideias eram, para Platão, “reais”. Os objetos específicos não passavam de reflexos mutáveis e evanescentes delas.

Para colocar essa ideia em termos concretos: a cama em que se dorme é “irreal”. A Ideia da cama, que existe eternamente em algum empíreo longínquo, é a verdadeira realidade. Antifonte deu uma vez uma boa resposta a essa argumentação. Num fragmento de uma obra perdida, Sobre a verdade, ele observa que, se enterramos uma cama de madeira na terra e a deixamos apodrecer, dali brotará algum dia não uma cama, mas uma árvore. Em outras palavras, o material de que é feita a cama é anterior à forma ou à ideia. A madeira se regeneraria. Mas teria que surgir um novo artesão em uma nova geração de seres humanos para que essa madeira fosse transformada em uma nova cama. Dentro dessa perspectiva, o conceito universal, a Ideia da cama, vive apenas enquanto sombra metafísica do particular. Assim, Antifonte, com essa observação materialista de senso comum, vira de cabeça para baixo o universo platônico — ou melhor, vira-o de cabeça para cima. Foi a esse fascinante atoleiro metafísico que Sócrates levou os discípulos com sua busca de definições absolutas.

Sócrates levou a busca das definições ao absurdo. Há trechos dos diálogos platônicos que parecem ter sido extraídos de alguma comédia perdida de Aristófanes. Um deles encontra-se no Teeteto; nele, Sócrates, examinando o problema do conheci-mento, discorre sobre o trabalho do sapateiro. Outro encontra-se no Fedro: nele, em meio a uma busca semelhante, Sócrates trata do comércio de cavalos.

Em ambos os diálogos, Sócrates dá início à argumentação com a afirmação óbvia de que não se pode fazer um sapato sem saber o que é um sapato, ou de que não se pode comerciar ca-valos sem saber o que é um cavalo. Mas para saber o que é um sapato ou um cavalo, para poder fazer um sapato ou comerciar um cavalo, será mesmo necessário, segundo os padrões inatingíveis da lógica socrática, formular uma definição absoluta e perfeita de “sapato” ou “cavalo”? E necessário que o sapateiro ou o comerciante de cavalos sejam doutores em metafísica? Sócrates exige não apenas definições perfeitas de “cavalo” e “sapato” mas também — o que é mais difícil ainda — uma definição perfeita de conhecimento. Assim Sócrates coloca a questão para Teeteto, talvez o mais aparvalhado de todos os interlocutores submissos de Sócrates que há no cânon platônico:

SÓCRATES: Então ele [o sapateiro] não entende do conhecimento de cavalos se não conhece o conhecimento.

TEETETO: Não.

SÓCRATES: Então aquele que ignora o conhecimento não entende da arte do sapateiro nem de qualquer outra.

TEETETO: É verdade (3).

Qualquer ateniense esperto poderia ter levantado uma objeção óbvia a essa tolice estratosférica: um sapateiro não precisa ser filósofo, e um filósofo não é necessariamente um bom sapateiro. Na verdade, o freguês que levava um pedaço de couro ao sapateiro não estava interessado — como diria um filósofo — em universais, mas em particulares. Ele queria um par de sapatos que se adequasse a seus pés em particular, e não uma definição metafisicamente perfeita de “sapato”. Para ele, como para nós, o pé direito não era igual ao esquerdo. Assim, nem mesmo dois sapatos de um mesmo par seriam idênticos, por mais perfeita que fosse a definição de “sapato”. E o freguês queria que seu par de sapatos fosse feito de modo a aproveitar ao máximo o pedaço de couro específico que ele havia escolhido. Mais uma vez, o “particular” era mais importante do que o “universal”. Sob mu aspecto fundamental, o sapateiro leva vantagem em relação ao filósofo. O sapateiro sabe fazer um sapato. Mas o filósofo continua não sabendo formular uma definição absolutamente perfeita, nem de “sapato” nem de “conhecimento”. Levando-se em conta seus ofícios respectivos, o sapateiro é nitidamente melhor artesão do que o metafísico. O mesmo se aplica à discussão a respeito do comércio de cavalos. No Fedro, Sócrates comenta que absurdo seria “se eu o instigasse a comprar um cavalo para lutar contra os invasores, e nem eu nem você soubéssemos o que é um cavalo […]” (4). Quem ouvisse essa conversa pelo meio poderia perfeitamente interrompê-la nesse ponto para dizer que, se nem Sócrates nem Fedro sabiam o que era um cavalo, então seu Q.I. era claramente baixo demais para que eles tivessem qualquer serventia no exército.

Como no caso da arte do sapateiro, a arte de comerciar cavalos está nos particulares e não nos universais. A primeira coisa que um vendedor de cavalos perguntaria ao freguês seria que tipo de cavalo ele quer. Para a guerra? Para corridas? Para trabalho pesado na fazenda? Ou um vistoso cavalo para puxar a carruagem num passeio? Por sua vez, o comprador astuto examinaria com cuidado os dentes do cavalo, suas patas, seus cascos, antes de fechar o negócio. Estaria pressuposto que o freguês não era um idiota capaz de tomar uma zebra ou um burro por cavalo. A partir dessa posição de senso comum, as profundezas da metafísica parecem baboseiras colossais. Todo mundo sabe o que é um cavalo — isto é, todo mundo, menos o filósofo.

No entanto, esse tipo de analogia falsa e confusão semântica era empregado por Sócrates e seus discípulos para ridicularizar a democracia. Essas analogias tinham implicações antipolíticas. Se mesmo profissões humildes como a arte do sapateiro e a do comerciante de cavalos não podiam ser desempenhadas corretamente sem definições inatingíveis, como se podia querer que homens comuns praticassem a arte muito mais complexa de governar cidades?

Cada discípulo de Sócrates extraiu conclusões diferentes, e diferentes sistemas filosóficos, das ambiguidades do mestre. Mas todos, sem exceção, tiraram conclusões contrárias à democracia. Se fossem levados a sério, eles teriam posto fim à vida da cidade.

O mais velho discípulo de Sócrates, Antístenes, foi o primeiro dos cínicos. Ele rejeitava a sociedade humana e suas convenções. A busca socrática das definições perfeitas levou Antístenes ao ceticismo. Ele talvez tenha sido o primeiro defensor da posição que recebeu, na Idade Média, o rótulo de nominalismo — a ideia de que os conceitos universais, enquanto definições ou categorias gerais, não passam de nomes, produtos da mente, e não realidades. Mas em termos políticos Antístenes estava totalmente de acordo com Sócrates: a democracia só lhes inspirava desdém. Em sua obra Vidas dos filósofos, Diógenes Laércio afirma que Antístenes “costumava recomendar aos atenienses que decidissem por voto que os burros são cavalos” (5). Essa sátira à ideia de governar uma cidade por meio do voto majoritário era, pelo visto, um lugar-comum entre os socráticos. Uma variante dela aparece no Fedro, de Platão. O próprio Sócrates faz uma piada sobre o tema. O trecho que transcrevemos acima, a respeito da impossibilidade de se comprar um cavalo sem se saber o que é um cavalo, tem prosseguimento com a seguinte observação irônica: “Contudo, eu só sabia a seu respeito que Fedro julga que o cavalo é um dos animais domésticos que tem as orelhas mais compridas”. Fedro — que não é tão bobo assim — interrompe Sócrates e diz: “Isto seria ridículo, Sócrates”. Mas Sócrates ainda não terminou seu gracejo. Prossegue ele, tão cínico quanto Antístenes:

SÓCRATES: […] mas se eu tentasse persuadi-lo com toda a seriedade, compondo um discurso em louvor ao asno, que eu denominaria cavalo, dizendo que esse animal era da maior utilidade, quer no lar, quer na guerra, que era possível usá-lo como montaria em batalha, e que ele era capaz de carregar bagagens e servia sob mil outros aspectos…

FEDRO: Isso seria mais ridículo ainda.

Sem dúvida. Um burro não é um cavalo. Mas é difícil imaginar um camponês estúpido a ponto de tomar um burro por cavalo, por mais eloquente que seja o vendedor, ainda que o próprio Sócrates fosse o vendedor. Mas Sócrates utiliza essa analogia simplista para atacar a assembleia ateniense e seus oradores:

SÓCRATES: Então, quando o orador que não sabe o que são o bem e o mal resolve persuadir um Estado igualmente ignorante, não louvando uma “sombra de burro” chamando- a cavalo, mas louvando o mal chamando-o bem, e, tendo examinado as opiniões da multidão, persuadindo-a a fazer o mal ao invés do bem, que colheita imagina que sua oratória obterá doravante das sementes que ele plantou?

FEDRO: Uma colheita não muito boa (6).

Correto, mais uma vez. Mas a assembleia e a “multidão” — palavra com conotações pejorativas nos diálogos de Platão — devem levar em conta muitas questões que pouco têm a ver com problemas simples de bem e mal: questões prosaicas a respeito da administração da cidade e por vezes questões cruciais em que mesmo os filósofos — ou, talvez, especialmente os filósofos — leriam dificuldade em distinguir o claramente bom do claramente mau. De fato, por vezes mesmo os teólogos discordam a respeito da vontade de Deus. A minoria, tal como a maioria, muitas vezes tropeça na penumbra das complexidades da vida. As questões humanas não podem encontrar mestres perfeitos, nem esperar por soluções perfeitas.

Essas homilias socráticas, que parecem tão profundas aos desavisados e acríticos, descambam com facilidade para o ridículo. Sua intenção é ridicularizar a democracia, mas muitas vezes são Sócrates e Platão que se tornam ridículos. Isso lembra uma reflexão sarcástica do filósofo inglês Hobbes, no Leviatã. Em sua nobre linguagem seiscentista, Hobbes afirma que “o privilégio do absurdo” é algo a que “ser vivo algum, senão o homem, está sujeito”, e acrescenta, irônico: “E, dentre os homens, os que mais a ele estão sujeitos são os que professam a filosofia ’. Hobbes comenta que “nada há de tão absurdo que não se possa encontrar nos livros de filosofia” (7). E na página seguinte Hobbes critica aqueles que afirmam que “a natureza de uma coisa é sua definição”. Isso cai como uma luva em Sócrates. Entre os exemplos de absurdos filosóficos por ele apresentados, Hobbes inclui a ideia “de que há coisas universais”. O alvo aqui é claramente a posição dos platônicos, que não apenas transformavam em “coisas” os conceitos universais, as Ideias ou Formas, como também afirmavam que tais coisas não eram meras ficções úteis criadas para fins de análise e classificação, e sim as únicas coisas verdadeiramente “reais”. Assim, os platônicos, em suas sublimes meditações celestiais, viraram de cabeça para baixo o sentido comum das palavras que manipulavam e fizeram uso disso para combater a democracia.

A teoria das Formas de Platão foi desenvolvida a partir da busca socrática de definições absolutas. Mas o próprio Sócrates segundo Aristóteles — “não separava os universais dos particulares” e “tinha razão em não separá-los” (8).

Não obstante, foi Sócrates quem deu início à busca metafísica que Platão levou mais adiante. As Formas foram por ele colocadas como substitutas das definições que Sócrates jamais encontrou.

A longevidade, complexidade e insolubilidade essencial da tarefa inaugurada por Sócrates podem ser compreendidas se examinarmos por um momento o verbete “definição” da Encyclopaedia of philosophy.

Esse texto demonstra que, após mais de dois milênios de intensas disputas e análises recônditas, os filósofos ainda não conseguiram entrar em acordo a respeito do que seja uma definição, muito menos determinar se alguma definição perfeita pode ser formulada. Essa súmula magistral é o antídoto perfeito para aquele “efeito entorpecente” do qual o pobre Mênon se queixa após enfrentar a dialética negativa de Sócrates — a facilidade com que ele demole as definições propostas por todos, sem jamais propor nenhuma. O verbete assinala que “problemas de definição surgem constantemente nas discussões filosóficas”, mas “não há problemas de conhecimento mais longe de uma solução do que os de definição”. Assim, 2 mil anos depois, nossos “sofistas” modernos ainda ficam tão desconcertados com essas questões de definição quanto ficavam os personagens dos diálogos de Platão.

O problema não é apenas o fato de que todas as coisas estão constantemente mudando, tornando impossível uma definição absoluta, mas também o de que — como todo juiz sabe as circunstâncias podem não apenas modificar a situação como também questionar a aplicabilidade de princípios que normalmente parecem inabaláveis.

É o que se dá em relação ao tema favorito de Sócrates — a definição de virtude. Sócrates certamente concordaria que dizer a verdade é inquestionavelmente fundamental para a virtude: o mentiroso não é virtuoso. Mas será que isso se dá em todos os casos? Será que as circunstâncias jamais alteram nem mesmo essa proposição básica? Imaginemos que temos um amigo morrendo num hospital e que ele não sabe por que sua querida esposa não veio vê-lo em seus momentos finais. O que será um ato virtuoso, dizer ao pobre coitado a verdade — que ela fugiu com o belo chofer do casal — ou tranquilizar suas últimas horas de vida com uma ficção sedativa? Trata-se de um caso extremo, mas os casos extremos — como Sócrates sabia muito bem — destroem as definições perfeitas. Nosso exemplo mostra de que modo até as noções mais fundamentais de virtude e justiça podem depender de casos específicos; não dos universais que Sócrates buscava, mas das circunstâncias particulares.

O fato de que todas as leis e proposições gerais têm exceções não anula o valor das leis e das generalizações como guias para o comportamento dos homens, do mesmo modo como a doutrina do homicídio justificável não anula a validade da lei contra o assassinato. Mas implica que, nas escolhas mais difíceis que na vida real todos os homens, juízes ou não, são obrigados a fazer, a verdadeira virtude, humanidade e bondade podem exigir que certas regras gerais sejam violadas, às vezes num grau considerável. As abstrações em si, por mais antigas e veneráveis que sejam, às vezes revelam-se insuficientes. Decidir se o caso que se vive no momento é um desses por vezes é doloroso e arriscado. Há que preservar a lei, porém a justiça deve ser feita. E as duas coisas nem sempre coincidem. O velho dilema da tragédia grega e da filosofia socrático-platónica permanece, e sempre haverá de permanecer.

Em apenas um momento, em todos os diálogos, Platão abandona o “idealismo” — a primazia da abstração e a tirania do absoluto — e reconhece a existência desse dilema básico. Mas, de modo característico, abandona uma forma de absolutismo e propõe outra. Isso ocorre no Político. Platão argumenta, nesse diálogo, que o Estado ideal é aquele que é governado por um monarca absoluto — absoluto no sentido de que seu poder não deve ser cerceado nem mesmo pela lei.

No Político, Platão apresenta um argumento completamente contrário ao idealismo que costuma defender. Ao fazê-lo, porém, revela uma compreensão aguçada e sofisticada da jurisprudência. Sintomaticamente, coloca essas palavras não na boca de Sócrates, mas na de um “Estrangeiro”; o argumento ficaria demasiadamente incongruente se partisse de Sócrates. O Estrangeiro afirma que não se pode chegar a decisões justas partindo de definições abstratas a respeito do que é ariston (o melhor) ou dikoitaton (o mais justo); que no Estado ideal deve atribuir-se o poder absoluto não às leis, mas ao rei. Isso porque, explica ele, a lei jamais poderia determinar “o que é mais nobre e mais justo para um e para todos”, por causa das “diferenças entre os homens e as ações” e do fato de que nada “na vida humana jamais permanece o mesmo”. Por conseguinte, não há como “promulgar uma regra simples aplicável a todas as coisas para todas as ocasiões”.

O Estrangeiro afirma que aquilo que é “persistentemente simples”, ou seja, a lei, “é inaplicável a coisas que nunca são simples”, ou seja, a vida e os conflitos humanos. Nem os costumes nem a lei, seja ela escrita, seja consuetudinária, são inteiramente adequados. Como o juiz Oliver W. Holmes disse certa vez, com uma concisão olímpica, “considerações gerais não decidem casos concretos”. Esse é o argumento clássico em favor de se suplementará a lei com aquilo que, em diversos códigos legais, é denominado “equidade”.

Para resolver o problema das inevitáveis limitações da lei, a solução não é, conforme Platão afirma, concentrar todo o poder arbitrariamente na mão de um único homem. De fato, o próprio diálogo de Platão culmina numa metáfora vívida que pode ser usada como argumento contra a tese que ele está defendendo. Nesse caso, a argumentação de Platão é demolida pela sua própria genialidade como escritor.

O Estrangeiro fecha sua argumentação a favor da monarquia absoluta comparando a lei a “um homem teimoso e ignorante que não permitisse a ninguém fazer nada contra suas ordens, nem mesmo fazer uma pergunta, nem quando algo de novo sucede a alguém, que seja melhor que a regra por ele próprio formulada (9). Tanto na Antiguidade quanto no mundo moderno, é exatamente assim que os reis — e seus equivalentes modernos, os ditadores das mais variadas espécies — costumam atuar. A lei, com todas as suas limitações, revela-se um senhor mais sábio e mais flexível.

Estamos agora capacitados para compreender a missão divina que Sócrates afirmava ter recebido do oráculo de Delfos e entender como essa missão divina terminou colocando-o em apuros. Há duas versões do episódio ocorrido em Delfos, uma em Xenofonte, outra em Platão. Aquela é simples e direta, porém tão arrogante que chega a ser constrangedora; esta é sutil e cativante. Mas as duas têm um elemento essencial em comum: em ambas Sócrates afirma ser o mais sábio dos homens.

A versão mais antiga, e menos elaborada, é a que encontra-os na Apologia de Xenofonte. A. Apologia de Platão, ao que tudo indica, é um relato de memória, um tanto enfeitado, redigido muitos anos depois do ocorrido. O relato de Xenofonte, que é bem menos conhecido, não é nenhuma obra-prima. Trata-se de um texto curto e seco, como um memorando rascunhado às pressas, um apelo dirigido à opinião pública de sua época. Assim, é possível que ele seja mais fiel aos fatos históricos. Segundo Xenofonte, Sócrates disse aos juízes que, quando seu discípulo Querefonte “interrogava a meu respeito o oráculo de Delfos, respondeu Apolo que não havia homem mais livre, mais justo ‘ nem mais sensato que eu”.

Sócrates começa dizendo aos juízes que, quando o lendário legislador espartano Licurgo entrou no oráculo sagrado, a voz profética disse não saber se deveria chamá-lo “homem ou deus”. Sócrates reconhece, modesto, que Apolo “não me comparou a um deus, porém acrescenta que ele “disse que eu em muito sobrepujava os outros homens” (10).

A versão apresentada por Platão desse episódio é menos arrogante. A primeira diferença entre os dois relatos está na pergunta dirigida ao oráculo. Em Xenofonte, Sócrates diz apenas que Querefonte “interrogava” o oráculo “a meu respeito”. A resposta, como já vimos, foi a de que Sócrates “em muito sobrepujava os outros homens”.

Mas na Apologia de Platão Sócrates afirma que a pergunta feita ao oráculo era enigmática, e que a resposta por ele dada foi também enigmática; ou, ao menos, Sócrates preferiu encará-la dessa forma. A pergunta foi “se havia alguém mais sábio que eu”; a resposta foi “que não havia ninguém mais sábio” (11). A versão de Platão é mais graciosa e espirituosa, ou irônica, que a de Xenofonte; mas em termos de substância as duas são iguais. Em Platão, Sócrates relata o episódio com modéstia, como se para desarmar os juízes. Pede-lhes Sócrates: “Não tumultuem usando o mesmo verbo, thorubeo, que aparece no relato de Xenofonte — “se eu lhes der a impressão de me gabar” (o que é exatamente o que ele faz). Sócrates chega a se desculpar por tal pergunta ter sido feita ao oráculo, pondo a culpa em Querefonte, o discípulo que ousou fazê-la. Afirma aos juízes: Os senhores sabem que tipo de homem era Querefonte, quão impetuoso em todos os seus empreendimentos”. Assim, a acusação de jactância e transferida a Querefonte.

Em Xenofonte, a coisa se dá de modo bem diferente. Após o “tumulto” de protesto dos juízes, Sócrates defende o pronunciamento do oráculo a seu respeito. Diz aos juízes que não acreditem no oráculo, “nem mesmo quanto a isso, sem as devidas razões”, porém os convida a “pesar bem o pronunciamento do deus”. Pergunta Sócrates:

Conhecem homem menos escravo dos apetites do corpo que eu? Mais livre que eu, que não aceito de ninguém presentes nem salário? Quem poderão, em boa-fé, considerar mais justo […] e uma pessoa razoável não me chamaria sábio? […] E a prova de que meu labor não foi estéril, não a veem no fato de que muitos de meus concidadãos que amam a virtude, bem como muitos estrangeiros, dão preferência a mim acima de todos os outros homens? (12)

Mas, em Platão, Sócrates encara o elogio que lhe faz o deus como um chiste divino. Diz ele aos juízes: “Pois, quando soube disso, pus-me a refletir. ‘Que há de querer dizer o deus com isso? Que enigma propõe ele? Pois não me julgo nem muito nem pouco sábio; que quererá ele dizer, então, afirmando que sou o mais sábio?’” (13). Aqui Platão acrescenta o detalhe final, e a principal diferença entre seu relato e o de Xenofonte: o tema da missão divina, que não aparece no texto xenofôntico. O Sócrates platônico afirma que o deus não poderia estar mentindo, já que é um deus. Assim, a missão de Sócrates passa a ser a de questionar seus concidadãos para ver se havia entre estes alguém mais sábio que ele. E foi por isso, diz Sócrates aos juízes, que ele se meteu em apuros e tornou-se impopular. Pois constatou que, se não sabia nada, todos os outros que questionava sabiam ainda menos nem sequer tinham consciência de sua própria ignorância! Assim, apesar de todos os elaborados argumentos em contrário, o Sócrates platônico, como o xenofôntico, realmente se julgava superior aos outros homens.

Há, nas entrelinhas do texto mais elegante de Platão, não apenas uma arrogância palpável, como também um toque de crueldade para com seus interlocutores. O que havia de mais humilhante e irritante — no método socrático de interrogação era o fato de que, ao mesmo tempo que era demonstrada a realidade da ignorância dos outros, estes eram levados a pensar que a suposta ignorância de Sócrates era puro fingimento e ostentação. Trata-se da famosa ironia ’ socrática. A palavra grega eironeia, da qual deriva a palavra “ironia”, significava “fingimento”, “dissimulação , o ato de dizer aquilo que não se quer dizer literalmente. Seus interlocutores sentiam que, por trás da “ironia”, da máscara de falsa modéstia, Sócrates na verdade estava rindo deles (14). E essa a crueldade que se esconde nas entrelinhas do relato platônico, com todo o seu fino humor aristocrático; e o efeito dessa politesse é torná-la ainda mais terrível.

Por que motivo na Apologia de Platão Sócrates relata a história do oráculo de Delfos? E por que Sócrates afirma que o oráculo lhe impôs uma missão divina — a missão de questionar seus concidadãos, especialmente os notáveis de Atenas, a fim de descobrir o que o oráculo queria dizer ao afirmar que não havia ninguém mais sábio do que ele?

Sócrates diz aos juízes que havia se tornado suspeito na cidade. Seus concidadãos lhe perguntavam: “Sócrates, o que há com você? De onde provêm os preconceitos contra você? […] Diga-nos o que há, para que não ajamos de modo precipitado a seu respeito” (15). Sócrates explica que adquiriu má reputação apenas por causa de uma espécie de sabedoria, embora nem ele mesmo compreenda inteiramente que sabedoria é essa. Nesse momento, para explicar-se, ele relata o episódio do oráculo de Delfos.

Nesse ponto coloca-se uma questão que não é nem levantada nem respondida na Apologia de Platão. Por que motivo uma reputação de sábio causaria problemas a alguém numa cidade como Atenas, à qual acorriam filósofos de toda a Grécia, onde eram não apenas bem recebidos como também sobejamente recompensados como professores e palestradores? Atenas era a cidade mais aberta da Antiguidade, talvez de toda a história; Péricles a chamava “a escola da Hélade”; os lugares públicos da cidade, tal como aparecem nas páginas de Platão, serviam de cenário para infindáveis discussões filosóficas.

A resposta, aparentemente, é que Sócrates usava sua espécie de “sabedoria” — sua sophia, sua arte de lógico e filósofo — para um fim político específico: o de fazer com que todos os notáveis da cidade parecessem tolos e ignorantes. A missão divina que, segundo ele, o oráculo lhe impôs seria, então, o que hoje denominamos de ego-trip — uma autoglorificação para Sócrates que implicava o aviltamento dos mais respeitados líderes da cidade. Desse modo Sócrates abalava a polis, difamava os homens dos quais ela dependia e alienava os jovens.

É precisamente isso que nos diz o relato de Platão. O Sócrates platônico explica — tal como é bem provável ele de fato ter feito durante o julgamento — que sua investigação inspirada pelo oráculo levou-o a interrogar as três principais classes de cidadãos atenienses. De início, examinou os politikoi, os estadistas, os homens que ocupavam os cargos mais elevados da cidade e que, como oradores, desempenhavam um papel de liderança na assembleia. Em seguida, examinou os poetas, inclusive — como ele mesmo afirma — os poetas trágicos, cujas obras que chegaram até nós ainda são incluídas entre as principais realizações literárias da humanidade. Por fim, examinou os artesãos de Atenas. A beleza e a qualidade de seus produtos garantiam-lhes a preferência em todo o mundo mediterrâneo, permitindo que a Ática alimentasse uma população bem maior do que sua pouca terra poderia sustentar. Foram também esses artesãos que construíram o Partenon. Sócrates constatou que todos eram ignorantes e deficientes.

Na Apologia de Platão, Sócrates reconhece que “além” da hostilidade causada por suas interrogações,

os moços que dispõem de mais tempo, os filhos das famílias mais ricas, que me acompanham espontaneamente, sentem prazer em ouvir o exame dos homens, e muitas vezes se põem a imitar-me, metendo-se a interrogar os outros; e então, creio eu, descobrem muita gente que julga saber algo, mas sabe pouco, ou mesmo nada.

Pouco ou nada a respeito do quê? Que espécie de perguntas esses jovens imitadores de Sócrates apresentavam aos notáveis de Atenas para fazer com que eles parecessem saber “pouco, ou mesmo nada”? Sócrates não informa isso aos juízes. E prossegue, afirmando: “Em consequência, os que são por eles examinados se exasperam contra mim, em vez de contra si mesmos, e afirmam que ‘Sócrates é uma pessoa odiável, que está corrompendo a mocidade’” (16).

E de fato, num certo sentido, era isso mesmo o que ele estava fazendo. Sócrates havia ensinado àqueles jovens inexperientes, meros iniciantes em sabedoria imberbe, uma maneira fácil de ridicularizar os notáveis da cidade, seus líderes, bem como poetas e artesãos, e também, naturalmente, a multidão, a maioria ignorante, que votava em assembleia para decidir as questões públicas.

E como agiam esses jovens? Utilizando aquela dialética negativa que, conforme já vimos, era o forte de Sócrates. Ele pedia definições que ele mesmo jamais seria capaz de formular, e em seguida refutava com facilidade qualquer definição que seus interlocutores propusessem. E não raro isso era conseguido por meio de artifícios verbais muito semelhantes aos que ele atribuía aos sofistas — os jogos de palavras que até hoje denominamos “sofismas”. Sua “sabedoria” — bem como a missão divina que lhe teria sido atribuída pelo oráculo — causou-lhe problemas porque era uma maneira fácil de fazer com que a jeunesse dorée da cidade se voltasse contra a democracia. O mais brilhante desses jovens foi Platão, e é esse o testemunho de seus diálogos.

Mesmo nos melhores momentos, a dialética negativa de Sócrates era um padrão irrelevante para julgar a competência de estadistas, poetas trágicos ou sapateiros em suas respectivas artes. Acima de tudo, não era uma maneira adequada de contestar o direito dos homens comuns de participar do governo da cidade em que viviam e de controlar suas próprias vidas.

Sócrates queria que fossem aprovados em provas de metafísica, que se distinguissem como lógicos. Tachava-os de ignorantes porque não conseguiam resolver os problemas mais difíceis da filosofia — o epistemológico e o ontológico, para usar os termos modernos que designam a questão da natureza do conhecimento e da natureza do ser. O próprio Sócrates não sabia como resolvê-los, e o mesmo se pode dizer dos filósofos modernos. Os próprios termos são monstruosidades metafísicas, dilemas aterradores. Se mesmo Kant, que apresentou as respostas mais sistemáticas de toda a história da metafísica, não conseguiu satisfazer plenamente os outros filósofos, como podia Sócrates ridicularizar seus contemporâneos e concidadãos, tachando-os de ignorantes, por não poderem resolver esses mesmos problemas?

Há um diálogo, o Górgias, em que o Sócrates platônico tira a máscara de falsa modéstia — a pretensão de só saber que nada sabe. Nesse diálogo, ele trata com desdém os quatro maiores líderes atenienses de sua geração e da anterior. Afirma que ele mesmo é um dos poucos, “senão o único”, verdadeiros estadistas que Atenas jamais gerou. Essa tirada arrogante — se é verdade que Sócrates falava assim em certas ocasiões — bastaria para conquistar-lhe a antipatia de praticamente todos os políticos atenienses, salvo uns poucos inimigos empedernidos de qualquer forma de autogoverno, democrático ou oligárquico. Com uma única exceção, os quatro estadistas denegridos por Sócrates no Górgias eram de origem aristocrática; os ricos e bem-nascidos continuavam a ocupar os cargos mais elevados em Atenas, muito depois da conquista do sufrágio universal para os homens livres e da abolição do requisito de propriedade para a candidatura a cargos públicos. A única exceção era Temístocles, homem de origem pobre e humilde. Dois dos quatro líderes atacados por Sócrates no Górgias Temístocles e Péricles — eram ídolos dos polloi, as massas. Mas os outros dois — Milcíades e seu filho, Címon — eram ídolos dos oligoi, “os poucos”, as “classes melhores”, os ricos, especialmente aqueles cuja riqueza era herdada, a “nobreza”. Esses dois eram líderes do que denominaríamos hoje “partido conservador , o qual preferia que houvesse alguma exigência de propriedade para se exercer o direito de votar e de ocupar cargo público. Mas ambos os líderes conservadores eram leais à cidade e serviam Atenas tanto em tempo de paz quanto na guerra.

Os quatro representavam muita coisa para o orgulho ateniense. Milcíades e Temístocles estavam associados às duas mais famosas batalhas das guerras médicas — Maratona e Salamina. Milcíades era o comandante da tropa que, apesar de estar em desvantagem numérica, fez recuar os exércitos de Dario em Maratona, em 490 a.C., quando os invasores já se aproximavam dos portões de Atenas. Dez anos depois, quando os persas tentaram de novo e chegaram muito perto da vitória, semeando a destruição pela Ática, tornando necessária a evacuação de Atenas, capturando a Acrópole e incendiando os edifícios sagrados, foi Temístocles quem salvou Atenas, derrotando a poderosa frota persa de Xerxes na batalha de Salamina, em 480 a.C. Dez anos depois, foi o filho de Milcíades, Címon, que pôs fim às esperanças dos persas definitivamente, esmagando outra frota persa e estabelecendo as bases do império ateniense. Péricles, o último dos quatro, assumiu a liderança da cidade dez anos depois, levando-a a seu período áureo. Esses quatro grandes líderes — bem como as qualidades do povo ateniense — tornaram possível tudo aquilo que simboliza, para nós, as glórias de Atenas: o Partenon, cujas ruínas serenas ainda nos despertam a admiração, a grande experiência ateniense de democracia e liberdade de pensamento, os abrangentes debates filosóficos, tudo que fez de Atenas não apenas “a escola da Hélade” mas também a escola de toda a humanidade. São essas as realizações que o Sócrates platônico põe de lado com uma arrogância irritadiça e rabugenta no Górgias, ao comparar os quatro a pasteleiros e tachando-os de meros “bajuladores” da multidão ignorante.

O ataque aos quatro líderes chega a um clímax ridículo quando Sócrates acusa Péricles, o maior deles, de ter tornado os atenienses “indolentes, covardes, tagarelas e avarentos” (17). Sócrates, o ateniense mais tagarela de sua época, que descuidava dos negócios de sua família e de sua cidade para se dedicar à conversação constante, o homem que fez da conversação sua vida e sua realização, acusa Péricles de ter tornado os atenienses tagarelas? Sócrates bebeu a taça de cicuta com serenidade heroica e exemplar. Mas teria ele reagido com serenidade se os atenienses de repente perdessem o interesse pela conversação e se esquivassem de seus fascinantes questionamentos?

É bem verdade que não sabemos se o Sócrates histórico fez realmente tal ataque aos quatro estadistas. O Górgias foi escrito muito depois de sua morte, quando Platão voltou do exílio voluntário e fundou sua academia. Mas o ataque aos quatro não é incoerente confiar outras informações de que dispomos a respeito de Sócrates, particularmente a passagem de Xenofonte acerca do comportamento de Sócrates diante dos juízes. Nos diálogos platônicos, a elevada imagem que Sócrates faz de si mesmo é normalmente disfarçada pela “ironia”. No entanto, sua opinião negativa a respeito dos estadistas atenienses é evidente na Apologia e lembra a advertência feita a ele no Mênon, de Platão.

Nesse diálogo, Sócrates encontra-se com Ânito, mestre curtidor e líder político de classe média. O tema em discussão — para variar é a virtude: se ela pode ser ensinada e como pode ser ensinada. Ânito afirma que os jovens aprendem a virtude na cidade pelo exemplo que lhes é dado pelos mais velhos e pelos grandes homens do passado. Isso na época já era o truísmo que é agora. Sócrates desdenha o argumento. Evidentemente, ele não gostaria de admitir que a comunidade, a pólis, é ela mesma uma professora, instilando virtude pelo exemplo e pela tradição. Aqui, como sempre, Sócrates é antipolítico, tanto no sentido grego quanto no moderno. Para refutar o argumento de que os grandes homens da cidade deram um exemplo salutar, Sócrates ataca quatro estadistas atenienses, tal como fez no Górgias, se bem que de modo um pouco mais suave. Mais uma vez ataca igualmente os oligarcas e os democratas. Estes últimos são os mesmos, Temístocles e Péricles. Dessa vez, porém, os representantes dos oligarcas conservadores que ele escolhe são dois outros estadistas de distinção. Um é o grande rival de Péricles, o general (não o historiador) Tucídides. O outro é o modelo de retidão da Antiguidade, Aristides, conhecido na época, e ainda hoje, como “Aristides, o Justo . Todos são tratados de modo tão depreciativo no Mênon quanto os outros quatro no Górgias.

Platão, como bom dramaturgo, atribui a Ânito um comentário profético antes de se afastar: “Sócrates, tenho a impressão de que você difama as pessoas com leviandade. Se quer um conselho, ouça-me: seja mais cuidadoso” (18). Anos depois, Ânito participaria do julgamento de Sócrates como o mais importante de seus três acusadores. Os quatro viriam a aparecer no tribunal.

Não quero dar a entender que Sócrates foi levado a julgamento por caluniar os estadistas atenienses. Insultá-los não era crime na cidade: era um verdadeiro esporte popular. Os poetas cômicos — que em Atenas desempenhavam um papel mais ou menos semelhante ao dos jornalistas independentes de nossa época — não faziam outra coisa, para deleite dos atenienses.

O que havia de realmente insultuoso no que Sócrates dizia eram as simplificações grosseiras contidas nas premissas filosóficas com base nas quais ele atacava a cidade, os líderes e a democracia.

É claro que o governante de uma cidade ou de qualquer outra comunidade deve ser “aquele que sabe”. Mas o que deve saber ele? Responderia o senso comum, tanto na Antiguidade como agora: o bastante a respeito de relações exteriores, comércio, defesa, obras públicas e problemas socioeconômicos para governar com sabedoria. Mas, para Sócrates, “aquele que sabe” deveria ser um filósofo profissional. Seu “conhecimento” tinha de ser uma ficção metafísica especializada.

A fórmula socrática segundo a qual o governo cabe àquele “que sabe” já contém o germe do conceito platônico de rei-filósofo. Mas Sócrates ia mais longe que Platão. Não encontrava ninguém — nem mesmo entre os filósofos — que possuísse a episteme, o verdadeiro conhecimento, no sentido estrito em que ele define o termo.

Ninguém possuía as qualificações perfeitas e absolutas que Sócrates exigia — nem ele mesmo, como admitia de bom grado. Ninguém “sabia”, e ninguém estava capacitado para governar. E a cidade, onde ficava? Num beco sem saída. Era a ele que a dialética socrática levava.

O que não era mais do que uma brincadeira filosófica perfeitamente legítima, ainda que por vezes um tanto pesada baleias intelectuais rodopiando nas profundezas do mar —, tornava-se pernicioso quando aplicado aos negócios da pólis. Um bom exemplo é o famoso corolário da equação socrática virtude = conhecimento: o “paradoxo” segundo o qual ninguém pratica o mal voluntariamente. Isso destruiria qualquer sistema de justiça criminal. É bem verdade que às vezes os homens cometem crimes por “não saberem o que fazem”. Mas como é que poderia “saber o que fazem” no estranho mundo da lógica socrática? Se virtude é conhecimento, mas o “conhecimento” é inatingível, então ninguém jamais pode “saber o que faz”. Ninguém é culpado e todo criminoso pode ser solto.

Na jurisprudência normal, o homem que comete um incêndio criminoso ou um assassinato pode não ser condenado se seus advogados conseguirem provar que ele é louco. Na jurisprudência socrática, qualquer criminoso poderia escapar do castigo argumentando que o crime fora involuntário, por motivo de “ignorância”. Como poderia alguém ser acusado de assaltar um banco se um ladrão que conhecesse filosofia podia facilmente demonstrar, segundo os critérios socráticos, que ele nem mesmo sabia o que era um banco?

Na esfera criada pelos filósofos idealistas, a busca constante da perfeição num mundo imperfeito impede que se encontrem soluções razoáveis para as complexidades que os homens têm de enfrentar na busca da ordem e da justiça. Dizer que homem algum pratica o mal voluntariamente é pressupor que ele não conhece a diferença entre o bem e o mal. Em que sentido é verdade afirmar que o homem não sabe a diferença entre o bem e o mal? Apenas no sentido em que ele não consegue formular definições de bem e mal tão perfeitas que deem conta de toda e qualquer contingência imaginável. Mas seria muito difícil achar um homem, fora dos hospícios e asilos para retardados, que real- mente não soubesse que é errado queimar a casa do vizinho ou roubá-lo e matá-lo. Em sua maioria, os criminosos sabem muito bem o que estão fazendo, e são poucos os que não sentem, no fundo, que são culpados; alguns até mesmo confessam seus crimes e buscam o castigo para se livrar do sentimento de culpa. Em muitos casos o criminoso é até superior à média em termos de conhecimento do mundo real. Às vezes ele é mais ousado e empreendedor do que a maioria das pessoas, e, longe de ignorar a diferença entre bem e mal, apenas a encara com desdém.

Além de questões básicas de moralidade, há aspectos mais simples da lei que seriam destruídos pela lógica socrática. Em Atenas, como em qualquer outro lugar, era errado desobedecer à lei da cidade mesmo em casos que nada tinham a ver com questões éticas. Assim, por exemplo, em nosso século é errado dirigir do lado esquerdo da rua em Nova York, e é errado dirigir do lado direito da rua em Londres. Trata-se daquilo que os estudiosos da lei chamam de valores “normativos” e não éticos. Na Antiguidade, tal como agora, ignorar a lei não era aceito como desculpa; caso contrário, seria praticamente impossível provar o que quer que fosse. Como provar que um homem que afirma que não sabia algo na verdade o sabia?

A lei impõe ao cidadão o dever elementar de conhecer a lei. Ele não pode esquivar-se argumentando ignorá-la. Uma das primeiras vitórias da gente comum em sua luta pela justiça foi obrigar a classe dominante de grandes proprietários de terra a escrever a lei, para que todos tivessem acesso a ela e pudessem saber que lei estavam sendo acusados de violar. Em Atenas, essa vitória foi conquistada quase um século antes do nascimento de Sócrates.

As propostas de lei eram discutidas e votadas na assembleia. Na época de Sócrates, a maioria dos cidadãos era alfabetizada e as leis eram divulgadas em quadros de avisos. Em Atenas, não era necessário recorrer a um advogado para saber a lei. Nesse sentido, nenhum ateniense podia alegar ignorar o que era legalmente “certo” ou “errado”. Na verdade, um cidadão que fosse acusado de tal ignorância certamente se sentiria ofendido.

Quanto às normas éticas em sentido mais amplo, em nenhuma cidade o bem e o mal eram questões discutidas mais exaustivamente do que em Atenas, como os próprios diálogos platônicos registram. É o que também mostram a tragédia grega, cujo tema central era o conflito moral, tema também dos maiores debates públicos relatados por Tucídides, e o entusiasmo das plateias atraídas pelas discussões a respeito da ética realizadas pelos sofistas e pelo próprio Sócrates.

Quando os atenienses “praticavam o mal”, o faziam consciente e voluntariamente, ou porque, enquanto indivíduos, achavam que iriam permanecer impunes, ou porque, enquanto cidade, tendo de optar por uma ou outra alternativa, escolhiam o que consideravam – muitas vezes tendo chegado a essa conclusão após um debate acalorado e destrutivo – um mal menor do que uma derrota militar e a perda do império. Foi esse o caso da decisão e massacrar o povo de Meios por ter se revoltado contra Atenas durante a guerra do Peloponeso, o mais grave “crime de guerra” cometido por Atenas, o qual, porém, não é mencionado em nenhuma das discussões de Sócrates e Platão a respeito da virtude – talvez porque o fato demonstra que as complexidades da vida não cabem no universo simplista dos dois filósofos.

Nem em Xenofonte nem em Platão Sócrates é obrigado a enfrentar as questões sociais básicas levantadas por sua doutrina paradoxal. Como ensinar virtude aos homens se logo de saída a doutrina segundo a qual ninguém faz o mal voluntariamente garantia-lhes que jamais seriam punidos?

Notas

1. Aristóteles, Metafísica, 2 vols. (Loeb Classical Library, 1933), 1.6.2 (1:43, o grifo é nosso).

2. Ibid., 1.6.3. (Loeb 1:43).

3. Platão, Teeteto, 147B (Loeb 2:23).

4. Platão, Fedro, 260B (Loeb 1:515).

5. Diógenes Laércio, 6.18 (Loeb 2:9).

6. Fedro, 260B-D (Loeb 1:515-517).

7. Thomas Hobbes, Leviathan (Londres, Penguin Press, 1968), 113.

8. Metafísica, 8.9.22 (Loeb 2:249).

9. Platão, Político, 294A-C (Loeb 3:133-135).

10. Xenofonte, Apologia, 14-16 (4:497).

11. Platão, Apologia, 21A(Loeb 1:81).

12. Xenofonte, Apologia, 16-17 (Loeb 4:651).

13. Platão, Apologia, 21B (Loeb 1:81).

14. Se o leitor me julga excessivamente crítico, veja o que diz o Greek-English lexicon de Liddell, Scott e Jones (Oxford, Clarendon Press, 1940) a respeito de eironeia: “ignorância fingida propositadamente com o fim de provocar ou confundir um antagonista, forma de argumentação usada por Sócrates contra os sofistas […] em sentido geral, falsa modéstia”. Outro argumento igualmente importante encontra-se em Quintiliano, o retórico mais respeitado da Antiguidade. Afirma ele que Sócrates era chamado de “irônico porque representava o papel de um ignorante que reverenciava a sabedoria dos outros” e desse modo fazia-os parecer mais tolos ainda (Instituição oratória, 9.2.46). Essa citação é tirada do Source book de Ferguson.

15. Platão, Apologia, 20C (Loeb 1:79).

16. Ibid., 23C (Loeb 1:89).

17. Górgias, 515E (Loeb 5:495).

18. Mênon, 94E (Loeb 4:351).

Jason Stanley: Nosso discurso público crescentemente fascista

Sócrates contra a retórica – O Julgamento de Sócrates de I. F. Stone – 5