POR QUE DEMOCRACIA?
Redescobrindo o papel inovador da democracia como regime político e como modo-de-vida
A democracia, além de atacada, vem sendo muito mal compreendida nesta época em que vivemos.
As pessoas, em geral, confundem democracia com eleição sem perceber que os regimes autoritários que existem no mundo de hoje são, em sua imensa maioria, regimes eleitorais. Para dar alguns exemplos: a Rússia de Vladimir Putin, a Venezuela de Nicolás Maduro, a Hungria de Viktor Orbán, a Turquia de Recep Erdogan – todos esses são regimes eleitorais (e, nem por isso, democráticos) (1).
Também é comum as pessoas acharem que a democracia é um assunto dos políticos. Pensam que quem deve tratar de democracia são os que cuidam da administração do Estado ou do governo, o presidente ou o primeiro ministro, os governadores e prefeitos, ou os que fazem e votam as leis, como os senadores, os deputados e os vereadores. Ou os que pertencem a partidos políticos com o objetivo principal de galgar os postos acima.
Há aqueles que têm uma visão negativa da democracia (e cujo número é crescente no século 21) e há os que ainda repetem aquela velha máxima de Churchill de que a democracia é o pior regime do mundo com exceção de todos os outros – o que, para além da piada, reforça uma visão condescendentemente negativa da democracia. Assim, pouca gente vê o papel inovador da democracia, não apenas como modo político de administração do Estado, mas também como modo-de-vida.
A democracia, como se sabe, foi inventada pelos antigos atenienses, na passagem do século 6 para o século 5 a.C., na resistência ao tirano Hípias. Essa primeira democracia, participativa, foi experimentada durante quase dois séculos e desapareceu em 322 a.C. deixando poucos vestígios. Mas ela foi reinventada pelos modernos, inicialmente no parlamento inglês do século 17, na resistência ao poder despótico de Carlos I. Sim, no século 17 surgiu a semente de uma variante inglesa da democracia. E no século 18 as variantes americana e francesa – todas bem diferentes da versão original. Mas foram essas variantes representativas que passaram a ser chamadas de democracia, a democracia que se expandiu pelo mundo, sobretudo a partir do século 20, e que continua existindo até hoje.
Há, no entanto, uma crise da democracia. A partir de 2005 o número líquido de democracias deixou de crescer no mundo e passamos a viver num período de recessão democrática (2).
Além disso, a democracia passou a ser questionada por muitas pessoas – sobretudo as mais jovens – que nela não veem mais nenhuma utilidade ou vantagem sobre outros regimes. Muitos perguntam por que devemos preferir uma democracia a um regime mais estável, com menos corrupção e fisiologismo, e que seja capaz de oferecer mais benefícios às populações (3).
Alguns especulam se não seria melhor ter um governo forte, com mais planejamento e menos bagunça (como o Chinês ou o de Singapura) e que entregasse mais resultados concretos às suas populações. E fazem sinceramente a pergunta: qual o problema de ter um désposta esclarecido no comando, desde que ele seja patriota, ame o seu país e esteja dedicado a promover o bem comum?
Mesmo os que defendem a democracia não conseguem ver claramente o seu papel inovador para melhorar condições de vida ou atingir padrões de convivência social mais adequados a um mundo que avançou tecnologicamente e apresenta novos desafios que não podem ser enfrentados com velhas fórmulas.
ENCONTRANDO O ELO PERDIDO
Quando vemos a incidência crescente desses questionamentos ficamos com a impressão de que alguma coisa se perdeu no caminho. Parece que certos elementos originários, e inéditos, do “genoma” da democracia – justamente aqueles que lhe conferiam um papel inovador – deixaram de ser percebidos pelas pessoas. E elas ficaram apenas com as formas transitórias de um modelo político, como o sistema eleitoral, a divisão dos poderes, os mecanismos de freios e contrapesos para evitar que um desses poderes se sobreponha aos demais, a vigência de direitos políticos e a garantia de liberdades civis.
Tudo isso parece, ao homem e à mulher comuns do século 21, que não se dedicam à política por vocação ou profissão, realidades muitos distantes da sua vida cotidiana, da sua convivência em família, nos grupos de amigos e nas vizinhanças onde residem, nas suas organizações sociais ou devocionais, nas suas escolas e universidades, no seu trabalho e no seu lazer. A política democrática, tal como concebida e praticada na atualidade, não entra muito nesses espaços de vida ou ambientes de convivência. Quando entra, o faz de modo negativo, criando dissensões e polarizações que afastam as pessoas em vez de aproximá-las. E tanto é assim que é cada vez mais frequente ouvirmos conselhos de que não se deve discutir política para não introduzir brigas e inimizades desnecessárias. Diz-se que é melhor deixar esse assunto de fora das conversas se quisermos cultivar bons relacionamentos. Que tratem desse tema os que dele vivem, quer dizer, os políticos.
No entanto, para as pessoas que experimentaram pela primeira vez a democracia, na Atenas do século 5 a.C., a democracia não era bem isso, ou melhor, não era só, nem principalmente, isso. Para elas, além de ser um modo de regulação de conflitos que ocorrem na esfera política, a democracia era também um modo de vida ou de convivência social.
Para os que a inventaram, a democracia era um modo pacífico e mais prazeroso de conviver. Não era bem para “dar casa, comida e roupa lavada” para a população, pois isso um tirano bondoso também poderia fazer (como hoje faz, por exemplo, o sultão de Brunei – um ditador). Era para não ter nenhum tirano, ou seja, para que as próprias pessoas pudessem, coletivamente, e da maneira que quisessem, buscar melhorar as suas vidas – sobretudo seus relacionamentos com outras pessoas – sem que ninguém, acima delas, ficasse determinando como elas deveriam agir. A democracia nasceu a partir de um desejo das pessoas de viver sem um senhor, de ser cidadãos e não súditos – e isso resume quase tudo.
A democracia é a invenção da política
Essa talvez seja a maior inovação que aconteceu em todos os tempos do que chamamos de civilização. Os democratas atenienses descobriram que os seres humanos poderiam permanecer juntos, convivendo livremente em rede, para se auto-organizar e traçar o seu próprio destino. Eles descobriram que poderiam se libertar da obrigação da obediência a um senhor, que frequentemente os enviava para suas guerras. Ou mesmo, em tempos ditos de paz, que eles não precisariam viver totalmente consumidos pela necessidade de sobreviver ou apenas pelo interesse individual de prosperar economicamente. É claro que isso – em si – não é ruim, mas há algo além…
Eles perceberam que, em tempos de paz, se ficassem somente em suas casas ou dedicados apenas aos seus negócios privados ou seus trabalhos, não seriam capazes de formar comunidades para organizar as suas vidas na cidade e – por que não? – administrar a vida da própria cidade. Foi aí que descobriram que, para tanto, era preciso ir para a praça encontrar os seus iguais e conversar com eles.
Das guerras, porém, os atenienses que inventaram a democracia não retiveram apenas uma experiência negativa e destrutiva: de obediência, disciplina, mutilação e morte. Experimentaram também nos acampamentos – em que passavam o maior tempo das campanhas bélicas – o companheirismo e a solidariedade. Quando a guerra cessava e eles voltavam para suas casas, suas vidas pareciam ter perdido o sentido. Sentiam então a nostalgia daqueles tempos de convivência amistosa com os camaradas e o tédio de ter que tratar dos repetitivos problemas comezinhos cotidianos, de prover o sustento da família e cuidar da manutenção da casa. Ou de não ter tempo para nada além de tratar de seus negócios ou do seu trabalho.
Além disso, sentiam-se impotentes por não poder interferir em nada na organização e no funcionamento da cidade, posto que os assuntos comuns, que diziam respeito às suas vidas, estavam privatizados por um tirano.
Quando sairam de suas casas e deixaram de lado, por um tempo, seus empreendimentos ou serviços e foram conversar na praça sobre os assuntos comuns, os atenienses começaram a configurar, talvez pela primeira vez na história, um espaço público, uma comunidade propriamente política, que não podia surgir nas suas casas ou nos ambientes em que cuidavam dos seus afazeres privados. E descobriram também que se fizessem isso por um tempo suficiente gerariam um mundo novo, quer dizer, não um novo universo físico, nem uma nova natureza, mas uma nova “entidade” social que se materializava como a cidade democrática. Estava inventada a política!
Começaram então a experimentar um novo modo de convivência, que não era exatamente como aquele que experimentavam nos acampamentos guerreiros, mas que o sustituia com uma importante modificação. Os combatentes de ontem viraram conviventes: conversantes, persuasivos, se expressando num ambiente mais lírico do que épico, e tendo um comportamento mais amistoso do que adversarial.
A DEMOCRACIA COMO MODO-DE-VIDA
Qual era a aposta dos primeiros democratas? Interpretando de cá para lá, pode-se dizer que era a seguinte (com outros termos, obviamente): se as pessoas passarem a viver a sua convivência, um outro tipo de vida surgirá. A vida propriamente política, a fruição do viver prazerosamente a coisa política que só pode se dar num espaço público, a criação social do commons (o ‘comum’, no sentido político do termo).
Esta era uma compreensão particularíssima do que chamamos de liberdade. A liberdade, para os inventores da democracia, depende do modo como os seres humanos interagem. Por exemplo, se eles se isolam e não se associam não pode haver liberdade. Se eles não se juntam para contender com um problema que a muitos afeta ou para realizar um projeto comum nascido dos seus desejos semelhantes ou congruentes, não pode haver liberdade. E se eles não criam novas realidades sociais a partir de tudo isso, não pode haver liberdade. Quando fazem tudo isso, porém, os seres humanos não o fazem porque é necessário. O social é um campo que se cria a si mesmo a partir da interação fortuita, a rigor desnecessária pois que parte mais do desejo do que do interesse. Isto é a fruição da política. Ninguém pode ser livre sozinho. Quem está fora da polis (quer dizer, não da cidade-Estado e sim da comunidade política), não pode experimentar a liberdade.
RESGATANDO O PAPEL INOVADOR DA DEMOCRACIA
Foi assim no princípio. E esse princípio precisa ser resgatado se quisermos experimentar a democracia – de modo inovador, criativo e cooperativo – na atualidade.
Entretanto, é preciso compreender que a maioria da população do planeta, hoje ou em qualquer época da história, jamais experimentou a democracia. Desde que surgiram as primeiras formas de Estado, há mais de cinco milênios, as pessoas experimentaram, em todo lugar e na maior parte do tempo, regimes autocráticos. Se compararmos o tempo do que chamamos de civilização a 1 dia (24 horas ou 1.440 minutos), só tivemos democracia em menos de 100 minutos. E, mesmo assim, na antiguidade, isso aconteceu em localidades isoladas (como Atenas e outras cidades vizinhas); e, na modernidade, em alguns poucos lugares, a partir dos séculos 18 e 19 e mais amplamente no século 20. Mas mesmo hoje a maior parte da população da Terra ainda não vive em regimes democráticos.
Isso significa que nossa cultura é predominantemente autocrática, não democrática. E isso explica, em parte, porque há tanta incompreensão da democracia.
Interessante notar que muitos dos que hoje se contrapõem à democracia não se incomodam tanto com a democracia como modo político de administração do Estado (uma coisa distante da pessoa comum) e sim com a possibilidade da democracia se instalar na base da sociedade, como modo de vida e convivência social, em virtude da emergência de uma sociedade em rede. Inexplicável seria se uma cultura patriarcal, hierárquica e guerreira (autocrática), replicada durante milênios, não estivesse reagindo à emergência de uma sociedade-em-rede que desabilita suas velhas formas de comando e controle.
Como vimos, a democracia ateniense, que foi experimentada nos séculos 5 e 4 a.C., foi reinventada pelos modernos a partir do século 17, e só pode ser designada com o mesmo nome (democracia) porque manteve partes do mesmo “DNA” original: viver sem um senhor, sem guerra e se comprazendo na convivência com os semelhantes. A democracia surgiu como um processo de desconstituição de autocracia. E ainda é hoje – embora seja geralmente confundida com eleição ou modelo de administração política do Estado – a mesma coisa: um processo, o processo de democratização.
Mas a democracia é também um modo de desprogramar milênios de cultura autocrática. Experimentar processos democráticos – aquilo que chamamos de democracia como modo-de-vida – é a única maneira de evitar que preconceitos e conceitos autocráticos, depositados em camadas sobre camadas, no subsolo da consciência das pessoas, possam emergir e, dependendo das condições, em certas circunstâncias, oferecer uma base para que projetos políticos tenebrosos, de condução autoritária da sociedade, possam vingar. Isso é o que precisa ser evitado a qualquer custo por todos aqueles que não querem ser cavalgados por um tirano.
A democracia foi uma brecha aberta no muro da cultura patriarcal (hierárquica e guerreira). Talvez tenha sido a primeira grande brecha. Por essa brecha puderam passar correntes humanizantes. E elas continuam passando. E conseguem passar em cada momento em que constituímos amizades ou desconstituimos inimizades políticas. E elas conseguem passar toda vez que regulamos nossos conflitos de modo pacífico ou não guerreiro. Quando fazemos isso “produzimos” mais democracia. Sim, a democracia não humaniza o mundo de uma vez. Ela vai humanizando o mundo um instante de cada vez.
ELA ESTÁ NO MEIO DE NÓS
Os pesquisadores da democracia vivem tentando explicar por que o desempenho da democracia não tem sido tão bom a ponto de atrair a simpatia de todos. Mas eles se referem sempre à democracia como modo de administração política da forma Estado-nação ou como provedora de boas condições materiais de vida para populações nacionais. Chegou a hora de começar a pensar no sucesso da democracia em não-países. Ou seja, em qualquer lugar, não dependendo do país ou do seu regime, mas das pessoas que livremente se organizam.
Na verdade, democracia como modo-de-vida significa democracia como modo de convivência social, ou seja, modo pazeante de regulação de conflitos na vida comum ou na convivência social cotidiana. Quando se vai organizar qualquer coisa, quando se vai interagir com alguém, sobretudo para fazer um empreendimento coletivo, pode-se adotar processos democráticos. Isso significa, no fundo, não criar inimigos, cooperar mais do que competir, não exigir alinhamentos de posições e sim montar ecologias de diferenças coligadas, não erigir hierarquias, não lutar ou combater, enfim…
Quando um regime se diz democrático, isso quer dizer apenas que o funcionamento de suas instituições não está impedindo a continuidade do processo de democratização. Todavia, ainda que seja muito importante conservar as instituições que temos, sobretudo nas circunstâncias em que vivemos no início desta terceira década do século 21, o fundamental é permitir que essas instituições não bloqueiem ou dificultem o avanço do processo de democratização.
Existem várias metáforas para tentar tornar mais fácil o entendimento da democracia. A mais conhecida delas é a da plantinha que tem que ser regada todo dia, do contrário morre. Mas a melhor de todas é a da bicicleta. Parou de pedalar, cai. Porque não é um estado, não é um modelo que alguém aplica e sim um processo que vai caminhando sempre em direção ao que ainda não existe, mas existirá quando existirá – se for desejada.
QUAL A SAÍDA?
Diante de uma democracia atacada e incompreendida, qual a saída? Não há saída sem política e fora da democracia. Diz-se, com razão, que a defesa da democracia e a correção de suas imperfeições só podem ser obtidas pela política e com mais democracia.
A democracia sempre foi atacada e incompreendida, ainda que tenha florescido mais plenamente em alguns fugazes momentos da história, como naqueles trinta anos de ouro em Atenas, entre o final (ou o abrandamento) das guerras com os persas e o início da guerra com os espartanos (462-431 a.C.) e na Inglaterra dos Bill of Rights (do século 17).
É verdade que uma democracia representativa – como regime político ou forma de administração política dos países – se consolidou na modernidade, nas três ondas de democratização dos últimos duzentos anos.
A primeira onda, entre o final do século 18 e 1918, com as revoluções americana, francesa e haitiana, o desenvolvimento da democracia na Grã-Bretanha, as revoluções bolivarianas (originais) estabelecendo democracias na América do Sul, o desmembramento da Alemanha e a conversão dos impérios Otomano e Austro-Húngaro, após a 1ª Guerra Mundial, em repúblicas democráticas.
A segunda onda, entre 1945 e 1960, com a reorganização das potências do eixo derrotadas – Alemanha, Itália e Japão – em fortes democracias, e a descolonização se desdobrando em todo o mundo, criando nações independentes democráticas.
E a terceira onda, de 1975 a 1991, com o fim das ditaduras em Portugal, Espanha e Brasil, as transições democráticas em Taiwan e na Coréia do Sul e o colapso da URSS, criando estados livres e democráticos do Leste Europeu.
Tudo isso é verdade. Mas desde 1991 o mundo foi novamente engolfado por uma grande onda de autocratização (4), com nações do ex-Pacto de Varsóvia, como Rússia, Hungria e outras voltando ao autoritarismo. De lá para cá observamos a ascensão dos populismos, tanto os ditos de esquerda, quanto os ditos de direita – na verdade, de extrema-direita.
Como exemplos de populismos de esquerda podemos citar o novo bolivarianismo na América Latina (chamado por alguns de “socialismo do século 21”), destacando-se aí o chavismo (de Hugo Chávez e Nicolás Maduro) na Venezuela e o sandinismo eleitoral (de Daniel Ortega) na Nicarágua – que viraram ditaduras; e os neopopulismos mais softs, como o de Evo Morales na Bolívia, Rafael Correa no Equador, Fernando Lugo no Paraguai, Maurício Funes em El Salvador, entre outros bem conhecidos de nós, no Brasil e na Argentina.
E como exemplos de populismos de extrema-direita, podemos citar o populismo-autoritário ou nacional-populismo como o do Movimento 5 Estrelas de Beppe Grillo e Gianroberto Casaleggio e da Liga de Matteo Salvini na Itália, o de Marine Le Pen na França, o da “democracia” i-liberal de Viktor Orbán na Hungria, o do partido Lei e Justiça dos irmãos Kaczynski na Polônia, o do Brexit, o de Donald Trump e da captura do partido Republicano pelo trumpismo nos Estados Unidos e o de Jair Bolsonaro no Brasil (5).
Não se sabe quanto durará essa terceira onda de autocratização. Mas, de qualquer modo, o que ela ataca não são apenas os regimes políticos (ou as formas de administração política dos Estados-nações) e sim também o modo de vida democrático. Sociedades dominadas por autocratas (ainda que eleitorais) viram ambientes avessos à prática da democracia na base da sociedade e no cotidiano do cidadão. Sociedades dominadas por democratas (apenas) eleitorais, se forem populistas (iliberais e majoritaristas), terão dificuldade de caminhar para se converterem em democracias liberais. Eis o ponto!
A saída para isso, necessariamente de longo prazo, passa pela formação de redes democráticas, sempre temporárias, altamente interativas (intensamente tramadas por dentro) e abertas, com muitos atalhos (ou ligações para fora). A democracia terá de ser encarada por nós como modo-de-vida e exercida em todos os lugares em que for possível desconstituir autocracia (nas famílias, nos grupos de amigos, nas escolas e universidades, nas igrejas, nas organizações da sociedade, nas empresas).
Uma saída democrática capaz de interromper o processo continuado de erosão da democracia – no Brasil e em qualquer localidade do mundo onde processos de autocratização estão em curso – exige recomeçar de baixo para cima, multiplicando em cada lugar e setor de atividade o número de agentes democráticos ativos. Isso implica não apenas aumentar o número de pessoas que dizem preferir a democracia a outros regimes políticos, mas multiplicar os atores políticos que sejam capazes de reconhecer a presença de padrões autocráticos, de detectar precocemente sinais de envenenamento e de desconsolidação da democracia, mesmo quando esses sinais são fracos ou subterrâneos e de agir consequentemente para configurar novos ambientes democráticos.
Mas se quisermos recuperar o “DNA” inovador da democracia, nossa resistência às tendências regressivas e antidemocratizantes não pode ser apenas negativa, reativa. Ela deve ser criativa e proativa. Daqui para frente, na pauta dos democratas não poderão estar ausentes questões cruciais como:
Como sobreviver, viver, conviver e inovar numa época de recessão e desconsolidação democráticas, de declínio do capital social (quer dizer, dos níveis de confiança e cooperação na sociedade) e de reação exacerbada à emergência da sociedade-em-rede?
Qual o formato possível para novos empreendimentos sociais, empresariais e governamentais distribuídos e democráticos num mundo que retrograda?
Eis o nosso desafio.
Para que isso possa ser explicado de modo a incentivar as pessoas a se interessar pela democracia (ou melhor, a desejá-la) é preciso, entretanto, trocar em miúdos essas questões, relacionando-as a fatores mais imediatamente ligados às suas vidas:
O que ganhamos com a democracia?
O que a democracia é capaz de criar, ou seja, quais são os efeitos positivos da democracia?
Por que, afinal, precisamos de democracia?
Estas perguntas poderiam ser respondidas com poucas palavras: com a democracia ganhamos liberdade. A democracia é a política que tem como sentido a liberdade. Mas isso só acontece na medida em que a praticarmos.
Há um fundamento ético-político na opção pela democracia. Para a democracia é bom tudo que nos faz mais livres. Não apenas livres da opressão de outrem (posto que liberdade não é exatamente a mesma coisa que libertação), porém mais livres para fazer (ou não fazer) o que quisermos (ou não quisermos). Inclusive livres para não ter rumo, para vagar ao leu, ao sabor do vento, quer dizer, dos fluxos interativos da convivência social. Isso significa que não importa o que alguém vai fazer ou deixar de fazer. Importa muito, ao contrário, que – respeitadas as leis democraticamente aprovadas – ninguém possa, a partir do poder de Estado, dizer o que alguém vai fazer ou deixar de fazer. É isso. Os que desejam a democracia avaliam – como já se disse aqui – que é melhor ser cidadão do que súdito.
No passado se dizia que a democracia contribui para aumentar o crescimento econômico e o bem-estar das populações, este último entendido como melhoria das condições de vida dos indivíduos que compõem as sociedades. No entanto, nas últimas três décadas estamos vendo que essas evidências são frágeis. Países autocráticos ou que adotam regimes autoritários (como China e Singapura) estão crescendo mais economicamente e conseguindo aumentar o bem-estar de seus habitantes mais intensa e velozmente do que muitos países democráticos. Alguns desses países autocráticos estão adotando mecanismos de mercado que impulsionam o crescimento e a prosperidade econômica enquanto mantêm seus regimes políticos autoritários, opacos e fortemente centralizados. Disso, portanto, não se tem mais tanta certeza (6).
RAZÕES PARA APOSTAR NA DEMOCRACIA
Ainda que a democracia seja sempre uma aposta, nunca uma certeza, temos, porém, evidências mais fortes para nossa aposta na democracia.
Temos evidências suficientes de que a democracia é mais humanizante do que a autocracia. Sim, ter direitos políticos e liberdades civis, respeitar os direitos humanos, não permitir que preconceitos e conceitos patriarcais transformem diferenças em separações (de raça, cor, credo, orientação sexual, escolaridade, idade, nacionalidade etc.) é mais humanizante do que não ter nada disso.
Temos evidências fortes de que a democracia é um regime de paz (basta ver que não há exemplos de guerras entre dois países democráticos). Sim, a democracia é sem-guerra (seja a guerra quente, seja a guerra fria, seja a política tomada como continuação da guerra por outros meios e degenerada como uma luta “nós” contra “eles”). Ou seja, a democracia evita a instalação do estado de guerra, que consiste – ao contrário do que comumente se pensa – não em destruir inimigos, mas em construir e manter inimigos.
Temos evidências de que a democracia aumenta os níveis sociais de confiança, cooperação e solidariedade na base da sociedade e no cotidiano do cidadão (ou seja, aumenta o estoque ou o fluxo do capital social – que é a principal condição sistêmica para o florescimento de experiências de desenvolvimento humano e social sustentável).
E temos evidências de que a democracia liberta as forças criativas e empreendedoras da sociedade, encorajando as pessoas a inovar e a se associar para inovar, tendo em vista não diretamente a melhoria das suas condições materiais de vida e sim a melhoria das suas condições de convivência social (para que então, caminhando com suas próprias pernas, elas possam melhorar as suas condições materiais de vida do seu jeito).
Para quem tudo isso não basta, a democracia não é mesmo um caminho desejável. Mas para quem deseja tudo isso, não há caminho fora da democracia.
O QUE DEVEMOS ENTENDER FUNDAMENTALMENTE
É bom nunca esquecer – e por isso não é ocioso repetir: não há democracia sem democratas. Mas há um déficit acentuado de democratas na sociedade brasileira. Isso significa que é preciso multiplicar o número de democratas estimulando a aprendizagem da democracia.
Ocorre que a aprendizagem da democracia tem as características de uma conversão: uma conversão não-religiosa, mas uma conversão. Essa conversão implica uma mudança do emocionar e do pensar. Aceitar o outro em nosso espaço de vida, tratá-lo como um potencial parceiro e não como um possível inimigo, conversar com ele e tentar persuadí-lo ao invés de combatê-lo. Isso muda tudo.
Ora, ninguém pode experimentar tal mudança se não mudar de rede (não adianta tentar convencer as pessoas pelo proselitismo, com discursos que entram por um ouvido e saem pelo outro). E, ademais, é preciso mudar as redes nas quais as pessoas conversam recorrentemente, no dia-a-dia – interagindo entre si e agindo juntas, pois são os links locais que regulam o mundo (7).
Para multiplicar os democratas é preciso perceber que dificilmente alguém valorizará uma ideia ou um comportamento se sua rede de conversações recorrentes valoriza outras coisas. Não se trata de pensar igual, nem de ter a mesma bagagem de conhecimentos. Agentes democráticos não são indivíduos iluminados pelo conhecimento. São pessoas que participam de conversações democráticas recorrentes e, portanto, são nodos de redes que se articulam na sociedade. Portanto, são agentes de uma cultura que, como toda cultura, reproduz, de modo “não-natural”, certo tipo de comportamento. Para tanto, estão conectados a clusters de, digamos, “pegajosidade antropológica” fortes o suficiente para que seus membros se reconheçam e se reforcem mutuamente por meio de múltiplos laços de feedback positivo.
Ninguém nasce democrata, se torna. Mas ninguém se torna democrata por um desenvolvimento natural da cultura em que nasceu e foi criado, porque a cultura dominante é predominantemente autocrática. Assim, em geral, não aprendemos democracia em casa, nos grupos de amigos, na escola, na igreja, na organização social, na corporação, no partido ou na empresa. Porque os padrões de organização e os modos correspondentes de regulação de conflitos que vigoram nesses ambientes costumam ser hierárquicos e autocráticos.
Aderir à democracia como valor – e como o principal valor da vida pública e privada, quer dizer, também como modo-de-vida – requer um esforço de remar contra a corrente, exige resistir à autocracia, o que envolve, antes da razão, um outro tipo de emocionar, de aceitação do outro em nosso espaço de vida.
Sim, vale repetir: ninguém nasce democrata, se torna. E se torna democrata, em primeiro lugar, não por um esforço intelectual e sim por uma inconformidade (e uma insuportabilidade) com o emocionar hierárquico e autocrático. No sentido forte do conceito de democracia (como processo de desconstituição de autocracia) e no sentido amplo desse conceito (da democracia como modo-de-vida e não apenas como modo político de administração do Estado), alguém se torna democrata quando passa a resistir a padrões autocráticos, abrangendo emoções e pensamentos.
A democracia é contra-intuitiva
Mas a democracia é contra-intuitiva. Vejamos alguns exemplos capazes de ilustrar essa afirmativa.
Primeiro, a democracia não é sinônimo de regime eleitoral (aliás a maioria dos regimes eleitorais existentes hoje no mundo não é democrática).
Segundo, a democracia não é o governo do povo e sim o governo de qualquer um (não de um, de poucos, de muitos, nem mesmo da maioria – daí que o sorteio, e não a votação, seja da sua essência).
Terceiro, a democracia não é a prevalência da vontade da maioria, mas a possibilidade de convivência de múltiplas minorias.
Quarto, a democracia não é somente um modo político de administração do Estado, mas também um modo de vida ou de convivência social.
Quinto, a democracia não é um modelo de sociedade ideal, uma utopia: ou seja, a democracia é terrestre, não celeste (não quer construir o céu na terra, nem levar as pessoas para algum lugar melhor, um amanhã radioso e sim permitir que elas vivam, aqui e agora, como seres políticos, autorregulando seus conflitos).
Sexto, a democracia não é o regime sem corrupção e sim o regime sem um senhor; em outras palavras, a democracia é suja, torta e imperfeita – não é um regime de anjos que só possa se estabelecer num mundo limpo, reto e puro, mas de pessoas comuns, com todas as suas sujidades, curvaturas e imperfeições, ainda bem.
Sétimo, a democracia é, sim, um valor universal, mas não é necessária para quem não a deseja ou valoriza, nem se aplica a todas as sociedades, porque é um processo de desconstituição da autocracia (não vale, por exemplo, para tribos paleolíticas remanescentes – pois que nessas sociedades não existe autocracia).
Oitavo, a democracia não é uma nova (ou velha) doutrina e sim sem doutrina (as pessoas podem acreditar no que quiserem: não precisam aderir a um corpo de ideias, a um códex, para ser democratas).
Nono, a democracia não é uma ciência ou uma arte de vencer inimigos ou um jeito de eliminar os conflitos e sim um modo de, aceitando os conflitos, regulá-los sem guerra – convertendo inimizade em amizade política.
Décimo, a democracia não é um saber (episteme) ou uma técnica (techné) e sim um modo de regulação de conflitos baseado na interação e na polinização mútua de opiniões, um regime da liberdade de opinião (doxa) – ou seja, da isologia, isonomia e isegoria no tocante às opiniões, que não desvaloriza a doxa em relação à episteme ou à techné (quando se trata do processo de formação da vontade política coletiva).
Isso não esgota os pontos de vista possíveis. A democracia é atributo da sociedade aberta e, assim, da sociedade que tem o futuro aberto à invenção, portanto, aberta também à reinvenção de passado (ou seja, à possibilidade de construir e reconstruir a sua própria “tradição”) (8). Aliás, chamamos propriamente de liberdade (no sentido democrático-original do termo) à possibilidade de não repetir passado e, inclusive, de ser infiel às origens (o que implica permanente invenção).
Sim, a democracia é contra-intuitiva. As pessoas que acham que já sabem o que é democracia, dificilmente conseguem explicar por que ela:
(i) não é propriamente sobre governar e sim sobre controlar o governo a partir da auto-organização societária;
(ii) não é sobre implantar alguma ordem social conhecida, julgada (por alguém) melhor do que outras e sim sobre permitir que ordens inéditas brotem da interação política dos cidadãos;
(iii) não é adotar um modelo de regime político (para escolher os melhores representantes – pois que isto é aristocracia, o regime dos aristoi – os melhores) e sim permitir que o processo de democratização – ou de desconstituição de autocracia – continue fluindo; e
(iv) não é, diretamente, sobre melhorar condições de vida e sim sobre melhorar condições de convivência social.
Em suma, que a matéria propriamente política é a liberdade, que o sentido da política é a liberdade, que ser democrata é ser radicalmente liberal, num sentido democrático do termo, e que isso quer dizer o seguinte:
a) que liberdade não é libertação e sim interagir livremente na comunidade política;
b) que ninguém pode ser livre sozinho; e
c) que, assim, nossa liberdade começa onde começa (não onde termina) a liberdade do outro.
A concepção democrática de liberdade não é trivial
Assim como é contra-intuitiva, a democracia não é trivial. Embora não pareça à primeira vista, não é trivial entender a liberdade democrática. A maioria das pessoas acha que o sentido da política é o de implantar uma ordem melhor, mais justa, mas esta não é uma ideia democrática original.
Por isso é necessário sempre explicar que ainda que os democratas tenham um conceito (ético-político) do que é bom, para eles isso não significa uma boa ordem imaginada (no futuro) e sim tudo que (aqui-e-agora) nos faz mais livres. Assim, os democratas não precisam ter um plano de reformar o mundo visando alcançar uma boa ordem futura.
Claro que é desejável uma ordem mais justa e um mundo menos desigual. Mas a igualdade não pode ser precondição para a liberdade. Do contrário, isso só seria alcançado num reino da abundância (onde não haveria desigualdade sócio-econômica pela simples razão de que não haveria escassez). Ora, se o reino da liberdade coincidir necessariamente com o da abundância, a liberdade vira um futurível. E liberdade que só se alcança amanhã é a negação da liberdade hoje. Pessoas não-livres não podem caminhar para um futuro de liberdade.
Se a liberdade só pudesse existir num mundo igualitário, a democracia não teria sido inventada pela primeira vez numa sociedade com escravos. E o que os modernos chamaram de democracia não poderia existir numa sociedade capitalista, às vezes descrita como uma sociedade com exploradores e explorados.
Para o conceito democrático original (que dá base ao liberalismo antigo), a liberdade depende da forma como as pessoas interagem (“e nada mais”, dizia Hannah Arendt). Mas a liberdade como sentido da política não garante que, uma vez mais livres, as pessoas vão lutar para instaurar uma nova ordem, imaginada como mais justa. Elas podem querer ser livres, como disse o poeta (Manoel de Barros), para não ter rumo. Podem ser livres até para não ter que lutar por nada.
A democracia não é uma utopia
Por isso, talvez, a democracia não seja uma boa alternativa para quem quer trilhar um caminho para salvar o mundo num futuro idílico. Ou porque – sendo ela mais lírica do que épica – para quem quer arregimentar as massas para lutar, lutar, lutar para trazer os céus à terra.
O que se diz aqui, em síntese, é que a democracia – felizmente – não é uma utopia. As utopias, como se sabe, são distopias (algumas, como a platônica, são retropias). Observe-se que as distopias mais tenebrosas sempre colocam como objetivo final a felicidade. Algumas até colocam a igualdade. Mas (quase) nenhuma fala da liberdade. A não ser aquelas (como a marxista) que dizem que a verdadeira liberdade só poderá ser alcançada no reino da abundância (e, portanto, da igualdade).
Sim, é difícil entender que o sentido da política democrática não é a igualdade e sim a liberdade. A igualdade é a condição da política, pois a democracia só poderia nascer da interação entre iguais (ou seja, em circunstâncias em que qualquer um poderia igualmente interagir). Fala-se aqui da igualdade política, não necessariamente da igualdade socio-econômica, ainda que uma desigualdade sócio-econômica muito acentuada entre iguais políticos possa leva à desliberdade, tornando-os desiguais políticos. Mas não é próprio da democracia esperar uma igualdade sócio-econômica total para poder experimentar a interação política em condições de igualdade (política). Ocorre que se não tenho liberdade agora, nunca terei liberdade no futuro (a liberdade é uma esfera que se expande, não um lugar onde se chega). E se não experimento democracia hoje, nunca chegarei a qualquer democracia amanhã.
E a democracia também não é uma boa alternativa para quem quer transformar o mundo e produzir, como se dizia, um “homem novo”. Projetos de transformação são, na verdade, projetos de condução. Alguém porventura sabe no que o mundo ou as pessoas devem se transformar? Ou tem uma ideia disso (uma ideologia) e quer levar os outros para esse futuro ideal mais justo e perfeito, mais saudável ou sustentável, mais isto ou mais aquilo?
O principal fundamento do liberalismo democrático é não ter projeto de condução dos outros. Para o sujeito democrático isso significa não seguir e não ser seguido por ninguém – e sim caminhar sempre com-alguém.
Inútil ensinar: a democracia só pode ser aprendida
Mas, mesmo que fosse fácil explicar tudo isso para alguém, não adiantaria fazê-lo como quem dá uma aula: entra por um ouvido e sai pelo outro. Eis o desafio maior de qualquer processo de aprendizagem democrática. Porque promover a aprendizagem da democracia não é atulhar as cabeças dos aprendentes de conteúdos. Não, não se trata – nem apenas, nem principalmente – de conteúdos (e sim de comportamentos). A democracia não é um ensinar e sim um deixar-aprender.
Assim como a democracia é contra-intuitiva e não-trivial, ela também não é “natural”. Agora ou em qualquer época os seres humanos, em sua maioria, nunca tiveram a oportunidade de experimentar um regime democrático. Acrescente-se que o número de democracias liberais nunca ultrapassou 40 países em pouco menos de 200 Estados-nações.
E não é “natural”, no sentido acima, nem é normal. É, pelo contrário, um desvio do que foi considerado normal nos últimos 5 milênios. É uma brecha aberta na cultura patriarcal. Nestas circunstâncias, como já foi dito, aprender democracia é desaprender autocracia. E por isso a democracia não pode ser aprendida “naturalmente” ou normalmente na família, na igreja, nas organizações sociais, nas empresas e nos órgãos estatais, onde ainda predominam culturas sintonizadas com modos de vida hierárquicos e autocráticos da civilização patriarcal. Mesmo nos países considerados democráticos, a democracia que é ensinada nas escolas e universidades não é suficiente para provocar uma mudança cultural, quer dizer, uma mudança de comportamento dos agentes. Do contrário, imensos contingentes com mais escolaridade não votariam, crescentemente, em candidatos autoritários (e nem desvalorizariam a democracia, como mostram todos os estudos recentes sobre a recessão e a desconsolidação democráticas) (3).
De qualquer modo, o fundamental parece ser aprender a reconhecer padrões autocráticos, seja para inaugurar, seja para defender e desenvolver, regimes políticos e modos de vida democráticos. E, para tanto, é necessário observar, investigar e refletir muito sobre o assunto.
Por isso, cada iniciativa democrática (no sentido forte do conceito de democracia) deve tecer uma nova rede, um novo ambiente configurado para as pessoas se conhecerem e se reconhecerem (ao se sintonizarem) e para fazer coisas juntas (ao se sinergizarem). Trata-se de conectar as pessoas por desejos congruentes. É a única saída para não arregimentar por interesses. Se houver arregimentação por interesses, dá mais do mesmo: o resultado será sempre uma dinâmica sindical, corporativa, privatizante (e não democratizante). Portanto, cada iniciativa democrática deve ser um novo nicho capaz de ensejar que as pessoas, a partir dos seus desejos, fiquem próximas o suficiente para possibilitar as mudanças implicadas na conversão à democracia.
Fica claro, assim, que nada disso é apenas coisa para especialistas. Se os democratas não tiverem alguma noção dessas coisas como vão poder cumprir o papel de agentes fermentadores do processo de formação da opinião pública no mundo atual? Ou como vão conseguir ser protagonistas de uma nova alternativa democrática na atualidade?
Que esta época onde vicejam pulsões autoritárias seja para nós hora de fermentação, hora do grão morrer para germinar, hora de crescer escondido na escuridão geral e de usar nossos mil pontos de luz locais para fazer isso…
Sim, estamos em um daqueles momentos de virada em que as saídas tradicionais não adiantam.
Se tivermos algumas pessoas interagindo de modo distribuído em vários clusters, em cidades de todas as regiões, usando seus pequenos pontos de luz para trabalhar na escuridão (promovendo ambientes de aprendizagem da democracia, escrevendo nos jornais locais, pontificando nas TVs e rádios, com canais no Youtube e nas mídias sociais, se candidatando a cargos executivos e legislativos por velhas e novas agremiações, atuando em instituições do Estado e da sociedade), uma grande rede democrática pode ir se articulando sob a tormenta.
A democracia não é a luz de um holofote e sim a de miríades de pequenas velas. Sempre foi assim, aliás. Quantos democratas convictos – que tomavam o sentido da política como a liberdade (e não a ordem) e atuavam condizentemente com isso – existiam em Atenas nos séculos 5 e 4 a. C., ou no parlamento inglês dos Bill of Rights no século 17? Muito poucos. Mas sem esses poucos, a democracia não teria chegado até nós.
Podemos ser poucos, mas não tão poucos que não sejamos capazes de fermentar o processo de formação da opinião pública. Sim, é para isso que existem os democratas, não para virarem maioria (quem aposta nisso – no majoritarismo – são os populistas, ditos de esquerda ou de direita ou extrema-direita, hoje os principais adversários da democracia no mundo e no Brasil) (9).
O aumento do número de agentes democráticos e sua conexão em rede poderá modificar a vida de pessoas e comunidades, gerando ambientes menos adversariais ou mais colaborativos, desconstituindo autocracia no dia-a-dia ao ensaiar a democracia como modo-de-vida, fermentando a formação de uma opinião pública democrática e resistindo ao autoritarismo e a qualquer populismo.
Ou fazemos alguma coisa para resolver essa situação – ainda que trabalhando com o horizonte temporal estendido dos próximos dez anos – ou o problema do deficit de democratas vai continuar.
O QUE PODEMOS FAZER CONCRETAMENTE
Eis algumas sugestões, que devem ser tomadas apenas como inspiração, não como uma pauta obrigatória de ações que devam ser realizadas pelos democratas que estão tentando recuperar o sentido inovador da democracia que se perdeu ou ficou esquecido.
Em primeiro lugar, envolver mais pessoas em processos de aprendizagem da democracia. Se levarmos a sério as constatações de que não existe democracia sem democratas e de que o número de agentes democráticos é insuficiente na atualidade, essa primeira ação sugerida vira um imperativo.
Esses processos de aprendizagem devem ser teóricos e práticos. As pessoas podem ler livros e artigos, assistir vídeos e filmes, ouvir palestras ou tomar aulas, mas devem, sobretudo, conversar. Pode-se organizar cursos de democracia, desde que se tenha em mente que o fundamental é a interação entre os aprendentes e não a transmissão de conteúdo por meio de ensinagem.
Agentes democráticos nascem em redes democráticas. E essas redes, articulando pessoas em processo (permanente: já foi comparado a uma espécie de hemodiálise) de aprendizagem da democracia, têm que fazer alguma coisa para que mais pessoas sejam positivamente contaminadas com as ideias e as práticas democráticas.
Aqui muitas coisas podem ser feitas, desde ministrar palestras sobre democracia nas instituições de ensino e em outras organizações do Estado, da sociedade ou do mercado, passando por organizar sessões de cinema ou apresentações teatrais em praças, com conversação ao final, até criar ambientes comunitários de livre-aprendizagem sem restrições de entrada (etárias, de escolaridade etc.).
Em segundo lugar é preciso difundir mais amplamente visões democráticas na sociedade. Isso compreende, para citar alguns exemplos de ações possíveis, participar regularmente de programas de rádio e TV com audiência significativa na cidade ou na localidade, fundar um jornal local (digital ou em papel) com análises do que está acontecendo, na localidade, na região, no país e no mundo, de um ponto de vista democrático, fundar uma rádio comunitária e até realizar reuniões e festas – sobretudo festas – em ambiente público e aberto, sempre que possível. A convivência amistosa é a chave. Fazer novos amigos e amigas e incluí-los em redes de conversação democrática é fundamental para ampliar a democracia como modo-de-vida.
Em terceiro lugar pode-se contribuir para renovar o sistema político tal como ele está organizado e funciona. Isso compreende, por exemplo, preparar candidatos comprometidos com a democracia para as próximas eleições, capacitar legisladores e governantes eleitos para exercerem democraticamente seus mandatos, propor mandatos coletivos ou co-vereanças e co-deputanças, e – muito importante – estimular os representantes eleitos para que usem aplicativos que permitam o surgimento de novos mecanismos de interação democrática dos cidadãos na esfera pública
Em quarto lugar, publicizar os espaços urbanos, apenas nominalmente públicos (porque sob a guarda do Estado), em ambientes efetivamente públicos, por exemplo, estimulando a construção ou recuperação de equipamentos urbanos que facilitem a convivência (praças, bancos, sombras, calçadas, calçadões etc.) e ocupando as praças existentes para configurar ambientes comuns (é a geração social de commons).
Em quinto lugar é bom estabelecer um vínculo entre a defesa da democracia e a criação de ambientes sociais favoráveis ao desenvolvimento. Aqui pode-se fazer inúmeras coisas. Por exemplo, um levantamento dos ativos democráticos de uma localidade ou setor de atuação, criar (e testar) novos indicadores locais e setoriais de democracia, instalar sessões de cocriação de soluções (tipo festivais de ideias e projetos) para os problemas da cidade, do bairro e das organizações locais e promover o desenvolvimento local.
Em sexto lugar, como a democracia é um processo de desconstituição de autocracia, pode-se construir sistemas de detecção precoce de processos de desconsolidação ou de erosão da democracia. Pode-se fazer levantamentos, contínuos ou intermitentes, dos sinais de avanço do autoritarismo em uma localidade ou setor de atividade (por exemplo, monitorando a porcentagem de pessoas que aderem à alternativas populistas).
Em sétimo e ultimo lugar – mas talvez o mais importante para a democracia como modo-de-vida – é preciso inovar. Aqui não se sabe, de antemão, o que poderá ser inventado (do contrário não seria inovação). Uma pista, porém, é experimentar mudanças democráticas na gestão de organizações da localidade (do Estado, da sociedade ou do mercado), trocando a lógica da escassez pela lógica da abundância nos procedimentos internos de organizações da localidade e promovendo a transição de hierarquia para rede (mais distribuída do que centralizada).
Como foi dito, são apenas sugestões. A manifestação das potencialidades criativas da democracia é imprevisível e não segue nenhum roteiro de ações planejadas de antemão (quer dizer, antes da interação).
O importante é não esquecer novamente o que foi esquecido e aqui está sendo relembrado: que a democracia só surgiu porque se conformou uma rede – mais distribuída do que centralizada – de pessoas para conversar na praça sobre seus assuntos comuns.
Ora, rede pode ser definida como a existência de múltiplos caminhos. A menor estrutura capaz de fazer isso – a menor molécula social – é uma rede de três pessoas. Semente de rede é rede. Bastam três pessoas para começar.
Notas
(1) Para entender isso é necessário perceber que existem neste século dois tipos de autocracia: as eleitorais (o regime mais numeroso do mundo e em expansão, como a Nicarágua e a Índia – além das que foram citadas no parágrafo acima do que leva esta nota) e as não-eleitorais (remanescentes ainda das velhas ditaduras do século 20, como Cuba e Coréia do Norte). E que existem também dois tipos de democracia: as liberais (como a Suécia e a Nova Zelândia) e as (apenas) eleitorais (como a Argentina e o Brasil). Esta é a classificação do V-Dem, da Universidade de Gotemburgo. Cf. Anna Lührmann, Marcus Tannenberg & Staffan I. Lindberg. Regimes of the World (RoW): Opening New Avenues for the Comparative Study of Political Regimes. V-Dem Institute, Department of Political Science, University of Gothenburg, Sweden, 2018. Um resumo pode ser lido no artigo A classificação dos regimes políticos do V-Dem; cf. <https://dagobah.com.br/a-classificacao-dos-regimes-politicos-do-v-dem-universidade-de-gotemburgo>
(2) Cf. Larry Diamond (2015), Facing up to the democratic recession, Journal of Democracy Volume 26, Number 1 January 2015 © 2015 National Endowment for Democracy and Johns Hopkins University Press. Cf. <https://www.democracia.org.br/facing-up-to-the-democratic-recession-o-artigo-historico-de-larry-diamond>
(3) Roberto Stefan Foa e Yascha Mounk (2016-2017) detectaram a desconexão e a desconsolidação democráticas dos últimos anos. Baseados em recentes pesquisas, eles viram que as novas gerações não têm, crescentemente, percebido as vantagens da democracia em comparação com regimes autoritários. Cf. <https://www.democracia.org.br/a-desconexao-democratica> e <https://www.democracia.org.br/os-sinais-de-desconsolidacao>
(4) Anna Lührmann e Staffan Lindberg (2019), juntamente com o pessoal do V-Dem (da Universidade de Gotemburgo), têm analisado a terceira onda de autocratização em que estamos imersos a partir de meados da década de 1990. Eles mostraram que, nesta terceira onda que nos assola, a maioria das democracias não morre mais por invasão estrangeira, golpes militares ou autogolpes e sim por erosão democrática. “A erosão democrática tornou-se a tática comum durante a terceira onda de autocratização. Aqui, os titulares acessam legalmente o poder e gradualmente, mas substancialmente, minam as normas democráticas sem abolir as principais instituições democráticas. Tais processos representam 70% na terceira onda de reversão democrática”. Cf. <https://www.democracia.org.br/uma-terceira-onda-de-autocratizacao-esta-aqui-o-que-ha-de-novo-nisso>
(5) Yascha Mounk e Jordan Kyle (2018) avaliaram empiricamente o estrago que o populismo faz na democracia. Eles mostraram que o governo populista – seja da direita ou da esquerda – tem um efeito altamente negativo sobre os sistemas políticos e leva a um risco significativo de erosão democrática. Seu estudo conclui que os populistas duram mais no cargo, geralmente deixam o cargo em circunstâncias dramáticas, são muito mais propensos a prejudicar a democracia, frequentemente erodem os freios e contrapesos ao executivo e atacam os direitos individuais. Cf. <https://www.democracia.org.br/o-estrago-que-o-populismo-faz-na-democracia-uma-avaliacao-empirica>
(6) Cf. Roberto Stefan Foa (2018), “Modernization and Authoritarianism”, Journal of Democracy, Volume 29, Número 3, Julho de 2018. © 2018 National Endowment for Democracy and Johns Hopkins University Press. Tradução disponível em: <https://dagobah.com.br/foa-modernizacao-e-autoritarismo>
(7) Cf. Deborah Gordon (2018), Local links run the world. Aeon (01/02/2018). Disponível em < https://aeon.co/essays/the-most-important-connection-in-any-network-is-the-local>
(8) Para inspirar a aventura de construir uma “tradição” democrática pode-se acompanhar a vida e a obra dos democratas atenienses: Clístenes, Efialtes, Péricles, Aspásia e, sobretudo, os sofistas, como Protágoras, Antífon, Crátilo, Górgias, Hípias, Pródigos, Trasímaco, talvez Alcídamas, Licofronte e o Anônimo Jâmblico. E todos aqueles que, mais de dois milênios depois, lograram captar pedaços do “DNA” democrático; e. g. Spinoza, Locke, Montesquieu, Rousseau, Jefferson e os Federalistas, Paine, von Humbolt, Constant, Tocqueville, Mill, Dewey, Popper, Arendt, Berlin, Havel, Lefort, Bobbio, Castoriadis, Maturana, Rawls, Dahrendorf, Sen, Dahl, Rancière… É possível juntar esses pedaços e acrescentar outros.
(9) Cf. Jordan Kyle & Limor Gultchin (2018), Populists in Power Around the World. Tony Blair Institute for Global Change, 2018. Pode-se ler uma tradução livre disponível em <https://dagobah.com.br/populistas-no-poder-ao-redor-do-mundo-traduzido>
Este é o texto-base, de novembro de 2021, sobre o que o think tank Democracia, Cidadania e Liberdade do Instituto Jatobás entende por democracia quando toma a iniciativa de lançar uma Escola de Agentes Democráticos.
Há um folder em PDF que pode ser baixado aqui: AGENTE DEMOCRÁTICO