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Por que não há utopias democráticas

Fiz uma nova lista de 12 romances distópicos do ponto de vista da democracia (Jerome, Zamyatin, Huxley, Koestler, Orwell, Bradbury, Golding, Soljenítsin, Herbert, Atwood, Wallace).

Meu objetivo é estruturar um programa de reconhecimento de padrões autocráticos para aprender democracia pelo avesso.

Eis a lista completa (com os nomes das obras, respectivos autores e datas de publicação):

A nova Utopia de Jerome K. Jerome (1891)

Nós de Yevgeny Zamyatin (1921)

Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley (1932)

O Zero e o Infinito (Dakness at Noon) de Arthur Koestler (1941)

A Revolução dos Bichos de George Orwell (1945)

1984 de George Orwell (1949)

Fahrenheit 451 de Ray Bradbury (1953)

O Senhor das Moscas de William Golding (1954)

Um dia na vida de Ivan Denisovich de Alexander Soljenítsin (1962)

Duna de Frank Herbert (1965)

O Conto da Aia de Margaret Atwood (1985)

Star Wars: Manual do Império de Daniel Wallace (2015)

Procurei, mas não achei 1 (um) só romance “utópico” do ponto de vista da democracia (ainda que a democracia não seja uma utopia e toda utopia seja uma distopia).

Mas falo de um livro de ficção que antevisse como seria uma sociedade onde a democracia fosse não apenas regime político, mas também modo-de-vida (ou de convivência social; ou seja, onde a democracia não fosse apenas a regra do jogo, mas o jogo).

A coisa mais parecida com isso está no passado: são as tentativas precárias e incertas de reconstrução da vida em Atenas nos trinta anos de relativa paz do século 5, entre o fim das guerras com os persas e o início da guerra com os espartanos (462-431 a. C.). Não é curioso?

As utopias clássicas também são, não-raro, distópicas (como as de More, de Campanella, de Bacon, de Marx, de Morris, de Wells, de Clark) ou retrópicas (como a República de Platão).

Eis a lista incompleta (com nomes das obras, autores e datas), mas exemplificativa:

A Utopia de Thomas More (1516)

A Cidade do Sol de Tommaso Campanella (1602)

A Nova Atlântida de Francis Bacon (1624)

O Capital de Karl Marx (1848)

Notícias de Lugar Nenhum de William Morris (1890)

A Utopia Moderna de H. G. Wells (1905)

O Fim da Infância de Arthur Clark (1953)

A de Marx, em particular, ao propor uma condição final da humanidade sem Estado – o que, para ele, significava sem política – como notou Hannah Arendt (c. 1950) – não é de maneira alguma utópica: só é pavorosa.

Não há também uma saga filmada sobre isso. Alguém conhece um filme ou série de TV sobre uma futura sociedade democrática?

Não há um Star No-Wars (Sem-Guerra nas Estrelas), não há um Conto Sem-Aias (só com amigos e amigas que pratiquem a ajuda-mútua na concepção e criação dos filhos, nas tarefas cotidianas e – por que não? – na comum-administração das suas cidades).

Não há uma trilogia dedicada à Sintonia, à Sinergia e à Simbiose (meio simétrica à trilogia Divergente, Insurgente, Convergente: aliás, são estranhas e imperfeitas as palavras – se é que existem – para designar agentes “sintonizantes”, “sinergizantes”, “simbiotizantes”).

Não há um Game of Thrones sem tronos e sem reinos, onde a ênfase não está nas lutas pelo poder e sim no próprio game (do tipo Amar e Brincar como fundamentos esquecidos do humano, para lembrar o saudoso Maturana).

Ninguém faz uma série desse tipo onde a temática principal seja a democracia. Tudo no cinema e na TV gira em torno da repetição de padrões autocráticos da civilização patriarcal, suas tradições ancestrais, seus símbolos arcaicos, seus papéis hierárquicos, seus valores e, inclusive, seus artefatos: reis e rainhas, monarquias absolutistas, guerra, mutilação, tortura e morte; ordem, hierarquia, disciplina, obediência, fidelidade, pactos de sangue, pureza genética e vínculos parentais (nas primeiras temporadas de Game of Thrones uma das palavras mais frequentes foi “bastardo”); tronos, coroas, cetros, bastões e espadas.

Como esperar que um jovem, hoje na faixa de 20 a 30 anos, que passou toda sua vida sendo inoculado com esses vírus (sim, os padrões são malwares, programas maliciosos), possa entender a valorizar a democracia como uma brecha aberta na cultura patriarcal? Como esperar que ele possa assimilar o valor da liberdade como liberdade de ser infiel, de andar sem rumo, ao léu, abandonado ao fluxo interativo da convivência social, sem um propósito, um objetivo, uma utopia (entendendo que a distopia dos White Walkers é tão maléfica quanto qualquer utopia dos reinantes de Westeros)?

A pergunta é: por que ninguém escreve uma coisa assim? Por que não aparece um George Martin democrata escrevendo, em vez de uma fantasia épica, como As Crônicas de Gelo e Fogo, devaneios líricos?

Sim, exercícios líricos, onde no lugar das guerras pela posse de um trono de ferro ocorrem miríades de empreendimentos colaborativos, construtivos, investigativos ou, simplesmente, manifestações singulares da livre sexualidade e da imaginação criadoras?

Quem conseguir responder essa pergunta entenderá mais profundamente o drama milenar da democracia numa civilização patriarcal.


P. S. A democracia não pode mesmo ter utopia. A “utopia” democrática não vem depois de alguma coisa. Não é o fim dos carecimentos e limitações, mas um modo de lidar com eles (hoje, não amanhã), se é que vocês estão me entendendo.

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