As pessoas, em geral, têm dificuldade de entender a democracia porque confundem os atributos de um regime político com o desempenho de um governo. E aí tendem a achar que se um bom governo é aquele que dá “casa, comida e roupa lavada” para a população, não é tão relevante assim que o regime político vigente no país onde isso acontece seja mais ou menos democrático; ou, até, autocrático.
Eis algumas perguntas que muitas pessoas fazem (ou se fazem):
Se o papel da democracia não é dar casa, comida e roupa lavada para todos (ou para os pobres), para quê então democracia? Não seria melhor ter um tirano bondoso, como o sultão de Brunei?
Para quê democracia se o povo está passando fome? Não seria melhor viver como o gado confinado holandês (comida boa e na hora, assistência de saúde, proteção contra a chuva e o frio e até música clássica para produzir mais leite)?
A manutenção da vida não é mais importante do que a liberdade? Não seria melhor sacrificar um pouco da nossa liberdade hoje para ter o básico (comida, saúde, educação, segurança, moradia e transporte)? Não é melhor sobreviver hoje para lutar por liberdade amanhã?
Por que essa mania de ficar querendo liberdade? Liberdade enche a barriga de alguém? Liberdade garante assistência de saúde? Liberdade serve para conseguir uma moradia boa, transporte eficiente e segurança pública? A China está no caminho de dar tudo isso à sua população. Não é melhor do que liberdade?
O que adianta o Brasil ser uma democracia (conquanto apenas eleitoral) com uma renda per capita de 14 mil dólares? Não seria melhor ser uma autocracia, como Brunei, com uma renda per capita de 70 mil dólares? Ou como Singapura, como uma renda per capita de mais de 93 mil dólares?
Como dizer a essas pessoas que democracia não é propriamente sobre governo e sim sobre controlar o governo?
Que democracia é justamente o contrário do que a China está fazendo (inclusive ao falsificar o próprio conceito de democracia).
Que mesmo que um governo dê “casa, comida e roupa lavada” para toda a população, se não houver liberdades civis, ele não será democrático: nem aqui, nem na China. Ou seja, que não há democracia – nenhum tipo de democracia – sem liberdades civis.
Bem… mas alguma relação deve haver entre bem-estar material da população e democracia. O bem-estar material da população – disso poucos duvidam – está correlacionado à renda per capita.
É bom estudar então a correlação entre renda per capita e democracia. Vamos usar o Democracy Overall Score 2022 da The Economist Intelligence Unit.
Analisem o gráfico abaixo:
Os países mais democráticos, salvo algumas exceções (pontos longe da curva), são os que têm maior renda per capita (e são os menos desiguais). O que leva alguns à conclusão de que esses países são (ou podem ser) mais democráticos porque são (os) mais ricos. Caberia questionar se eles sempre foram ricos. Ou se instalaram ditaduras para ficar mais ricos e só depois se democratizaram.
Ocorre que mais renda e menos desigualdade não caíram do céu. Foram conquistadas, na maioria dos casos, com mais democracia (ainda que não se possa afirmar que isso aconteceu por causa da democracia).
Vejam as democracias liberais dentro do círculo vermelho. Coincidentemente são aquelas em que o PIB Per Capita (US$ PPT 2020) é maior.
Países com renda per capita (US$ PPP 2020), acima de 60K
4 DEMOCRACIAS LIBERAIS
Noruega (63.548)
Suíça (68.755)
Irlanda (90.789)
Luxemburgo (112.557)
3 AUTOCRACIAS
Emirados Árabes Unidos (63.299)
Qatar (85.290)
Singapura (93.397)
Países com renda per capita (US$ PPP 2020), acima de 50K
10 DEMOCRACIAS LIBERAIS
Suécia (50.923)
Alemanha (51.423)
Islândia (52.376)
Holanda (54.324)
Dinamarca (55.820)
EUA (59.920)
Noruega (63.548)
Suíça (68.755)
Irlanda (90.789)
Luxemburgo (112.557)
1 DEMOCRACIA ELEITORAL
Austria (51.858)
3 AUTOCRACIAS
Emirados Árabes Unidos (63.299)
Qatar (85.290)
Singapura (93.397)
Países com renda per capita (US$ PPP 2020), acima de 40K
18 DEMOCRACIAS LIBERAIS
Japão (40.232)
França (42.321)
Coreia do Sul (42.336)
Reino Unido (42.676)
Nova Zelândia (42.775)
Canadá (46.064)
Finlândia (47.154)
Bélgica (48.770)
Suécia (50.923)
Alemanha (51.423)
Islândia (52.376)
Holanda (54.324)
Dinamarca (55.820)
EUA (59.920)
Noruega (63.548)
Suíça (68.755)
Irlanda (90.789)
Luxemburgo (112.557)
1 DEMOCRACIA ELEITORAL
Austria (51.858)
7 AUTOCRACIAS
Barein (41.481)
Arábia Saudita (44.328)
Kuwait (44.847)
Hong Kong (56.154)
Emirados Árabes Unidos (63.299)
Qatar (85.290)
Singapura (93.397)
Vejam que só há uma democracia liberal com renda per capita (US$ PPP 2020) próxima (ou comparável) à do Brasil (14.064), que é uma democracia apenas eleitoral: Botswana (14.655) e mesmo assim ainda um pouco maior. Depois vêm:
Ilhas Maurício (19.463)
Costa Rica (19.903)
Uruguai (21.608)
Chile (24.325)
Grécia (27.073)
Latvia (30.100)
Estônia (35.257)
Espanha (36.211)
Chipre (38.816)
Itália (39.073)
Israel (39.056)
Japão (40.232)
França (42.321)
Coreia do Sul (42.336)
Reino Unido (42.676)
Nova Zelândia (42.775)
Canadá (46.064)
Finlândia (47.154)
Bélgica (48.770)
Suécia (50.923)
Alemanha (51.423)
Islândia (52.376)
Holanda (54.324)
Dinamarca (55.820)
EUA (59.920)
Noruega (63.548)
Suíça (68.755)
Irlanda (90.789)
Luxemburgo (112.557)
Todavia, a questão não está resolvida. Porque o problema, como foi mencionado, é que não se pode afirmar que foi a democracia que “causou” uma maior renda per capita ou vice-versa. A correlação existe, mas é fraca, como se pode ver no gráfico acima, em que o coeficiente de determinação é 0,42479. Há muita dispersão em relação à linha mediana.
Ora, se é assim, então devemos procurar correlações entre i) as condições que levaram a um aumento dos índices de democracia e ii) as condições que levaram a um aumento do PIB per capita.
Nossa hipótese, já bem antiga, é que a única variável relevante que está presente nesses dois conjuntos de condições é o chamado ‘capital social’.
Aqui começa tudo. E tudo, como veremos, começa (e termina) com a liberdade.
Este artigo continua…