O passado não determina o futuro: desconstruindo as três razões pedestres contra o impeachment de Bolsonaro
Comecemos examinando três “verdades” construídas pela repetição:
1) Se a popularidade de um presidente não cair abaixo de 15%, não há impeachment.
2) Sem o apoio do grande capital financeiro, não há impeachment.
3) Sem gigantescas manifestações de rua, não há impeachment.
Não há ciência nenhuma aqui. Não existem leis em política. Apenas convicções de que o que aconteceu no passado determina o que acontecerá no futuro.
Foi assim que, guiando-se pela experiência passada, nenhum analista político previu a bancarrota da União Soviética em 1991.
Ora, nenhum processo de impeachment acontece. Nós o fazemos (ou não fazemos). Sem campanha pelo impeachment, não há impeachment. Com a campanha, as três condições exigidas (as tais “verdades” construídas, que são usadas como fatores desmobilizadores) podem se constelar.
A CONVERSA MOLE DOS ÍNDICES DE POPULARIDADE
Desconstruindo a primeira “verdade”
Todo líder populista tem altos índices de popularidade. Ou, dizendo de outro modo, o populismo (diga-se de direita ou de esquerda) precisa de fürers, de duces, de condutores de rebanhos (com alta gravitatem). Lula, por exemplo, chegou a alcançar 87% de popularidade em dezembro de 2010 (bem antes de ser preso).
O bandido político Fujimori, do Peru, chegou a ter 70% de popularidade (também antes de ser preso). Chávez e Maduro (antes de virar ditador) tiveram altíssimos índices de popularidade. O mesmo se pode dizer de Evo, Correa e Ortega (antes e depois de virar ditador).
Portanto, não devemos nos impressionar com a popularidade de Bolsonaro, de Orbán, de Erdogan ou de Trump. Trump, aliás, mesmo com índices maiores do que os de Bolsonaro, perdeu a eleição para Biden. E perdeu não porque Biden tivesse altíssimos índices de popularidade e sim porque o processo democrático (o processo de formação da opinião pública) desconstituiu sua liderança autoritária.
O populista-autoritário Bolsonaro deve nos surpreender, mas não porque tenha altos índices de popularidade. Ele destoa exatamente por ter índices muito baixos de popularidade. Em dezembro de 2020 tem menos de 40% – ou seja, a menor, no mesmo período de governo, de todos os presidentes do Brasil (com exceção de Collor).
O processo democrático no Brasil, tal como aconteceu nos Estados Unidos, pode facilmente desconstituir a popularidade de Bolsonaro (que já é baixa para um populista).
Os que se impressionam com índices de popularidade desconhecem que a opinião pública não é a soma das opiniões privadas. Se fosse, não teria nenhum papel o processo democrático. Bastaria consultar as pessoas de casa em casa sobre suas preferências. Aí não haveria necessidade de política: poderíamos contratar institutos de pesquisas de opinião e resolver tudo.
Se houver processo político livre, a alta popularidade de líderes populistas não resiste por muito tempo. É por isso que os populistas atacam as instituições da democracia e seus sistemas de freios e contrapesos, a liberdade de imprensa, a independência do judiciário e investem contra outros direitos políticos e liberdades civis. Porque eles sabem que a manutenção de seu controle sobre a sociedade é vulnerável ao exercício da política democrática.
O MITO DO MERCADO
Desconstruindo a segunda “verdade”
Essa conversa recorrente de que o “mercado” isso, o “mercado” aquilo, é uma figura de linguagem (e de pensamento). O mercado, stricto sensu, é um modo de agenciamento (assim como o Estado e a sociedade), não um ator político. Mentalidades impressionáveis (e pouco analíticas) repetem que quem comanda tudo é sempre o dinheiro. Como os donos do dinheiro comporiam “o mercado”, então pronto. Se “o mercado” não estiver a favor da queda de um presidente, ele não cai. E um chefe de governo só continua no posto porque, supostamente, conta com o apoio de “o mercado”.
Percebe-se aqui traços de uma visão conspiratória da política. Todos seríamos marionetes conduzidas pelas mãos do poder econômico. Este, sim, seria o verdadeiro (e único) poder. Tudo aconteceria (ou não aconteceria) de acordo com a vontade daqueles que manipulam os cordéis.
Também há aqui elementos de uma visão economicista da história. A economia é a verdadeira estrutura que determina em última instância o que vai acontecer na superestrutura (a política, a cultura etc.).
Ora, se fosse assim não se explicaria a ascensão do nazismo nos anos 20 e 30 do século passado. É de duvidar que os banqueiros que controlam tudo quisessem colocar no poder um maluco disposto a incendiar o mundo. Seria ruim para os negócios.
Quando se fala no Brasil que “o mercado” quer isso, que “o mercado” quer aquilo, está na verdade se falando que os operadores do mercado financeiro, os banqueiros e, em especial, os faria limers e que tais, querem isso ou aquilo. E, de fato, esses operadores apoiaram e ainda apoiam Bolsonaro (no início acreditando na mentirosa promessa de Guedes, agora já não se sabe bem por quê). Mas se houver um movimento de opinião pública contrário a Bolsonaro e favorável ao seu impedimento, é duvidoso que eles apostem tudo na manutenção de um governante indesejável.
Ou seja, se houver uma campanha do impeachment, ela também poderá mudar o comportamento dessa entidade imaginária chamada de “o mercado”.
MANIFESTAÇÕES DE RUA NÃO SÃO CONDIÇÕES SINE QUA NON
Desconstruindo a terceira “verdade”
O passado não determina o presente. O fato do impeachment de Collor e do impeachment de Dilma terem sido precedidos por amplas manifestações de rua, não implica necessariamente que o impeachment de Bolsonaro não ocorrerá se não acontecerem manifestações equivalentes.
Governos também caíram quando não havia manifestações de rua. Às vezes caíram, em democracias, quando perderam a base parlamentar. E, às vezes, em autocracias, caíram quando nem existiam ruas, como foi o caso de algumas bem-sucedidas revoltas camponesas.
É claro que, em democracias, manifestações de rua ajudam muito. E ajudam, sobretudo, a pressionar o parlamento para que, ele sim, aprove o impeachment de um governante. Foi, aliás, o que aconteceu aqui com Collor e Dilma. Em democracias multidões não podem invadir os palácios e retirar à força governantes eleitos de suas cadeiras.
Mas o parlamento também pode ser pressionado por outras formas de luta e de campanha. Por exemplo, pelos meios de comunicação – ecoando as opiniões de amplas parcelas da sociedade. Outro exemplo, pela pressão direta dos eleitores, em avalanches de mensagens dirigidas aos seus eleitos e pela denúncia pública dos nomes dos que ainda querem manter um meliante no poder.
E, ao que se saiba, panelaços e carreatas não colocam em risco a vida de ninguém. Um panelaço por dia, uma carreata por dia, em várias cidades: tudo isso mostrado pela mídia em cadeia nacional, não terá nenhum efeito?
Na medida em que mais e mais pessoas falarem do impeachment como um imperativo democrático e, antes, como uma exigência de saúde pública – o impeachment para salvar vidas que Bolsonaro está colocando em risco desnecessariamente, o impeachment por razões humanitárias – mais chances uma campanha em prol do impeachment terá de crescer.
A alegação dos que não querem o impeachment por razões egotistas particulares (ou porque estão ganhando alguma coisa neste governo ou porque esperam substituí-lo mais facilmente em 2022) é a seguinte: como, durante a pandemia, seria irresponsável promover aglomerações, então as manifestações de rua estão descartadas e sem grandes manifestações de rua o impeachment não pode acontecer.
Ora… a decisão política sempre antecede às medidas estratégicas e táticas. A pergunta é: os democratas e os humanistas em geral, acham que o impeachment é um imperativo? Se a resposta for sim, então devem começar a articular a campanha do impeachment.
“Ah!… – retrucarão alguns – mas o impeachment não passa na Câmara dos Deputados”. É claro que, agora, não passa mesmo. Do contrário nem seria necessária uma campanha, bastaria colocar um dos cinquenta pedidos de impeachment em votação. A campanha (por definição) é isto: para conseguir os votos que ainda não se tem, não para juntar os votos que já se tem.
A política começa sempre com o juízo político. Depois então vem o exame das condições subjetivas e objetivas. E, por fim, a busca dos meios de realizar o que indicou o juízo político, nas condições (subjetivas e objetivas) presentes. A política não acontece. Nós a fazemos.
Elenquemos os fatos:
1 – Dois anos depois de assumir a presidência Bolsonaro ainda tem índices de popularidade abaixo de 40%.
2 – Não tem maioria no Congresso.
3 – Não consegue juntar nas ruas em seu apoio mais do que poucas dezenas de gatos pingados.
4 – Não entregou suas promessas de campanha e não conseguiu realizar nenhum programa admirável.
5 – Cometeu uma dezena (ou mais) de crimes de responsabilidade.
6 – Não governou para todos, mas comandou uma facção para difundir fake news, perseguir e cancelar opositores e depredar as instituições democráticas.
7 – Aparelhou o governo com incompetentes (civis e, sobretudo, militares), desorganizando a máquina pública.
8 – Se agarrou ao que há de mais fisiológico no parlamento (o fundão do centrão) para sobreviver, tentar evitar o impeachment e proteger sua família criminosa da justiça e da polícia.
9 – Interferiu na Receita Federal, na Polícia Federal, no Coaf, nas Agências Reguladoras e está tentando transformar a Abin em uma polícia política a serviço da sua família e de sua facção.
10 – Negou a pandemia, sabotou o distanciamento social e outras medidas sanitárias que poderiam salvar vidas, ridicularizou o uso de máscaras, fez uma campanha antivacina, mandou fabricar e vendeu remédios falsos contra a Covid-19 e se tornou o principal responsável por dezenas de milhares de mortes que poderiam ser evitadas.
O que ainda estamos esperando para mandar esse cara para casa?
Ou seja, as desculpas procedimentais, baseadas em dificuldades estratégicas e táticas, não podem se sobrepor à decisão política. É correto ou incorreto – dos pontos de vista democrático e humanitário – interromper a trajetória desse facínora o quanto antes: ou seja, em 2021, não em 2022?
Se é correto, o que impede que, pelo menos, tentemos fazer do ano de 2021 – além do Ano da Vacina – o Ano do Impeachment de Bolsonaro?


