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A democracia é daquelas coisas que só se aprende mesmo pelo avesso

O processo de aprendizagem que prepara alguém para ser o que se chamava antigamente de “quadro político” é longo e árduo. A pessoa não aprende lendo livros ou esgrimindo argumentos em mídias sociais. Tem que passar por muitas experiências, algumas delas excruciantes, o que consome algumas décadas. E mesmo assim só uma pequena porcentagem consegue cumprir a função do que se chamaria hoje de “Guardião do Kernel” (talvez algo em torno de 0,01%). E estamos falando de organizações hierárquicas e autocráticas (como os partidos, por exemplo).

Para ser um “quadro político” democrático, quer dizer um agente da polinização ou da fermentação de uma opinião pública democrática, livre como quem não tem rumo, capaz de viver ao léu, sem obedecer a ninguém e sem mandar em ninguém, sem ter quem acima ou abaixo confirme e reconheça seu papel (a não ser os seus sensates, com os quais segue, sem segui-los e ser seguido por eles), desconfia-se que a porcentagem seja menor ainda. Mas, em compensação, o tempo de aprendizagem pode ser bem menor, pois esse aprendente não precisará lutar o tempo todo com seus pares para se afirmar e subir puxando os outros para baixo (como os caranguejos numa lata: ganha-se um tempo extraordinário escapando da seleção social-darwinista que é própria das organizações hierárquicas).

Todavia, o que é de fato essencial nessa, digamos, “formação” do agente democrático, é aprender a reconhecer padrões autocráticos quando eles ainda não estão claramente visíveis.

Para tanto o fundamental não é ler os clássicos (e. g. Spinoza, Rousseau, Jefferson e os Federalistas, Paine, Tocqueville, Mill, Dewey, Popper, Arendt, Lefort, Castoriadis, Maturana, Rawls, Havel, Dahrendorf, Sen, Dahl, Rancière etc.). E também não é estar a par da literatura especializada contemporânea (lendo todos os artigos do Journal of Democracy) ou em dia com os relatórios anuais dos principais centros que monitoram a democracia no mundo (Freedom House, The Economist Intelligence Unit, V-Dem etc.).

Tudo isso é muito importante e útil, mas como aprender democracia é desaprender autocracia, o fundamental é aprender a reconhecer padrões autocráticos, estudando as distopias e observando o que acontece nas ditaduras. Sim, estudar as distopias (e retropias, como a platônica – em A República, O Político e As Leis), as ficcionais (como o Nós de Zamyatin, o 1984 de Orwell, o Duna de Herbert, o Star Wars: Manual do Império de Wallace e até O conto da aia de Atwood) e as reais, quer dizer, as tiranias mais tenebrosas que surgiram na história (para ficar no século 20: a URSS sob Stalin, a China de Mao, a Alemanha de Hitler, o Camboja de Pol Pot, a Coreia do Norte sob a dinastia Kim) – porque é nesses lugares imaginários ou concretos que os padrões autocráticos aparecem em estado puro (ou quase). Na busca das raízes ancestrais da tirania, deve-se investigar as instituições e práticas antipolíticas do tribalismo patriarcalista dório, em Esparta, Creta e Siracusa. Ao fazer isso, pode-se aprender mais democracia do que estudando a história de Atenas no século 5 AEC. A democracia é daquelas coisas que só se aprende mesmo pelo avesso.

Se, a partir daí, o aprendente conseguir perceber esses padrões no exato momento em que eles se manifestam na vida política cotidiana e saber o que fazer para desconstituí-los, então há uma boa chance de ter surgido um novo agente democrático.

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