Quando entrei no Instituto de Física da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 1968, achei que estava realizando um sonho que começou em 1964, numa noite fria de junho, rara naquela cidade. Tinha eu 14 anos de idade. Naquela noite meu pai me levou à Feira do Livro da Cinelândia e me deu de presente um livro de divulgação de Lincoln Kinnear Barnett, O Universo e o Dr. Einstein. Nos anos seguintes tomei aquele livrinho como uma espécie de missal. Me lembro que acordava de madrugava para reler as passagens que achava que não havia entendido direito. Meu propósito era decorar o texto. Não consegui (em compensação, hehe, três anos depois decoraria, este sim, o Eu de Augusto dos Anjos).
O ciclo básico universitário, por óbvio, não começava com teoria da relatividade, mas logo dei um jeito de contornar isso entrando em um grupo heterodoxo que reunia o próprio diretor do Instituto de Física, um professor meio marginalizado no ambiente acadêmico, que investigava o tempo na mecânica quântica e mais dois colegas. Esse grupo, entretanto, além de estar interessado em Einstein (lembro que estudamos até um texto árido de Paul Langevin sobre o tema) passou a se dedicar à filosofia da ciência. Daí fomos parar num apartamento minúsculo, entulhado de livros até o teto, na Cruz Vermelha, onde morava Plínio Sussekind Rocha, que havia sido cassado pelo AI5 no mesmo ano em que entrei na universidade. Tornamo-nos então a última geração dos discípulos de Plínio em filosofia da ciência.
A primeira coisa que Plínio nos disse, a nós três, que éramos ainda estudantes do grupo, é que deveríamos estudar “apesar da universidade”. Aquela foi a senha para que nos desinteressássemos completamente pelas enfadonhas aulas. Eu, por exemplo, passei a não frequentar mais as classes, considerando-as uma perda de tempo diante das investigações urgentes que começamos a fazer. Como eu poderia deixar de esmiuçar o Foundations of Physics, de Mario Bunge e até o Filosofia da Ciência Natural, de Carl Gustav Hempel (traduzido no Brasil, aliás, pelo próprio Plínio) para ir assistir a um cara repetindo aquelas chatices de termodinâmica ou tentando explicar mecânica teórica (chamada de racional), sem nunca ter investigado os Principia. Ademais, em menos de dois anos, já sabíamos – extra-classe – mais sobre mecânica newtoniana do que todos os professores do Instituto. Como eu poderia largar a leitura, dificílima (pelo menos para mim) dos dez volumes do Le Système du Monde, de Pierre Duhem (até hoje, nunca encontrei alguém que tivesse conseguido ler tudo). Conclusão: passei a fazer só as provas (e até a faltar às provas). Houve uma reação do corpo docente, heterodidática, contra nossa rebeldia, mas acredito que fomos protegidos pelo diretor da instituição.
A verdadeira academia, para mim, era composta pelo sodalício que formávamos, em torno do Plínio, até que ele faleceu em 1972. O que me interessava era interagir naquele grupo, praticando a conversação criativa como forma de livre aprendizagem e não ser um paciente do ensino. Depois vi que o que me interessava, a rigor, nada tinha a ver com a universidade. E foi por isso que nunca me tornei, felizmente, um acadêmico. Ou seja, meu segundo “mestre” (algum dia conto sobre o primeiro), se é que posso chamá-lo assim, era um expulso da academia. E eu mesmo, conquanto continuasse matriculado no Instituto de Física, me expulsei em espírito, voluntariamente, com ele.
Essa escolha determinou, de certo modo, tudo que viria depois (1). Não fosse ela teria virado um físico (embora tenha lecionado física por muitos anos, não virei propriamente isso) ou um filósofo racionalista da ciência (2), mas nunca teria conseguido ser um neosofista.
P. S.
ACADEMIA, CIÊNCIA E DEMOCRACIA
No artigo acima (publicado originalmente no Facebook em 25/12/2019) fiz algumas considerações sobre o descompasso entre meus interesses científicos juvenis e o que me oferecia, à época, a universidade. Algumas pessoas não entenderam e acharam que abandonei a ciência. Não! Pelo contrário. Em espírito, digamos assim, abandonei a closed science. A academia platônica e o que foi seu sucedâneo, a universidade, na maior parte do segundo milênio, não tinham a ver propriamente com ciência e sim com filosofia (tal como esse termo foi inventado pela tradição pitagórico-platônica – ou seja, ideologia).
Achei uma nota sobre o assunto publicada em julho de 2019. Quem sabe ela ajude a entender o que disse.
A Academia de Platão formou, pelo menos, nove tiranos e ninguém nos contou isso na escola e na universidade
No final do capítulo 7 de seu extraordinário O Fascínio de Platão (primeiro volume de A Sociedade Aberta e seus Inimigos), Karl Popper (1945) faz um interessantíssimo registro dos resultados do projeto educativo de Platão. Isso é muito relevante porquanto, como o próprio Popper escreve, “tem-se dito, e sempre com verdade, que Platão foi o inventor tanto de nossas escolas secundárias como de nossas universidades”.
O trecho reproduzido abaixo chega a ser surpreendente.
Enquanto fomos levados a acreditar que a Academia de Platão era um lugar devotado ao culto do sublime conhecimento das Formas ou Ideias puras, verdadeira fraternidade dos amantes da sabedoria, não vimos as barbaridades que ali se cometiam.
Ninguém nos disse – nas escolas e universidades – que a academia platônica (modelo de nossas universidades) era, na verdade, um centro político conspiratório contra a democracia.
Como se sabe, Platão, com medo, fugiu de Atenas após a condenação de Sócrates e voltou muito tempo depois, quando a irritação dos democratas atenienses com os ensinos antidemocráticos de seu mestre havia esfriado, para organizar sua academia. O que não sabíamos é que ele, na verdade, fundou uma espécie de centro de formação de tiranos. Sim, a excelsa Academia era uma organização política voltada para destruir a (ou impedir a expansão da) democracia. Tudo muito parecido com o projeto atual de Steve Bannon de fundar uma universidade do populismo (na Cartuxa de Trisulti, a 130 quilômetros de Roma), uma moderna escola de gladiadores para treinar agentes antiglobalistas i-liberais capazes de manter e expandir a atual onda de autocratização que vai devastando o mundo neste início do século 21.
Escreve Karl Popper:
“Na prática, Platão não mostrou demasiado sucesso como seletor de líderes políticos. Tenho em mente não tanto o decepcionante resultado de sua experiência com Dionísio, o Moço, tirano de Siracusa, como a participação da Academia de Platão na vitoriosa expedição de Dio contra Dionísio. Dio, famoso amigo de Platão, foi apoiado nessa aventura por certo número de membros da Academia de Platão. Um deles era Calipo, que se tomou o companheiro de maior confiança de Dio. Dio, depois que se fez tirano de Siracusa, mandou assassinar Heráclides, seu aliado (e talvez seu rival). Pouco mais tarde, foi ele próprio assassinado por Calipo, que usurpou a tirania para perdê-la treze meses após. (Foi ele, por sua vez, assassinado pelo filósofo pitagórico Leptines.) Mas este acontecimento não foi o único dessa espécie na carreira de Platão como mestre. Clearco, um dos discípulos de Platão (e de Isócrates), fez-se tirano de Heracléia, depois de haver-se apresentado como um líder democrático. Foi assassinado por um seu parente, Quíon, outro membro da Academia de Platão. (Não podemos saber como Quíon, que alguns retratam como um idealista, teria agido, pois foi logo morto). Estas e outras experiências similares de Platão (*) — que se podia gabar de um total de pelo menos nove tiranos entre seus discípulos e companheiros de outrora — lançam luz sobre as dificuldades peculiares relacionadas com a seleção de homens que devam ser investidos de poder absoluto. É difícil encontrar um homem cujo caráter esse poder não corrompa. Como diz Lord Acton: todo poder corrompe, e o poder absoluto corrompe de forma absoluta”.
(*) Trechos da Nota 25 de Popper:
“A Academia era famosa por educar tiranos. Entre os discípulos de Platão estavam Cairon, mais tarde tirano de Pele, Eurasto e Corisco, tiranos de Esquépsis (perto de Atarneu), e Hermias, mais tarde tirano de Atarneu e Assos. Hermias, segundo algumas fontes, foi discípulo direto de Platão; de acordo com a chamada “ Sexta Carta Platônica”, cuja autenticidade é discutível, talvez ele fosse apenas um admirador de Platão disposto a aceitar seus conselhos. Hermias tornou-se protetor de Aristóteles e do terceiro diretor da Academia, o discípulo de Platão, Xenócrates. [Veja-se ainda] Perdicas III e suas relações com o aluno de Platão Eufaco, onde também se fala de Calipo como discípulo de Platão… Esta fraqueza fundamental permanece na teoria do ditador benevolente, teoria que ainda floresce mesmo entre alguns democratas. Tenho em mente a teoria da personalidade dirigente cujas intenções visam ao melhor para seu povo e em quem se pode confiar. Mesmo se esta teoria fosse aceitável, mesmo que pudéssemos crer que um homem conseguisse continuar, sem ser controlado ou contrabalançado, em tal atitude, como admitiríamos que ele encontrasse um sucessor da mesma rara excelência?”
Acrescento agora. A Academia de Platão foi uma espécie de reação ao livre-pensamento de alguns dos pré-socráticos e, sobretudo, de boa parte dos sofistas (estes sim, os antepassados dos que, depois, fomos chamar de cientistas) e uma alternativa privada à polis democrática ateniense. A academia platônica, em particular, foi um refúgio, para os que queriam se proteger da democracia (e, desgraçadamente, um centro de formação para os que queriam combatê-la).
(1) Como me relaciono com muita gente, sempre aparece alguém me perguntando qual a minha “formação”. Ora… a esta altura da vida posso dizer que estou mais focado nas minhas deformações, pois foram elas que fizeram de mim o que sou (ou estou sendo neste momento) e que farão de mim o que serei. Não as formações (ou formatações).
Assim, escrevo e publico sobre educação, mas não tenho nenhuma formação no tema. Se tivesse, nunca teria sido capaz de imaginar uma visão não-cognitivista da aprendizagem. Nem nunca teria percebido que há uma aprendizagem tipicamente humana diferente da aprendizagem dos seres vivos e das máquinas ditas inteligentes.
E escrevo e publico sobre política sem nunca ter tido formação em “ciência” política (como se fosse possível haver uma ciência política). Se tivesse uma formação em política jamais teria descoberto que a democracia é um erro no script da Matrix ou uma janela para o simbionte (social) — em prefiguração — poder respirar.
E escrevo sobre desenvolvimento (sobretudo glocal) sem ter tido formação de economista ou sociólogo. Se fosse (tivesse formação em) qualquer uma dessas coisas, não teria imaginado que o desenvolvimento é uma espécie de metabolismo da rede social.
Na verdade escrevo sobre muita coisa, e não poderia fazê-lo se tivesse alguma formação. Só é possível inovar em qualquer campo a partir de uma deformação.
O que faço não é mais do que interpretar o que vejo a partir das minhas investigações sobre redes. Então não importa o campo do conhecimento que enfoco em cada momento, penso sempre como seria tal ou qual evento (tudo é evento no mundo) se o padrão de organização não fosse centralizado (hierárquico) e sim distribuído (ou em rede). Para tanto eu deformo aquilo que foi formado.
Foi assim que virei um especialista em nada.
(2) Nunca tive paciência para colecionar títulos e diplomas. Mas numa rápida busca no Google (em dezembro de 2019), achei 30 teses de mestrado ou doutorado onde meus livros e artigos são citados como referências no tema capital social (ou redes). Salvei. Não me salvará, mas é bom ver que as ideias andam.
Minha bio-bibliografia está aqui: http://augustodefranco.org
Na Estante Virtual achei vários dos meus livros em papel (faltam muitos, mas já é alguma coisa):


