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“Receita” para fazer um empreendimento colaborativo

Depois de duas décadas investigando os condicionamentos recíprocos entre padrões de organização e modos de regulação de conflitos, cheguei à conclusão de que há uma correspondência entre redes (mais distribuídas do que centralizadas) e democracia (não apenas como modo político de administração do Estado e sim também – e, no caso, principalmente – como modo-de-vida).

Não que redes “produzam” democracia, automaticamente, sem política. E sim que modos democráticos só podem perdurar em padrões de organização com algum grau de distribuição.

Mas o mais importante, talvez, é que em redes distribuídas (ou mais distribuídas do que centralizadas) a colaboração é o único modo de realizar uma ação coletiva: não podendo mandar nas pessoas (pois só se pode mandar, exercer o poder, se houver a possibilidade de excluir nodos, cortar conexões e separar ou desatalhar clusters – e isso só é possível em padrões de organização mais centralizados do que distribuídos, ou seja, hierárquicos), a atividade coletiva exige a colaboração. E que, assim, ensaiar a democracia como modo-de-vida (ou melhor, de convivência social) exige mais cooperação do que competição. A cooperação aqui não é um princípio moral, uma norma ética, uma virtude, e sim uma contingência do padrão de organização.

Para quem não sabe a diferença entre topologias centralizada, descentralizada e distribuída, o velho diagrama de Paul Baran (1964), sempre traz algum esclarecimento:

Pois bem. Com o tempo fui descobrindo que movimentos de desconstituição de autocracia (que são a democracia propriamente dita, ou seja, os processos de democratização) são acompanhados por movimentos de desconstituição de hierarquia. E a hierarquia é o padrão B (os casos A e C são casos matemáticos limite), no diagrama de Baran (reproduzido acima). Mas convencionamos chamar de ‘rede’ aos padrões descentralizados, porém mais distribuídos do que centralizados e chamar de ‘hierarquia’ aos padrões descentralizados, porém mais centralizados do que distribuídos.

A democracia pode se democratizar em redes com alto grau de distribuição (e, consequentemente, com altos graus de conectividade e interatividade). Dizendo de modo mais preciso: os processos de democratização tenderão a ter continuidade na medida em que as sociosferas onde ocorrem forem adquirindo uma topologia mais distribuída do que centralizada.

Porque a democracia é uma espécie de “metabolismo” da rede social, cujo “corpo”, a estrutura, o hardware, é dado pelo padrão de organização. Mas esse “metabolismo”, essa dinâmica do modo de regulação, não é uma imanência, não emerge automaticamente da estrutura, em função do seu padrão de organização. Democratização (do modo de regulação) e distribuição (da rede) acontecem ao mesmo tempo, ou melhor, são fenômenos acompanhantes, sinergicamente acompanhados um do outro, mas não causados um pelo outro.

O padrão de organização condiciona possibilidades. Quanto mais centralizada for a topologia da rede, menos chance terá o processo de democratização de prosseguir. Mas mesmo em padrões mais distribuídos do que centralizados, ainda assim é necessário que haja ação política para instaurar modos de regulação crescentemente democráticos. Ações políticas democratizantes, entretanto – eis o ponto – ou serão acompanhadas por mudanças estruturais que tornem a rede mais distribuída ou terão menos chances de prosseguir (e de perdurar).

Não que o padrão de organização, por si só, sem ação política, seja capaz de gerar um determinado modo de regulação, mas topologias mais centralizadas do que distribuídas se sintonizam com dinâmicas mais autocráticas do que democráticas. O exemplo clássico, entre nós, foi a chamada Democracia Corinthiana, aquele movimento surgido na década de 1980 no Corinthians, liderado por Sócrates, Wladimir, Casagrande e Zenon. A Democracia Corinthiana pôde ser instalada, pela ação política de seus agentes, mas não pôde perdurar na medida em que o time (Corinthians) tinha uma topologia mais centralizada do que distribuída.

Ora, tornar a rede mais distribuída significa, exatamente, desconstituir hierarquia. Assim como a democracia pode ser tomada, no sentido “forte” do conceito, como movimento de desconstituição de autocracia, as redes distribuídas podem ser tomadas como movimentos de desconstituição de hierarquia, sendo que esses processos estão ligados, não por causalidade direta nem automática e sim por condicionamentos recíprocos.

Pode-se dizer, parodiando Hannah Arendt, que tanto a expansão da liberdade quanto a incidência da cooperação (que ocorre na medida em que a rede se torna mais distribuída) são atributos do modo como os seres humanos se organizam (e nada mais). Mas não há uma fórmula organizativa capaz de produzir automaticamente liberdade sem política. É o processo político de desconstituir autocracia que amplia os graus de liberdade. E é o processo de netweaving, de desconstituir hierarquia, que amplia a cooperação.

E aqui devo reconhecer a imensa contribuição de John Dewey à teoria política da democracia ao propor as bases de uma democracia cooperativa. Já tive a oportunidade de prestar essa homenagem a Dewey quando traduzi e publiquei no Brasil, em 2008, o livro Democracia cooperativa: escritos políticos escolhidos de John Dewey (1). Até aquela época os escritos políticos de Dewey não estavam traduzidos em português e eram praticamente desconhecidos no Brasil pelos não especialistas.

Na introdução ao livro, interpretando o pensamento de Dewey – e com a ajuda de Axel Honneth (1998) (2) – escrevi:

“A liberdade do indivíduo depende de relações comunicativas (cada cidadão só pode atingir autonomia pessoal em associação com outros), mas o indivíduo só atinge liberdade quando atua comunitariamente para resolver um problema coletivo, o que exige – necessariamente – cooperação (voluntária). Há portanto, uma conexão interna entre liberdade, democracia e cooperação. Isso evoca um outro conceito (deweyano) de esfera pública, como instância em que a sociedade tenta, experimentalmente, explorar, processar e resolver seus problemas de coordenação da ação social. Assim, é somente a experiência de participar voluntária e cooperativamente em grupos para resolver problemas e aproveitar oportunidades, que pode apontar para o indivíduo a necessidade de um espaço público democrático. O indivíduo como participante ativo de empreendimentos comunitários – tendo consciência da responsabilidade compartilhada e da cooperação – é o agente político democrático (no sentido “forte” do conceito)”.

Pois bem. Disso tudo, imagino, pode sair uma “receita” simples para realizar qualquer empreendimento colaborativo, que talvez se aplique a organizações, sobretudo àquelas que não são presididas por uma racionalidade estatal (normativa) ou mercantil (competitiva). Ou seja, essa receita deveria valer para as organizações da sociedade civil.

Em primeiro lugar, a confiança. Não desconfiar dos outros por princípio, nem ficar procurando (ou aventando) motivos ocultos pelos quais uma pessoa fez ou não fez isso ou aquilo.

Em segundo lugar, se livrar da mania de exigência e do hábito da cobrança. Não ficar exigindo e cobrando que os outros façam isso ou aquilo. Se as pessoas não estão fazendo o que prometeram, o problema pode ser outro. Deve-se ouví-las e recombinar o que todos vão fazer.

Em terceiro lugar, não mandar em ninguém. As pessoas só devem fazer o que foi combinado com elas e não devem ser mandadas a cumprir uma tarefa determinada por obediência aos chefes (ou aos “líderes”).

Em quarto lugar, não ficar criando inner circles (ou grupinhos “mais estratégicos”) para decidir qualquer coisa, excluindo pessoas que estão fazendo essas coisas.

Em quinto lugar, conversar sempre com todos. Ninguém, nem mesmo quem paga os salários das pessoas, deve se colocar acima (ou fora) da conversa com elas.

Claro que o terceiro “mandamento” resume tudo. Basta perder essa tara de mandar nos outros para uma dinâmica cooperativa emergir.

Sei que é difícil aceitar isso por parte de quem se organiza hierarquicamente. Há uma crença, largamente difundida, de que não se pode organizar nada sem um mínimo de hierarquia. E é claro que a hierarquia é necessária… para as organizações hierárquicas! Então as pessoas que vivem em ambientes configurados hierarquicamente (que, para elas, são os únicos ambientes que existem e permitem que qualquer trabalho alcance um resultado planejado) poderão ter dificuldade com isso.

Fazer um empreendimento colaborativo é difícil? – algumas pessoas perguntam. Parece mesmo muito difícil, mas na verdade não é se queremos começar um novo empreendimento. Dentro de uma organização hierárquica, entretanto, é quase impossível. Organizações hierárquicas precisam realmente de hierarquia, não conseguem respirar a não ser num campo deformado. E aí vem tudo junto no pacote (um pacote de matrizes pró-autocráticas): desconfiança do outro, comando e controle, cobrança constante, tara de mandar, desrespeito com os subordinados, decisões de cima para baixo tomadas por uma diretoria sem ouvir os envolvidos, exigência de obediência e fidelidade imposta top down, punição e recompensa e, o mais grave, deficit de conversação, muita competição interna e pouca colaboração.

Notas

(1) Franco, Augusto e Pogrebinschi, Thamy (orgs.) (2008). Democracia cooperativa: escritos políticos escolhidos de John Dewey. Porto Alegre: EdiPUC, 2008

(2) Honneth, Axel (1998).“Democracia como cooperação reflexiva. John Dewey e a teoria democrática hoje”, (publicado originalmente em “Political Theory”, v. 26, dezembro 1998) traduzido na coletânea: Souza, Jessé (org.) (2001). Democracia hoje: novos desafios para a teoria democrática contemporânea. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001.

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