Centro não tem a ver com equidistância entre os polos; quer dizer, não tem a ver com esquerda e direita. Tem a ver com democracia; quer dizer, hoje, para todos os efeitos práticos, com não ser populista. Só há democracia liberal se um campo democrático (não-populista) for o centro de gravidade da política. Populistas podem continuar existindo, mas a política não pode gravitar em torno de quaisquer deles. É isso.
A única chance do campo democrático se converter no centro de gravidade da política no Brasil – quebrando a polarização entre os dois populismos (bolsonarismo x lulopetismo) – é puxar agora uma campanha pelo impeachment de Bolsonaro (ou para obrigá-lo a renunciar) em 2021. Mesmo que o impeachment (ou a renúncia) não aconteça, só um amplo movimento desse tipo pode alterar a configuração das forças em disputa. Sem isso, o horizonte dos democratas se desloca para 2026 (ou, quem sabe, para 2030).
Foi ótimo o manifesto pela consciência democrática assinado por Amoedo, Mandetta, Doria, Leite, Huck e Ciro. Mas, por enquanto, é um posicionamento de personalidades. Consciência não cria força política. Este é o problema.
Como tudo isso vai se transformar numa força política? Se os signatários do bom e oportuno manifesto estiverem pensando fazer isso só em 2022, não dará tempo de formar os agentes necessários (sem os quais não há força política real). Será mais uma aposta incerta na loteria do calculismo eleitoreiro.
Onde estão os agentes dessa alternativa (que não são propriamente os eleitores)?
Quem ocupará as mídias tradicionais e sociais defendendo diariamente essa alternativa?
Quem ganhará e organizará as bases locais (e, futuramente, montará os palanques para a próxima disputa eleitoral)?
Sem um movimento político não surge uma nova força política. Esse movimento, para além de declarações de princípios, deve começar a ser articulado agora (em 2021) e deve ter objetivos concretos para atuar agora (não só em 2022). O único movimento possível nesse momento deve ser o de tirar Bolsonaro do poder (em 2021, não em 2022) por razões democráticas e humanitárias.
Sem esse movimento político tudo caminha para a polarização Lula x Bolsonaro, que expulsará os democratas da cena pública por muito tempo.
As razões democráticas para um movimento desse tipo devem estar presentes, mas são de difícil compreensão.
Como explicar para o futuro eleitor que não adianta trocar um populismo (de extrema-direita) por outro populismo (de esquerda)?
Como dizer que Lula não representa uma alternativa democrática se ele, formalmente, convive bem com a democracia (até o momento que tiver forças suficientes para alterar o seu genoma), se ele optou pela via eleitoral (imaginando ganhar eleições sucessivamente para se delongar por décadas no governo), se ele não quer rasgar a Constituição (talvez reformá-la quando a correlação de forças o permitir), se ele não quer destruir as instituições (e sim ocupá-las e comandá-las, pondo-as a serviço do seu partido) e se ele lutou e lutará contra ditaduras (ainda que só as ditaduras de direita)?
Não é possível fazer isso no curto prazo. Entre Lula e Bolsonaro qualquer pessoa razoável, mesmo que não concorde com Lula, o escolherá como o menos pior. Não dá para convencer grandes contingentes da população de que os populismos são hoje, no mundo e no Brasil, os principais adversários da democracia.
As razões que, hoje, todos são capazes de entender, são as humanitárias. O Brasil é o pior país da pandemia no mundo e Bolsonaro é responsável direto por centenas de milhares de mortes que seriam evitáveis se seu governo não fosse negacionista. Não é difícil qualquer pessoa razoável compreender que deixar Bolsonaro no governo por mais 637 dias poderá significar meio milhão de mortes adicionais.
Lula deve ser convidado a fazer parte desse movimento (desde que não se lhe permita hegemonizá-lo e dirigi-lo). Deve-se dizer a ele que é muito bem-vindo numa frente para remover democraticamente Bolsonaro do poder. Em 2021. Que esperar até o final de 2022 não adianta. Que ninguém quer mais centenas de milhões de mortes evitáveis. Se ele não topar – como não topará – ficará claro que só quer fazer campanha eleitoral, pulando de palanque em palanque, sobre uma terra coalhada de cadáveres.
Ademais, sem esse judas (Bolsonaro) para malhar, Lula perde tamanho. Numa disputa de segundo turno com qualquer um dos signatários do manifesto pela consciência democrática, ele tende a perder. Não poderá ser escolhido como o menos pior.
Deve ficar claro para muitos que a tarefa principal de Lula é impedir que surja uma articulação não-populista (às vezes dita, incorretamente, de centro) e democrática. A tarefa principal de Bolsonaro é exatamente a mesma. Eles querem que restem apenas dois populismos no segundo turno: antibolsonarismo x antipetismo.
Mas o que definirá a eleição presidencial de 2022 é o primeiro turno (não o segundo). O que definirá o primeiro turno de 2022 é o que os não-populistas conseguirem fazer em 2021 (não em 2022) para alterar a trajetória inercial da disputa política.
Essa desarrumação dos blocos em confronto – que só um movimento desse tipo conseguirá produzir – é vital para abrir uma fenda no campo capturado pelos dois populismos em disputa. Uma brecha pela qual os democratas podem avançar ou, pelo menos, continuar respirando.
Sim, o assunto é gravíssimo. É da sobrevivência dos democratas que estamos falando.


