O que foi o 8 de janeiro de 2023 em Brasília? Certamente foi um atentado golpista à democracia praticado por bolsonaristas, mas não golpe de Estado, nem terrorismo. Vejamos por quê.
Antes de qualquer coisa é preciso perceber que toda essa conversa sobre o 8 de janeiro está servindo de combustível para manter e escalar a polarização política por parte dos dois populismos em disputa. Da parte do lulopetismo, para dizer que foi vítima de um terceiro golpe de Estado (o primeiro teria sido o impeachment de Dilma e o segundo a prisão de Lula). Da parte do bolsonarismo, para dizer que foram esquerdistas infiltrados que fizeram a baderna, com a conivência (planejada) de funcionários do novo governo.
É tudo falso como uma nota de 13 ou de 22 reais.
Bolsonaro queria, mas não conseguiu, dar um golpe de Estado em termos tradicionais, nem quando estava no governo, nem depois que saiu. Por que? Porque não tinha força político-militar para tanto. Ponto.
Uma turbamulta de bolsonaristas, sem qualquer experiência política (e militar), cometeu vandalismo e outros crimes ao invadir as sedes dos três poderes com propósitos golpistas. Mas o que fizeram dificilmente levaria a um golpe de Estado. Foi mais um cosplay do 6 de janeiro americano, jocosamente chamado de “capimtólio”.
Os bolsonaristas invadiram prédios públicos vazios num domingo, desarmados e sem qualquer estratégia de tomada de poder. Mesmo que não fossem reprimidos (como o foram, tardiamente), fariam o quê depois de depredar? E mesmo que acampassem nas sedes dos três poderes legítimos, isso não impediria o governo eleito de continuar funcionando em outras instalações.
A menos que estivesse em curso uma armação com setores dos comandos das forças armadas para entrar em campo em seguida, enviando tanques e tropas para ocupar as instituições, empastelar a imprensa, prender juízes, parlamentares e executivos. Ao que tudo indica, embora houvesse o desejo, não havia tal combinação, nem mesmo o embrião de uma armação desse tipo (a não ser na cabeça desmiolada dos bolsonaristas).
Como Bolsonaro não estava mais no governo, seria necessário que um governo provisório se impusesse, decretando e fazendo cumprir medidas no lugar (e à revelia) das instituições governamentais, legislativas e judiciárias.
Seria necessário que executassem prisões, fechassem estradas, portos e aeroportos, tomassem rádios e TVs para transmitir seus atos institucionais etc. Nada disso existiu.
Os vândalos não praticaram qualquer ato tipicamente terrorista (talvez com exceção da tentativa de explosão de um caminhão de combustível, que não se consumou). Houve danos à propriedade pública, mas não houve nenhuma explosão, nenhuma morte ou atentado grave à vida e à liberdade de pessoas ou coletividades.
Claro que os vândalos golpistas devem ser processados na forma da lei (como estão sendo). O que fizeram foi crime, que não pode ficar sem punição. Mas ninguém será condenado por terrorismo, porque a lei brasileira não permite e porque não foi mesmo.
Claro também que Bolsonaro e outros membros do seu governo devem ser responsabilizados por insuflar o golpismo de seus auxiliares e seguidores.
Mesmo que não tivessem as condições reais de executar um golpe de Estado, esses ex-governantes devem arcar com as consequências de sua pregação e de seus atos anticonstitucionais.
Dito isso, imaginemos o que seria necessário para dar um golpe de Estado de caráter fascistoide no Brasil, estando fora do governo – e no dia 8 de janeiro Bolsonaro não estava mais no governo (e sim Lula), ao contrário do 6 de janeiro americano (em que Trump ainda governava, Biden só tomou posse no dia 20 de janeiro).
Claro que as considerações abaixo são de caráter necessariamente especulativo, feitas por comparação ao que costuma ocorrer em golpes de Estado perpetrados por forças fascistoides em circunstâncias semelhantes.
Em primeiro lugar, nem se poderia começar a pensar nisso (num golpe de Estado à moda antiga) na ausência de uma articulação com setores das forças armadas que comandam tropas.
Em segundo lugar, quem quisesse fazer isso deveria provocar atos disruptivos que pudessem justificar (aos olhos da opinião pública) a intervenção de setores articulados das forças armadas em nome do restabelecimento da ordem. O movimento, como mostra a experiência de atos semelhantes desferidos pela extrema-direita, seria para estabelecer uma nova ordem e livrar o país do caos, da corrupção, dos inimigos da família, da pátria e de deus.
Não, não bastaria invadir prédios públicos vazios, num domingo, com legiões de tiazinhas do zap e aposentados do pavê, desmiolados e inexperientes do ponto de vista político e militar, desarmados e despreparados para o confronto. Seria preciso causar comoção na opinião pública, por exemplo, com explosão de pontes, torres de energia, portos e aeroportos e reservatórios de abastecimento de água. Isso deveria ser precedido por uma paralisação de categorias essenciais para o abastecimento de alimentos e outros insumos fundamentais para o funcionamento das cidades (como, por exemplo, os caminhoneiros).
Barricadas nas vias urbanas também seriam necessárias, sobretudo para evitar ou dificultar deslocamentos das forças leais ao governo e capilarizar a comoção social. Poderiam estar presente nessas barricadas – para aumentar a legitimidade do movimento – o próprio pessoal simpatizante que mora nos prédios contíguos, com suas famílias mesmo, com homens, mulheres, crianças e idosos, portando bandeiras do Brasil e entoando cantos patrióticos. Elementos de milícias (armados) deveriam estar presentes no meio desses moradores. É óbvio que uma articulação com as milícias já existentes deveria pre-existir e também com elementos simpáticos (armados, por exemplo dos clubes de tiro).
Isso deveria estar articulado com grupos paramilitares táticos, armados e preparados para escaramuças de sorte a praticar atos de intimidação e terrorismo. Aqui também seria essencial uma articulação com setores das forças policiais militares prontos para organizar sublevações e motins nos quarteis e para dar guarida aos agentes da nova ordem.
Algumas prisões deveriam ser efetuadas logo no início do movimento, como as de ministros de tribunais superiores, de presidentes das casas legislativas e outros líderes parlamentares que não aderissem, dos dirigentes dos partidos governistas e dos jornalistas pró-governo. Uma black list sempre aparece nessas horas (mas só porque foi cuidadosamente preparada com antecedência).
Deveria estar redigida já a constituição de um governo provisório (tendo ou não na sua chefia o antigo titular, Bolsonaro, no caso, sob a justificativa de que as eleições foram fraudadas): e aqui, sim, faria sentido – mas não isoladamente – algo como a minuta encontrada no armário do ex-ministro da Justiça, Anderson Torres, ora preso, que previa a decretação de um Estado de Defesa no prédio do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Na ausência de outros fatores, uma minuta desse tipo não passaria em nenhum lugar (nem no parlamento, nem nos tribunais), mesmo com Bolsonaro ainda no governo – o que não foi o caso. Teria de ser imposta pela força. E, portanto, deveria haver força político-militar para tanto. Vai e volta e tudo se resume nisso.
Além disso, deveria haver uma declaração oficial das forças sublevadas para ser lida pelas principais redes de rádio e TV (que seriam tomadas por grupos táticos).
Também deveriam estar prontos (ou pelo menos esboçados) uma série de atos institucionais para serem impostos ao Congresso Nacional ou, no impedimento da reunião de seus membros eleitos, por uma assembléia constituída com elementos do movimento insurgente (com os parlamentares que aderissem ao movimento), na própria sede do Congresso Nacional (e isto, sim, justificaria a sua ocupação por manifestantes).
E tudo isso seria só o início de um golpe de Estado (à moda antiga) de verdade. Se houvesse resistência de forças leais ao legítimo governo, seria instalada uma dualidade de poder. E aí as ações poderiam tomar outro caráter, de guerra civil aberta.
Nada disso aconteceu. Não porque não houvesse vontade dos golpistas de que acontecesse (na hipótese de eles saberem o que fazer para desfechar um golpe de Estado à moda antiga estando já fora do governo). E sim porque não havia condições objetivas para que acontecesse (nem com Bolsonaro no governo, nem fora dele). O que aconteceu, entretanto, foi gravíssimo e exige as providências judiciais que, aliás, já estão sendo tomadas.
No entanto, não precisaríamos entrar agora no debate fútil e estiolante de um golpe de Estado que não ocorreu e não poderia ter ocorrido. Essa CPMI do 8 de janeiro que está para ser instalada só convém aos dois populismos em disputa. Em vez de isolar a extrema-direita e de frear o avanço do antiliberalismo estrutural da esquerda, mantém a bipolarização dificultando o surgimento de uma oposição democrática.