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O bolsolavajatismo é mais perigoso do que o bolsonarismo

Embora defenda as leis, não sou legalista. Não acho que o lavajatismo seja prejudicial à democracia – nem apenas, nem principalmente – porque atropelou algumas normas e procedimentos do Estado de direito. Claro que, atropelando as leis, o lavajatismo atinge um ou mais dos critérios da legitimidade democrática, no caso, a legalidade e a institucionalidade. Mas o lavajatismo é prejudicial à democracia por dois motivos principais.

O primeiro é que arrebanhou militantes para empreender uma cruzada de limpeza ética, com características jacobinas (tentando reeditar, com duzentos anos de atraso, uma espécie de Comitê de Salvação Pública, com propósitos terra-arrasadistas: já que tudo apodreceu, temos que começar do zero novamente).

Esse tipo de iniciativa, de demonização da política, ao longo da história, jamais levou nenhuma sociedade para uma situação onde houvesse mais democracia. Depois dos cortes de cabeças e do reinado do terror, não raro, um Napoleão estará nos esperando na próxima esquina. No caso do Brasil esse Napoleão tem nome e sobrenome conhecidos, o que nos leva ao segundo motivo.

E o segundo motivo é que o lavajatismo – quer dizer, a instrumentalização política do combate à corrupção para limpar as instituições (como disse Moro) – ajudou, objetivamente, a eleger Bolsonaro (o candidato que se apresentou como a única ilha de honestidade num oceano de políticos corruptos) e depois virou, com a ascensão do seu chefe real (o próprio Moro) ao primeiro escalão do governo, uma espécie de bolsolavajatismo. Não é a toa que os milicianos virtuais bolsonaristas saem às ruas e vão diariamente às mídias sociais para defender seu herói, ao qual atribuem características super-humanas. Não foi a toa que mais de 90% de todos os grupos organizados para combater a corrupção – como as várias versões da tal República de Curitiba – viraram comitês eleitorais de Bolsonaro. Quem poderá negar tal evidência?

Claro que o primeiro motivo é o mais perverso pois evoca noções de pureza que replicam matrizes da cultura patriarcal. Há uma teoria da corrupção (uma filosofia historicista) subsumida nas propostas de limpar o mundo dos maus que nos remete diretamente a Heráclito (e às raízes babilônicas do seu pensamento) e a Platão, com suas concepções políticas sabidamente totalitárias. O fluxo temporal corrompe, suja, contamina, entorta o que algum dia, ou antes dos tempos, foi limpo, puro, reto. Trata-se, pois, de buscar um modelo justo e perfeito. Tal pensamento, ao longo dos tempos, sempre esteve associado à autocracia, não à democracia, que nunca foi um regime sem corrupção e sim um regime sem o senhor.

Claro que a corrupção retira qualidade da democracia, mas ela – por si só – não converte democracia em autocracia (não há um só caso na história disso ter acontecido). Países menos corruptos não são os que fizeram mais cruzadas de limpeza ética e sim aqueles em que as sociedades se democratizaram mais, a ponto de controlar seu próprio Estado e a não admitir que os poderosos violem as leis. Sim, defender o império da lei não significa ser legalista e sim não admitir o império de alguns seres humanos sobre os demais, transformando-os de cidadãos em súditos (e isto é ser democrata).

Mas o segundo motivo é o mais problemático do ponto de vista político no curto prazo. O bolsolavajatismo, como força política, pode ser até mais perigoso do que o bolsonarismo, pois enquanto este último tem alcance limitado (como toda proposta maluca de extrema-direita), o primeiro tem uma base de apoio potencial na sociedade muito maior. E para fidelizar essa base – que virará, inevitavelmente, força auxiliar do bolsonarismo – põe-se a explorar o moralismo popular, o ressentimento social, o desejo de revanche e a vontade de vingança, fortalecendo ideias antipolíticas e desencadeando emoções adversariais avessas à democracia.

Tirando os que votaram em Bolsonaro por medo da volta do PT ou por medo da escalada da insegurança pública, o que sobra são apenas 10% de bolsonaristas e um contingente – que pode ser de quase o dobro – de indignados com a corrupção na política. Votaram estes últimos em Bolsonaro em razão do lavajatismo. Sem eles, Bolsonaro não seria presidente.

O bolsolavajatismo é o lavajatismo no poder comandado pelo bolsonarismo da família Bolsonaro, do seu guru e de seus sequazes. Não é o combate normal à corrupção e a outros crimes que se exerce em qualquer Estado democrático de direito. É um projeto político, fruto de instrumentalização política, chefiado de facto por um juiz que hoje é ministro da Justiça e da Segurança Pública, tendo como braço operativo uma milícia estatal, de base corporativa, que atua como um partido informal, chamada de força-tarefa da Lava Jato, composta por uma mistura incestuosa de juízes, procuradores, policiais e outros membros de órgãos de controle do Estado – todos agora subordinados ao presidente da República e dependentes de suas vontades.

Vários bons jornalistas e analistas políticos – como Merval Pereira, Fernando Gabeira, Eliane Cantanhêde e muitos outros – não perceberam isso. Como o combate à corrupção tem forte apelo popular e como a Lava Jato foi a maior operação desse tipo já realizada no país, e uma operação aparentemente bem sucedida pelos seus resultados (na verdade por ter recuperado parte significativa dos valores roubados e por ter colocado na cadeia, pela primeira vez, figurões da política e dos negócios), os meios de comunicação, em boa parte, compraram acriticamente a conversa de que se trata de uma iniciativa “do bem”, que pode até ter cometido alguns (pequenos) erros, aqui e ali, mas que deve ser apoiada em sua missão redentora da política.

Não viram que não se pode redimir a política de cima para baixo, a partir de estamentos corporativos do Estado e com um discurso e uma prática antipolíticos, de demonização dos políticos.

Antes disso, não viram que, nas democracias, não há solução sem política (feita pelos políticos realmente existentes, velhos e novos). E nem se dedicaram a investigar em que medida os operadores da Lava Jato têm convicções realmente democráticas. Simplesmente embarcaram no marketing fácil do discurso anticorrupção.

Pior ainda, não viram que o lavajatismo se transformou, objetivamente, em bolsolavajatismo e que isso pode ser uma ameaça à democracia bem maior do que a velha corrupção dos políticos. Pois defender o lavajatismo é hoje fortalecer o populismo-autoritário, i-liberal e majoritarista, representado pelo bolsonarismo. Não há mais lavajatismo independente do bolsonarismo. O que há é bolsolavajatismo: a antessala de um Estado policial.

É um erro. E um erro grave, como ficará claro em pouco tempo.

A Constituição dos Atenienses, atribuída a Pseudo-Xenofonte

Comentários à decepcionante entrevista de Manuel Castells