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Por que os conservadores de direita estão sendo engolidos pelos reacionários de extrema-direita

O que estamos vendo acontecer no mundo, nesta segunda década do século 21, não é uma ascensão dos liberais-conservadores e dos liberais de direita e sim o crescimento dos i-liberais-reacionários e de extrema-direita

Se você acha que existem hierarquias sociais que são inevitáveis, naturais, normais ou desejáveis e que o sentido da política é manter uma ordem baseada nessas hierarquias, mesmo que queira ser apenas conservador e de direita, você será presa de narrativas reacionárias ou de extrema-direita.

Tomar o sentido da política como a liberdade – isto é, ser um liberal, no sentido político do termo – é a única maneira de escapar desse caminho. Por isso que, para a democracia, você pode ser conservador, sim, desde que seja liberal-conservador. E você pode ser de direita, sim, desde que seja um liberal de direita.

Ou seja, você pode não querer ser um liberal-inovador (um democrata radical), nem um revolucionário – e, para a democracia, ambas as posições estarão valendo. Conservadores, por definição, não são inovadores. Conservadores, por definição, não são revolucionários. Até aí tudo bem.

Mas, atenção! O contrário liberal de ser um revolucionário para frente (dito de esquerda) não é ser um revolucionário para trás (dito de direita, mas na verdade de extrema direita). Por que? Ora, porque ambos são i-liberais. E se você for um i-liberal, será um adversário da democracia.

Tudo isso agora é relevante porque o que estamos vendo acontecer no mundo atual não é uma ascensão dos liberais-conservadores e dos liberais de direita e sim o crescimento dos i-liberais-reacionários e de extrema-direita.

O fato é que os conservadores de direita estão sendo engolidos pelos reacionários de extrema-direita. E isso tem a ver com sua vulnerável posição baseada na atribuição da ordem (e não da liberdade) como sentido da política. Volta-se então ao início: se você acha que existem hierarquias sociais que são inevitáveis, naturais, normais ou desejáveis e que o sentido da política é manter uma ordem baseada nessas hierarquias, mesmo que queira ser apenas conservador e de direita, você será presa de narrativas reacionárias ou de extrema-direita.

O caminho pelo qual a admiração pelo pensamento conservador de um Edmund Burke ou de um Russell Kirk desemboca no pensamento reacionário de um Steve Bannon ou de um Olavo de Carvalho, é uma perversão, uma descida às regiões tenebrosas onde são usinados os conceitos e preconceitos que justificam as tiranias e as tentativas anti-humanizantes de espalhar inimizade no mundo.

Há uma falha genética no pensamento conservador que é o seu calcanhar de Aquiles: a ideia de ordem que está presente, por exemplo, no pensamento de Edmund Burke e Russell Kirk. Com certeza essa ideia foi introduzida pelo platonismo (ou pelos padrões patriarcais da cultura do tribalismo dório, tal como vingaram em Esparta e Creta).

Liberais-conservadores – ou conservadores mais ou menos liberais – como Michael Oakeshott, Roger Scruton, Theodore Dalrymple, John Gray, Gertrude Himmelfarb, Thomas Sowell, Phyllis Schafler, entre outros, tentaram corrigir esse erro genético do pensamento conservador, dizendo que a mudança é importante, desde que não seja revolucionária e sim gradual, aperfeiçoativa, respeitando as tradições e costumes et coetera. Eles estavam pensando apenas em se defender dos revolucionários para frente (ditos de esquerda), mas esqueceram de se proteger dos revolucionários para trás (ditos de direita, mas, na verdade, de extrema-direita). A correção que pretendiam fazer fracassou revelando a impotência de um pensamento que toma o sentido da política como sendo a ordem e não a liberdade. É o que vemos plenamente agora, quando os liberais-conservadores de direita (que são capazes de aceitar e conviver com a democracia) são engolidos pelos i-liberais reacionários de extrema-direita (que são os principais inimigos da democracia hoje no mundo).

Captar o genos da democracia não é trivial. Os conservadores sempre tiveram dificuldade com isso. Dificilmente o sentido desse modo pazeante de regulação de conflitos (chamado democracia) poderá ser perfeitamente percebido sem que se examine as diferenças entre platonismo e protagorismo.

Karl Popper (1945) sacou perfeitamente o que há de fundamental nessa diferença. Na nota 7 ao capítulo 5 do primeiro volume de A Sociedade Aberta e seus Inimigos ele escreveu:

“A diferença entre platonismo e protagorismo talvez possa ser assim expressa em resumo:

Platonismo | Há uma ordem de justiça “natural” inerente ao mundo, isto é, a ordem original ou primeira em que a natureza foi criada. Assim, o passado é bom e qualquer desenvolvimento que leva a novas normas é mau.

Protagorismo | O homem é o ser moral neste mundo. A natureza não é moral nem imoral. Assim, é possível ao homem melhorar as coisas”.

Excelente esta nota de Popper. O mal-estar de Platão com a democracia explica, de certa forma, o seu reacionarismo ou retrogradacionismo. Ele não era um conservador, não queria apenas preservar o status quo, mas restaurar a ordem ancestral do patriarcalismo dório, a qual, por sua vez, conteria mais elementos da tenebrosa mudança de sociedades de parceria para sociedades de dominação que provavelmente acompanhou a ereção do Estado-Palácio-Templo.

Os que se dizem conservadores deveriam mergulhar no assunto. Russell Kirk (1993), por exemplo, nos seus “Dez princípios conservadores”, escreveu o seguinte:

“Primeiramente, o conservador acredita que existe uma ordem moral duradoura. Que a ordem está feita para o homem, e o homem é feito para ela: a natureza humana é uma constante, e as verdades morais são permanentes.

A palavra ordem significa harmonia. Há dois aspectos ou tipos de ordem: a ordem interna da alma, e a ordem exterior da comunidade. Há vinte e cinco séculos, Platão ensinou esta doutrina, mas mesmo os letrados de hoje em dia encontram dificuldades em compreender. O problema da ordem tem sido uma preocupação central dos conservadores desde que o termo conservador passou a fazer parte da política”.

Por enquanto, fiquemos com a distinção entre dois tipos de ordem (sendo que ordem significa, para Kirk, harmonia – e aqui há mais um problema, que examinaremos em outra oportunidade): a ordem interna da alma e a ordem exterior da comunidade. Para justificar tal distinção, o autor alega que “Platão ensinou esta doutrina”. Está correto. Platão ensinou mesmo esta doutrina, de uma ordem anterior (ontologicamente) ao mundo, uma ideia, uma forma perfeita, pré-existente, ex ante à interação, que foi se corrompendo com a interação. Mas esse pensamento leva, necessariamente, à autocracia, não à democracia.

Por isso que Platão era um adversário da democracia. O mundo real (fenomênico), o conjunto de eventos que ocorrem sempre em razão de algum tipo de interação, não era bem, para ele, o verdadeiro mundo, como modelo ou arquétipo, existente antes da interação, ou seja, o mundo das formas ideais universais que existem (ou existiam) antes da corrupção do tempo… Por isso, os que têm acesso a esse mundo das formas por meio do conhecimento (episteme) têm o direito – e o dever, supõe-se – de dirigir os que não o têm e que se debatem no particular e no precário mundo das opiniões (doxa). Este é o fundamento do governo dos sábios de Platão, como se sabe, um regime político (a rigor, a-político) autocrático, baseado na separação entre sábios e ignorantes (em que os segundos estão condenados a ser dirigidos pelos primeiros).

Portanto, Platão, repita-se, não era nem conservador e sim retrogradador (reacionário). Sua utopia era uma retropia, uma tentativa de voltar ao Estado perfeito ideal, que era uma autocracia rigorosa (e como não se tinha acesso a esse Estado, teceu uma narrativa para enaltecer o regime ditatorial de Esparta – que, segundo ele, estava mais próximo do modelo não corrompido pelo fluxo temporal que degenera todas as coisas à medida que elas se afastam da sua origem). Aqui já reconhecemos alguns traços das filosofias da corrupção que entraram em voga nesta quadra…

Por isso, pode-se dizer que é impossível estabelecer uma separação  clara – e, consequentemente, uma proteção eficaz – entre conservadorismo e reacionarismo. E que o ódio aos sofistas (como Protágoras) manifestado pelos que querem se dizer conservadores nunca passou, na verdade, de um ódio à democracia.

Voltemos a Kirk. No seu quarto princípio ele afirma que os conservadores são guiados por seu princípio da prudência. Escreve ele:

“Burke concorda com Platão que para o estadista, a prudência é a maior dentre as virtudes. Qualquer medida pública deve ser avaliada por suas prováveis conseqüências de longo prazo, e não meramente por alguma vantagem ou popularidade temporárias. Os liberais e os radicais, diz o conservador, são imprudentes: perseguem seus objetivos sem dar muita atenção ao risco de que novos abusos sejam piores do que os males que esperam eliminar. Como John Randolph de Roanoke bem colocou, a providência move-se lentamente, mas o diabo sempre se apressa. Sendo complexa a sociedade humana, os remédios não podem ser simples se devem ser eficazes. O conservador afirma que age somente após suficiente reflexão, pesando as conseqüências. Reformas, assim como as cirurgias, são perigosas quando repentinas e profundas”.

Mais uma vez Platão, o autocrata. Ainda que não se possa reprovar o conselho da prudência (que, como caldo de galinha, não faz mal a ninguém), dizer que ela é a maior virtude do estadista revela uma concepção de política: a política feita a partir do Estado é a que realmente conta, a política ex parte principis é considerada em detrimento da política ex parte populis (sem a qual não pode haver democracia). Ora, a politics, diferentemente da policy, não pode ser orientada pela prudência, posto que ela não é feita, no seu conjunto, por um ser de razão, capaz de uma moralidade informada pela experiência passada e tendo em vista as consequências das ações no longo prazo. A politics (democrática) é feita por qualquer um do povo, não pelo sábio ou pelo bom governante que traça planos para (conduzir) os outros. É o entrechoque, a combinação e recombinação, as convergências e divergências, a polinização mútua das opiniões que gera o imprevisível resultado democrático, não o plano, a ação política intencional que projeta e conhece o resultado antes da interação. Desnecessário acrescentar qualquer coisa para mostrar que este é um pensamento avesso à democracia.

Só há uma conclusão possível. Os conservadores de direita ficaram tão vulneráveis aos reacionários autocráticos de extrema-direita por deficit de alfabetização democrática.

Projeto Casa da Democracia

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