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Os jornalistas e “os bons resultados” da operação Lava Jato

Depois das numerosas evidências de atropelo do devido processo legal, muitos jornalistas adotaram a seguinte posição em relação à operação Lava Jato. Nada que aparecer de comportamento impróprio de acusadores e julgadores eliminará os bons resultados da operação. Recuperou dinheiro roubado, pela primeira vez colocou poderosos políticos e empresários na cadeia e começou a limpar a política das corjas de corruptos que a dominavam.

Não podendo negar que a força-tarefa (com Moro na sua chefia real) agiu incorretamente, vários jornalistas continuam tentando relevar os “erros” cometidos em nome do bem maior supostamente alcançado.

Se recusam a ver que a operação foi instrumentalizada politicamente com objetivos de poder. E continuam agindo assim a despeito do óbvio: objetivamente, os procuradores punitivistas embarcaram na campanha de Bolsonaro, mais de 90% dos grupos que se formaram para apoiar o combate à corrupção e endeusar Sergio Moro – como todas as versões da “Repúblicas de Curitiba” – viraram comitês eleitorais de Bolsonaro e Moro até largou a magistratura para ser auxiliar de Bolsonaro.

Negam que o lavajatismo virou, para todos os efeitos práticos, uma espécie de partido (informal) dos procuradores e da polícia.

E nem querem discutir se houve exploração do moralismo popular e do ressentimento social, estímulo à vontade de revanche e ao desejo de vingança e, consequentemente, desvalorização e demonização da política.

É como se dissessem: fechemos os olhos, os ouvidos e a boca em nome dos bons resultados da operação.

No que tange à corrupção inédita do PT (a corrupção com objetivos estratégicos de poder, sistêmica, coordenada nacionalmente), pode até ser que a Lava Jato tenha conseguido resultados significativos, embora, antes da Lava Jato, o julgamento do mensalão pelo STF já tinha começado a desmontar o “projeto criminoso de poder” do PT. A Lava Jato, entretanto, conseguiu um resultado concreto e de grande valor simbólico: tirou Lula da disputa eleitoral, abrindo o caminho para a eleição de Jair Bolsonaro e para a ascensão do bolsonarismo como força política populista-autoritária, i-liberal e majoritarista.

No que diz respeito à corrupção endêmica na política, entretanto, isso não aconteceu. Algumas cabeças mais salientes foram cortadas (como Cunha, Cabral, Marcelo Odebrecht, Léo Pinheiro etc.), mas a corrupção cotidiana que azeita a máquina do sistema político permaneceu. O efeito, não desprezível, foi mais simbólico. A corrupção na política tinha ficado indecente, praticada sem pejo em praça pública (inclusive na nova praça pública da grande imprensa broadcasting e das mídias sociais). Agora voltou a ser o que sempre foi: clandestina, pulverizada, descentralizada, não coordenada, funcionando como uma espécie de “mercado negro” da política.

Não há dados sobre isso, obviamente. Mas a experiência de quem vive na política indica que milhares de prefeitos (talvez a metade ou quase), em conluio com vereadores e deputados estaduais, federais, governadores e senadores, continuam praticando regularmente (para não dizer diariamente ou semanalmente) pequenos e médios atos de corrupção, de peculato, de lavagem de dinheiro, de improbidade administrativa e, enfim, de desvio individual ou coletivo (partidário) de dinheiros públicos e privados.

Para erradicar essa corrupção de uma vez, na base da vigilância e punição, seria preciso, não uma, mas mil forças-tarefas de procuradores e um aumento astronômico do número de policiais e juízes. Para prender toda essa gente só com um novo PAC voltado à construção de centenas, talvez milhares, de novos presídios. Isso não aconteceu, nem vai acontecer, a menos que transformemos nosso Estado em um Estado policial, atuando à margem da lei por uma década ou mais, no bojo de um verdadeiro processo revolucionário.

Um Estado policial, entretanto, é capaz de trazer mais prejuízos à democracia do que a corrupção endêmica. Antes de qualquer coisa porque nada indica que seus dirigentes não pratiquem também corrupção e outras ilegalidades, escolhendo seus alvos entre os seus inimigos políticos e encarando como inimigos todos os que contestem sua legitimidade. Sim, repita-se: dependendo de como for encetado, o combate à corrupção pode ser mais nefasto, para a democracia, do que a própria corrupção. Em democracias esse combate não pode ser feito por mecanismos de exceção.

A rigor, todo governo é oligárquico (stricto sensu) e haverá corrupção política enquanto houver Estado. Haverá menos corrupção política quanto mais for respeitado o Estado democrático de direito (a fórmula encontrada pelos modernos para domesticar o Estado-nação): sim, os países menos corruptos do mundo são os mais democráticos e os países mais corruptos são os menos democráticos. Eis uma evidência incontrastável. E aqui há dados de sobra.

O que se pode fazer é diminuir essa corrupção para níveis suportáveis, aumentando o controle social sobre as instituições, seus integrantes e representantes. Não se conseguirá fazer isso, porém, a partir de estamentos corporativos do Estado, de cima para baixo e da noite para o dia. A Somália (o país que tem a política mais corrupta do mundo) não virará uma Nova Zelândia (o país menos corrupto) por força de cruzadas de limpeza ética, dirigidas por jacobinos punitivistas. Isso só acontecerá quando o capital social da sociedade somalesa foi equiparável ao capital social da sociedade neozelandesa.

Ao contrário do que diz a propaganda lavajatista, divulgada gratuitamente pela grande mídia, o Brasil está longe de ser um dos países mais corruptos do mundo, como mostram todos os levantamentos internacionais de percepção da corrupção. Ocupamos posição mediana nesses rankings. O que houve no Brasil, muito em razão da corrupção sistêmica inaugurada pelo PT, foi uma exposição pornográfica da corrupção, promovida pelos meios de comunicação que compraram acriticamente a pauta lavajatista. Isso gerou uma indignação popular que, por um lado, ajudou a desbaratar algumas quadrilhas presentes no condomínio hegemônico, mas, por outro lado, contribuiu para demonizar a velha política (que é a única política realmente existente) e para eleger um presidente autoritário, falsamente vendido como o único honesto, não político e novo.

A revolta com a corrupção foi alimentada por discursos falsos dos lavajatistas de que a corrupção política era a grande responsável pela falta do leite das criancinhas ou de leitos nos hospitais, quando se sabe que um mês de políticas irresponsáveis de preços de insumos básicos (como combustível e energia) é capaz de drenar recursos desviados por um século de corrupção política. Carecimentos devidos à falta de crescimento econômico foram imputados aos políticos ladrões, criando um clamor por justiça e, pior, por vingança. Na esteira dessas fake news, plantadas com a ajuda ou a cumplicidade da grande mídia, divulgaram-se gastos da ordem de 2 a 3 bilhões com os parlamentos (as instituições, por excelência, da democracia), enquanto se esconderam os gastos da ordem de 80 a 100 bilhões com judiciário e ministério público (omitindo-se, é claro, todos os privilégios corporativos dessas categorias, inclusive as aposentadorias e restituições salariais escandalosas). O distinto público foi enganado de tal maneira que começou a achar que a corrupção era um mal que só atacava os políticos e os empresários associados aos políticos e que, por alguma característica sobrenatural, não incidia também sobre juízes, procuradores e policiais (a “liga da justiça”, formada pelos bravos destacamentos estatais que seriam os responsáveis pela grande cruzada de limpeza ética).

Os jornalistas que não querem ver nada disso, porque depois de terem acreditado piamente numa hierarquia angélica que ia limpar o Brasil de toda a corrupção, recusam-se a reconhecer que suas apostas foram altas demais, são, em grande parte, responsáveis pelos ataques atuais à democracia feitos em nome do combate à corrupção. Ainda não viram que o lavajatismo foi politicamente capturado pelo bolsonarismo e que, portanto, não se pode ser lavajatista e não-bolsonarista ao mesmo tempo, porque, objetivamente, o que existe, com Moro (chefe da Lava Jato) no governo Bolsonaro, é um bolsolavajatismo.

P. S. Depois de já ter publicado este artigo pude ler o post do Ricardo Noblat, em seu blog da Veja. É uma bela autocrítica do mais longevo blogueiro político, falando pela imprensa (que não teve ainda coragem de fazer o mesmo). Segue reproduzido abaixo.

Em julgamento, a Lava Jato

E o jornalismo também

Por Ricardo Noblat, Veja, 7 out 2019, 07h00

Nada mais fácil do que detectar erros quando se olha a História pelo retrovisor. Tanto mais se o que está em exame é algo perecível como o jornalismo produzido enquanto os fatos se sucedem.

Não reconhecer os erros, porém, e não cavoucar para saber por que aconteceram é a forma mais segura de repeti-los no futuro – do mesmo modo ou de modo pior ainda.

A história da Operação Lava Jato começou em 17 de março de 2014. Investigava-se então uma rede de postos de gasolina em Brasília usada para lavar dinheiro de origem ilícita.

Menos de dois anos depois, investigava-se o maior escândalo de corrupção da história do país que derrubaria um governo e mandaria para a cadeia agentes públicos, empresários e políticos.

A face oculta da operação só começou a se tornar conhecida de junho para cá com a revelação de conversas hackeadas de procuradores que envolveram até o ex-juiz Sérgio Moro.

O acervo de conversas está longe de se esgotar. Mas o que já foi mostrado põe em dúvida algumas verdades que antes pareceram irrefutáveis ou que foram aceitas como tais.

Não é cedo para que se pergunte: se tivéssemos, nós jornalistas, de contarmos outra vez a história da Lava Jato nos valeríamos dos mesmos métodos e escreveríamos o que já publicamos?

Diga-se a favor de Moro e dos procuradores da Lava Jato que eles nunca esconderam que precisavam do apoio da imprensa para convencer a opinião pública do acerto de suas ações.

Diga-se também, e nesse caso a favor da verdade pura e simples, que cumprimos esse papel sem maiores questionamentos. Ouvir o outro lado não significa abrir espaço para o benefício da dúvida.

Comportamo-nos na maioria das vezes como meros repetidores da voz que vinha do alto, e receptadores dos vazamentos administrados para que se construísse a narrativa desejada.

Se não procedemos assim por desonestidade, foi por pressa e incúria. Comodismo e preguiça. Desejo de acreditar na versão atraente que nos caía no colo e aumentaria nossa audiência.

Entre as muitas frases célebres e duras sobre o exercício do jornalismo está uma que cito de memória: “O jornalismo serve para separar o joio do trigo e publicar o joio.” Não creio nisso.

Prefiro acreditar em duas outras:

“Jornalismo é publicar aquilo que alguém não quer que se publique. Todo o resto é publicidade”. (George Orwell)

“O jornalismo é antes de tudo e, sobretudo, a prática diária da inteligência e o exercício cotidiano do caráter”. (Cláudio Abramo)

Revisitar pelo menos parte da história da Lava Jato seria a melhor maneira de nos reconciliarmos com o que sempre nos propusemos a fazer: buscar a verdade, por mais que ela pareça inalcançável.

Os populismos se parecem porque, digam-se de esquerda ou direita, são igualmente i-liberais e majoritaristas

Uma sociedade fechada está crescendo dentro da sociedade aberta