Os analistas estão perdidos tentando achar as razões para os protestos contemporâneos que constelam multidões nas ruas contra os governos em muitos países que vivem em diferentes regimes políticos: Chile, Equador, Bolívia, Colômbia, Líbano, Irã, Iraque, Hong Kong, Itália etc.
Especula-se com tudo: aumento de preços de passagens, de combustíveis, de tarifas de energia e até de internet e, no final, lança-se mão da explicação universal: a desigualdade econômica, o enorme abismo entre ricos e pobres.
Os autoritários, de extrema-direita ou de esquerda, acham sempre uma explicação simples e errada: tudo estaria sendo provocado por agentes infiltrados do comunismo ou da esquerda (agentes provocadores cubanos-venezuelanos no caso do Chile) ou do capitalismo e do imperialismo norte-americano (agentes da CIA no caso de Hong Kong).
Quase ninguém pensa que as manifestações acontecem – independentemente de seus fatores detonadores (mas não causadores) – porque podem acontecer em sociedades que não cabem mais dentro dos Estados que sempre as trataram como seus domínios (no sentido quase feudal do termo). Porque uma sociedade-em-rede está emergindo e nossas velhas instituições não são mais capazes de metabolizar a insatisfação das pessoas com a forma como as coisas estão organizadas e funcionam. Há uma insatisfação com o sistema (embora difusa: quando perguntadas, as pessoas não sabem bem explicar o que é “o sistema” ou dão explicações desencontradas).
Sim, na raiz de tudo há essa insatisfação básica com o modo-de-vida (ou de convivência social), que então extravasa diante de um fator detonador qualquer (que pode ser, simplesmente, 20 centavos de aumento no preço das passagens de ônibus). Pequenos grupos organizados convocam tais manifestações, às vezes violentas, mas não são os responsáveis pelo que acontece quando uma poderosa fenomenologia da interação social se manifesta, constelando multidões em verdadeiros swarmings. Quando isso acontece, não há o que fazer: os Estados não têm mecanismos para evitar ou reprimir os protestos. Quando de cada residência sai em média uma pessoa para ir às manifestações (como ocorreu no Egito, em 30 de junho de 2013, a maior manifestação da história em termos absolutos e em Santiago do Chile, em 25 de outubro de 2019, a maior manifestação da América Latina, em termos relativos), nenhum mecanismo de controle é eficaz.
Os analistas têm dificuldade de ver isso porque não investigam a fenomenologia da interação social em mundos altamente conectados e não levam em conta as correntes subterrâneas do fluxo interativo que se tornam cada vez mais avassaladoras em uma sociedade-em-rede.
Não começou agora. Diga-se o que se quiser dizer, os eventos mais expressivos deste século, que anunciaram e introduziram inovações na forma e no modo de fazer política, foram os grandes enxameamentos civis que ocorreram a partir de 2004 na Espanha: o 11M (aquela extraordinária manifestação, em várias cidades espanholas, a propósito da tentativa de falsificação, pelo governo de Aznar, da autoria dos atentados da Al Qaeda em março de 2004 em Madri, atribuindo-a falsamente ao separatismo basco). Nos anos seguintes, movimentações mais ou menos semelhantes começaram a surgir, quase sempre gestadas de forma subterrânea na sociedade, destoando dos padrões clássicos das mobilizações organizadas centralizadamente por hierarquias políticas e sindicais.
Em 2011, esses movimentos eclodiram no que ficou conhecido como “Primavera Árabe”, começando pelo 14 de janeiro na Tunísia e o 26 de janeiro na Síria, passando pelo 2 de fevereiro no Iêmen, pelo 11 de fevereiro no Egito (dia decisivo para a queda do ditador Mubarak), pelo 14 de fevereiro do Bahrein, pelo 17 de fevereiro na Líbia, pelo 9 de março em Marrocos até voltar ao 18 de março na Síria (quando, então, Assad iniciou a guerra para matar a rede).
Outra incidência importante foi o 15M espanhol (que ficou conhecido como a manifestação dos indignados com a velha política, em maio de 2011 em Madrid, espalhando-se por outras cidades).
Veio também em seguida uma série de movimentos do tipo Occupy inspirados pelo 17S (o Occupy Wall Street no Zuccotti Park, em Nova York, em 17 de setembro de 2011).
Em 2013 tivemos outra eclosão, com o #DirenGezi na Turquia e as manifestações de junho de 2013 no Brasil (sobretudo as que ocorreram nos dias 17 e 18 de junho). Em 30 de junho de 2013 tivemos a maior manifestação da história, com 20 milhões (ou mais) de pessoas nas ruas e praças de várias cidades do Egito (quando o jihadista eleito da Irmandade Muçulmana, Mohamed Morsi, foi derrubado). Depois tivemos a Praça Maidan na passagem de 2013 para 2014, em Kiev, o segundo caracazzo venezuelano, em janeiro de 2014 e a revolução dos Guarda Chuvas, em Hong Kong, em setembro e outubro de 2014 que deram origem às mega-manifestações de 2019 que continuam ocorrendo.
Em tudo isso, a grande novidade não estava nos protestos em si (eventos populares massivos, aparentemente semelhantes, já ocorrem há muito no mundo), mas na manifestação de uma até então desconhecida fenomenologia da interação. Uma parte dessas manifestações, sobretudo o 11M e o 15M espanhol, o 11F egípcio, o 17S americano, o 17-18J brasileiro, o 30J novamente no Egito e vários dos demais swarmings citados, não foi convocada e organizada de modo centralizado por algum líder ou entidade hierárquica. Foram processos P2P (peer-to-peer), emergentes, surgidos a partir de um alto grau de conectividade da rede social e da disponibilidade de mídias interativas em tempo real (o telefone celular, a internet e as incorretamente chamadas “redes sociais”, como o Twitter e o Facebook).
Os poderosos devem mesmo temer esses gigantescos enxameamentos pacíficos que mobilizam as pessoas (onde cada uma é sua própria manifestação), muito mais do que as escaramuças violentas de pequenos grupos organizados que podem aparecer antes ou depois dos grandes swarmings, depredando e incendiando tudo (contra estes últimos, eles sabem bem o que fazer).


