Ultrapassamos ontem 1 milhão de infectados (já devem ser vários milhões, na falta de testes) e 49 mil mortos (talvez 100 mil, de vez que as mortes por SRAG – Síndrome Respiratória Aguda Grave – são dezenas de vezes maiores que nos anos anteriores).
O problema é mundial. Mais de 150 mil novos casos do novo coronavírus foram reportados anteontem à OMS. Segundo o órgão, foi o maior número de casos em um único dia, o que motivou mais um apelo do diretor-geral Tedros Adhanom: “Países estão ansiosos para reabrir suas economias, mas o vírus está se espalhando e ainda é mortal”. O Chile, por exemplo, já é o primeiro colocado em casos de coronavírus por milhão (com exceção de alguns países muito pequenos, com menos de 3 milhões de habitantes, como Qatar, San Marino, Vaticano, Bahrain e Andorra).
Para relaxar o distanciamento físico em uma cidade é necessário ter algum mapa da distribuição espacial de anticorpos na população. O Brasil não tem porque não testa. Ocupamos o vergonhoso 107 lugar no ranking dos países em testes por milhão.
Ademais, o indicador fundamental para quebrar o isolamento é o fator R = Número de Reprodução. Sim, este é o principal indicador para a tomada de decisões, inclusive para identificar e isolar os clusters da contaminação.
Aqui quase não se fala mais disso. Para coibir o alastramento de um patógeno, o número de reprodução deve estar abaixo de 1 (R < 1). Enquanto isso não se verifica é arriscadíssimo ensejar aglomerações. Por isso estão erradas muitas orientações já adotadas em várias cidades.
Mesmo assim governadores e prefeitos vão relaxando as medidas sanitárias cautelares, por impaciência da população (submetida que foi a um isolamento mal-feito durante muito tempo) e por pressão dos empresários num ano eleitoral. O resultado é óbvio: mais contaminações, mais mortes.
Os prefeitos não conseguem mais manter o distanciamento físico e começam a abrir tudo, seja porque a população não aguenta mais ficar em casa, seja porque os 600 reais não estão dando para a subsistência dos mais pobres, seja porque os empresários pressionam continuamente os governos. Então eles têm medo de perder popularidade num ano de eleições municipais. E têm medo de perder apoio das elites econômicas locais (que, de forma disfarçada, contribuirão com o caixa 2 de suas campanhas). Por isso fazem corpo mole com a testagem, para não irritar os que são contrários às duras medidas de contenção da pandemia. Além de tudo isso há a sabotagem diária do presidente da República e do governo federal – que são negacionistas da epidemia.
Já entendemos a situação. Vamos ver agora as consequências. Redução do distanciamento físico durante o aumento de contaminados e mortos leva inexoravelmente à mais contaminados e mortos. E há uma transição epidemiológica espacial em curso. A pandemia avança para o interior, onde a situação está piorando porque os governos estão mais expostos às pressões do empresariado dinheirista local, sobretudo onde ainda existem núcleos fortes de eleitores de Bolsonaro que negam abertamente a doença. É uma tragédia.
Priorizar o indicador de número leitos de UTI, secundarizando o R (número de reprodução), a porcentagem da população com anticorpos (relacionada ao R) e os números de casos e mortes, é o truque que governadores e prefeitos estão aplicando para quebrar o distanciamento físico num ano eleitoral.
O indicador de leitos de UTI com ventiladores disponíveis é correto do ponto de vista da saúde pública, mas não propriamente da vida das pessoas. Quando um paciente chega a ser entubado, suas chances de recuperação não são tão altas. O custo – não só financeiro, mas humano -, entretanto, é altíssimo: mesmo que um entubado se recupere, produz-se muito sofrimento para ele e sua família, além de incremento do risco para os profissionais de saúde que o atenderam.
O negacionismo governamental, entretanto, continua. Argumenta-se tudo. Inclusive que a economia está sendo destruída, não pela pandemia, mas pelas medidas para contê-la. Alega-se que a pobreza – falsamente atribuída às medidas de distanciamento físico – matará mais do que a Covid-19.
O argumento de que a pobreza gerada pela paralisação de algumas atividades comerciais imposta pelo distanciamento social também causará mortes é inconsistente. A pobreza não causa mortes imediatamente e sim ao longo do tempo. Não há uma emergência alimentar e nutricional (como uma fome epidêmica) equivalente à emergência sanitária atual. O argumento não se justifica.
Ademais, nunca houve paralisação total das atividades produtivas, nem mesmo um lockdown no Brasil (como agora está havendo em Santiago de Chile e houve na Espanha). O que houve aqui foi um isolamento mal-feito que cansou a população e não evitou que ultrapassássemos 1 milhão de infectados e nos aproximássemos de 50 mil mortos. Por outro lado, retardar a propagação da infecção não é contratar mortes futuras: entrementes pode ser descoberto um tratamento mais eficaz ou uma vacina para a Covid-19.
Aos 100 dias do anúncio da pandemia (completados ontem) pulamos de 52 casos (11 de março) para mais de 1 milhão (19 de junho). O irresponsável que nos governa não está nem aí. Para comemorar a data, Bolsonaro falou duas coisas: que 40% desses números oficiais (divulgados por seu próprio governo) são falsos, não são Covid-19 e que se fosse por ele ninguém teria parado de trabalhar porque “quem tem idade de 40 para baixo não tem problema”. Agora, com o recrudescimento da pandemia em várias cidades, isso é um estímulo para as pessoas quebrarem as medidas de distanciamento físico.
Na minha modesta opinião as falas do presidente da República são crimes contra a saúde pública e, a rigor, contra a humanidade. Estamos sob um governo irresponsável, que poderia ser considerado – sob certo ponto de vista – um governo assassino.



