Bolsonaro se rendeu à realpolitik. Seu negacionismo (antidemocrático) se aliou ao negocismo (dos analfabetos democráticos que compõem boa parte da nossa chamada “classe política”).
A análise política ainda não conseguiu desvendar completamente as razões dessa aliança entre os autocratas negacionistas (da ciência, da pandemia, da ecologia) e os analfabetos democráticos negocistas (da política). A aliança é instrumental e temporária. Os primeiros nela figuram a contragosto e vão até à possibilidade de reeleição de Bolsonaro. Os segundos enquanto houver possibilidade de saque dos recursos públicos e ocupação do Estado e a popularidade do presidente se mantiver acima de 30%.
Bolsonaro se justifica dizendo que precisa governar. Mas isso não significa que se converteu à democracia. Continua sendo um ditador sem ditadura.
É aquela história. Se você quer mudar o regime político e não pode dar um golpe de Estado à moda antiga, com tanques na rua e tudo mais, então precisa contar com uma ampla base de apoio no parlamento e com a boa-vontade dos tribunais. Precisa, ainda, comprar altos índices de popularidade com programas de transferência de renda (como, aliás, faziam os neopopulistas de esquerda). É só isso que Bolsonaro está fazendo.
Bolsonaro isolar seus grupos mais extremistas é conveniência e disfarce. Seu filho Eduardo não era representante do Steve Bannon e discípulo dileto de Olavo? Vai ser isolado também?
Todo esse pessoal, colocado em banho-maria por razões táticas, vai voltar na campanha de 2022. Num segundo mandato, com mais controle sobre o parlamento, o judiciário e o ministério público, aí sim Bolsonaro poderá dar uma de Viktor Orbán e impor uma mudança de regime tendo como meta instalar no Brasil uma autocracia eleitoral.
As instituições que reagiam às suas investidas estão sendo domesticadas. Bolsonaro sente que tem poder suficiente até para dizer como vai votar, em causas futuras, seu indicado para o Supremo Tribunal Federal. Ninguém se escandaliza. Ninguém protesta. Nem o próprio, nem seus futuros pares. Nem os parlamentares oposicionistas, nem a própria imprensa – que começa a achar tudo isso normal.
O jornalismo, em parte, está se ocupando de fazer as crônicas da corte. Fica comentando as brigas entre Guedes e Marinho, entre Guedes e Maia, enquanto a boiada vai passando. Não vê que Bolsonaro recuou apenas na retórica, não nas investidas contra a democracia, sobretudo para domesticar o judiciário.
Oposição política não há mais. O PT se revelou um fracasso completo para fazer oposição à populistas-autoritários de extrema-direita. Só sabia mesmo fazer oposição destrutiva aos democratas. Vem de longe esse vício: o inimigo principal não é o nazismo e sim a social-democracia – orientava a III Internacional.
Ou seja, a democracia está mais ameaçada – e não menos – com o abandono da retórica inflamada do presidente contra as instituições.