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O método Bolsonaro de matar aos poucos a nossa democracia

A retórica que mata

Avançar e recuar, dizer uma coisa hoje e desdizê-la amanhã, manter-se formalmente dentro da legalidade e violar as normas não escritas que possibilitam o funcionamento dos mecanismos de freios e contrapesos ao poder do executivo, é o jeito que Bolsonaro descobriu de envenenar lentamente a nossa democracia.

Morder e assoprar, defender uma coisa e o seu oposto, é a fórmula de Bolsonaro para submeter as instituições da democracia a um stress intermitente que acaba por corrompê-las. Elas continuam funcionando, mas cada vez com menos capacidade de frear investidas autoritárias. Vão relevando uma coisa aqui, outra ali… e, quando se dão conta, já estão irremediavelmente permissivas.

Bolsonaro vem aplicando esse truque. Pode dizer qualquer barbaridade hoje e amanhã falar o oposto. Ele descobriu que fica por isso mesmo. A nova declaração apaga magicamente a anterior. E a responsabilidade pelos estragos causados pela anterior deixa de ser dele.

Os maiores aliados políticos de Bolsonaro são os analistas políticos pollyannas, que sempre interpretam suas investidas autoritárias como mera retórica para satisfazer suas bases ideológicas. Enquanto isso, ele vai avançando e recuando, mas sempre ganhando um pedacinho a mais de terreno.

Sim, Bolsonaro é ajudado pela imprensa. Ontem (12/02/2021) ele anunciou que ia editar mais decretos sobre armas. Disse, textualmente. “Devo publicar hoje, quase certo, três ou quatro decretos sobre armas. Vão falar: ‘Ele aí falando de armas em vez de vírus’. A vida continua, poxa”.

A imprensa então interpretou – sem qualquer necessidade – que ele estaria apenas falando para suas bases ideológicas, como quem diz: é pura retórica. Ah! Se é isso, então tudo bem. Ora, em primeiro lugar, retórica é política. E, em segundo lugar, ele já editou realmente vários decretos sobre armas, que só não foram aprovados pela resistência do parlamento.

Com efeito, os decretos necrófilos de Bolsonaro, publicados em seguida (hoje de madrugada) em edição extra do Diário Oficial, alterando a regulamentação sobre armas no Brasil, têm como objetivo armar a população – mas não para se defender de bandidos e sim para fazer frente aos legítimos poderes constituídos. Em reunião ministerial de abril do ano passado (está gravado em vídeo) ele deixou claro que o povo armado era fundamental para resistir às medidas de governadores eleitos que lhe fazem oposição.

Bolsonaro não quer que a vida continue. É a morte que ele quer que continue, por vírus ou por bala. Esse acréscimo de mortes é necessário para pavimentar o seu caminho de envenenamento da democracia.

Dois anos depois do primeiro decreto de Bolsonaro rumo à expansão do armamento da população, o país tem 1,151 milhão de armas legais nas mãos de cidadãos — 65% mais do que o acervo ativo de dezembro de 2018, que era de 697 mil.

Os decretos de ontem a noite alteram a regulamentação sobre armas no Brasil. As medidas flexibilizam os limites para compra e estoque de armas e cartuchos para pessoas autorizadas pela lei. Uma das propostas permite que pessoas autorizadas possam adquirir até 6 armas (antes eram quatro por pessoa); o governo também estabeleceu a permissão para que atiradores adquiram até 60 armas e caçadores, 30, só sendo exigida autorização do Exército quando superar essa quantidade.

Ora, para quê uma pessoa normal precisaria de 6 armas? Para defesa pessoal que não é. Por que um atirador poderá adquirir 60 armas? Por que um caçador poderá comprar 30 armas. É claro que tudo isso vai facilitar o armamento de milícias. Clubes de tiro e de caça vão se multiplicar, constituindo núcleos armados para se contrapor à democracia.

Rodrigo Maia, na presidência da Câmara, impediu que barbaridades como essas fossem aprovadas. Agora, com Artur Lira, talvez a boiada passe. Depois dos decretos armamentistas virão outros. O centrão vai impedir esse avanço autoritário? Nossos analistas políticos pollyannas vão continuar dizendo que tudo não passa de retórica para inflamar as mídias sociais?

Não se pode esperar nada deste Congresso depois da aliança Bolso-Centrão. A situação para a democracia piorou muito, muito, muito. Ou a resistência a Bolsonaro vem da sociedade, ou podemos esperar o pior. Aliás, o pior já aconteceu. Já estamos palmilhando o caminho na escuridão.

O método Bolsonaro de matar aos poucos a nossa democracia está, até agora, dando certo.

Por que? Ora, por déficit de democratas nas instituições do Estado e da sociedade (com a ajuda providencial dos analistas pollyannas). Vão deixando, deixando, passando pano… e normalizando tudo.

A única possibilidade de fazer uma oposição para valer a Bolsonaro é a campanha do impeachment. É bom esquecer os partidos. Cada qual acha que poderá derrotar sozinho Bolsonaro em 2022. Fogem para 2022 para não enfrentar 2021. É um tipo de alienação.

Sobre o nosso déficit de democratas

Desmascarando o principal ataque da esquerda à democracia ateniense