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Se um campo não-populista não se articular agora, os democratas desaparecerão da cena pública

Se os atores políticos democráticos (não-populistas) não constituírem agora (em 2021, nada de 2022) um polo de oposição a Bolsonaro, vão desaparecer da cena pública. A oposição ao governo será privatizada pelo neopopulismo lulopetista. E a polarização entre dois populismos reinará absoluta.

Todos, inclusive Lula, são bem-vindos numa aliança para interromper a tempo (em 2021) a trajetória genocida de Bolsonaro. Para as eleições de 2022 é outra coisa. Numa democracia deve haver pluralidade de atores políticos concorrendo, não apenas dois populistas polarizando.

Por que?

Porque os populismos são hoje, no Brasil e no mundo, os principais adversários da democracia. O bolsonarismo e o lulopetismo são populismos. É claro que são diferentes e que o primeiro é muito mais maligno. Mas ambos são i-liberais e majoritaristas.

Populistas creem que a sociedade está atravessada por uma única clivagem que opõe “o povo” às “elites”. Pretendem falar em nome do (verdadeiro) povo (composto por seus seguidores). Acham que são os únicos representantes legítimos (do povo) e que nada deve ficar no seu caminho.

Populistas pensam que democracia é a prevalência da vontade da maioria (majoritarismo). Em alguns casos os populismos de esquerda (como o lulopetismo) são hegemonistas. Acham que têm o direito de comandar (e só fazem alianças para ficar mais fortes e matar os aliados ao final).

Sim, existe populismo de esquerda. Todos os bolivarianismos – mais hards ou mais lights – são populismos: Chávez era populista, assim como Evo, Correa, Lugo, Funes, os Kirchners, Lula e Dilma. Maduro e Ortega são populistas (hards), assim como Obrador e Fernández (lights).

Aliás, Maduro e Ortega são populistas que viraram ditadores. São desvios (ou encurtamentos) do caminho neopopulista que propõe um processo lento e progressivo de conquistar hegemonia sobre a sociedade a partir do Estado controlado pelo partido para mudar o DNA da democracia.

Todos os populistas falam em nome da democracia (que confundem com processo eleitoral). Acham que, se foram eleitos por maioria, então têm legitimidade para fazer o que quiserem – até para não governar democraticamente.

A estratégia neopopulista de esquerda não quer dar nenhum tipo de golpe. Ela prevê ganhar eleições sucessivamente se delongando no poder por tempo suficiente para alterar a composição (e a natureza) das instituições democráticas. Mas tudo em nome da democracia.

Os populismos transformam democracias liberais em democracias apenas eleitorais. E, aos poucos, querem transformar democracias eleitorais em autocracias eleitorais (como está acontecendo, à direita, na Hungria e na Polônia e já aconteceu, à esquerda, na Venezuela e na Nicarágua).

Lutar pelo fim da desigualdade e falar em nome dos excluídos não torna ninguém democrata. Chávez, Evo, Correa, Lugo, os Kirchners, Funes, Maduro e Ortega, além de Fidel e Raul, lutaram pelo fim da desigualdade em nome do povo, contra as elites.

Ser antifascista não torna ninguém democrata. Maduro e Ortega (os dois ditadores atuais da Venezuela e da Nicarágua) são antifascistas.

Ter lutado contra a ditadura militar não torna ninguém democrata. Muitos militantes que lutaram contra a ditadura militar no Brasil queriam substituir a ditadura burguesa (a serviço do imperialismo) pela ditadura do proletariado.

Lutar contra a autocracia é dever de qualquer democrata, mas nem todos os que lutam contra autocracias são democratas. Os bolcheviques lutaram contra a autocracia czarista e instauraram outra autocracia (soviética), tão ou mais autoritária.

Não ter rasgado a Constituição não torna ninguém democrata. Cerca de 70% dos esforços de autocratização são feitos, a partir de meados dos anos 90 (segundo levantamento do V-Dem da Universidade de Gotemburgo), por meios legais.

Combater o populismo-autoritário de extrema-direita com outro populismo de esquerda não torna ninguém democrata. Todos os populismos são iliberais e majoritaristas.

Mas a esquerda não é democrática? 

Para saber se alguém que se diz de esquerda está no campo democrático basta fazer sete perguntas simples:

1) Você apoiou Chávez ou apoia Maduro na Venezuela?

2) Você apoia Daniel Ortega na Nicarágua?

3) Você apoiou Correa no Equador ou apoiou Evo na Bolívia?

4) Você acha que a sociedade está dividida por uma única clivagem, separando o povo, de um lado e as elites, de outro?

5) Você acha que a polarização povo x elites deve ser encorajada (na base do “nós” contra “eles”)?

6) Você concorda com o majoritarismo, quer dizer, com a ideia de que a democracia é a prevalência da vontade da maioria?

7) Você acha que as minorias políticas (antipopulares) não devem ser toleradas quando impedem a realização das políticas populares e que a legalidade institucional (erigida para servir às elites) não deve ser respeitada quando se contrapõe aos interesses do povo?

Se alguma resposta for sim, estamos diante de um neopopulista – i-liberal e majoritarista – não de um democrata.

Não importa para nada que um ator político se diga de extrema-esquerda, de esquerda, de centro-esquerda, de centro-direita, de direita ou de extrema-direita. O que importa é não ser populista.

Agora que as vias não-eleitorais (como as que pregavam, à esquerda, a insurreição popular, a guerra popular prolongada ou o foco revolucionário e, à direita, o golpe militar, o golpe de Estado com tanques nas ruas) estão extintas ou são apenas vestigiais, ser democrata é, para todos os efeitos práticos, ser não-populista.

Pois bem. Ou um campo não-populista se articula agora para interromper a trajetória genocida de Bolsonaro, ou nas próximas eleições ficará marginalizado e desaparecerá, por muito tempo, da cena pública.

O impeachment hoje é a campanha do impeachment. Mesmo que o impeachment não aconteça, a mobilização para que ele aconteça é fundamental para alterar a configuração da disputa política. Se os democratas não puxarem um movimento pelo impeachment de Bolsonaro, sairão do jogo. Simples assim. Triste assim.


Imagem: flagrante de populistas de esquerda reunidos em Cuba por ocasião das exéquias de Fidel.

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Carta Aberta à Sociedade Referente a Medidas de Combate à Pandemia