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Democracia: não há modelo e (quase) não há fontes originais

Manuel Castells (2017), termina o primeiro capítulo do livro Ruptura: a crise da democracia liberal, sobre a crise de legitimidade da política, dizendo que “procuramos às cegas uma saída que nos devolva aquela democracia mítica que pode ter existido em algum lugar, em algum tempo”.

Devemos considerar tal procura como parte do problema. Nunca houve essa democracia ideal, nem mesmo no chamado período de ouro da democracia ateniense, no entre-guerras que vai de 462 (fim das guerras com os persas) e 432 (início da guerra com os espartanos), quando o ambiente da cidade foi propício à prática da política como persuasão, floresceram os sofistas, como Protágoras e um núcleo inovador (que se reunia, às vezes, na casa de Aspásia) atuou sob o protagonismo de Péricles.

A democracia sempre foi uma bagunça mesmo. É da sua, digamos, “natureza”, só poder ser ensaiada na beira do caos. É ali, na experiência de se comprazer na liberdade (ou de conviver na comunidade política), que a democracia está acontecendo, sem um plano diretor. Não há um modelo à evocar para tentar implantar, tendo como guia a busca de um estado perfeito, que teria existido antes da corrupção do tempo (como na retropia platônica).

E a democracia acontece não porque conseguimos copiar um bom modelo e sim através de nossos atos singulares e precários de tornar modos de regulação de conflitos mais pazeantes (menos guerreiros) e, em consequência, padrões de organização mais distribuídos (menos hierárquicos). Ou seja, a democracia acontece toda vez que conseguimos desconstituir autocracia e perdura a não ser enquanto conseguimos desconstituir hierarquia, adotando novos modos de vida em rede.

Eis um bom fio para ser puxado.

CONDICIONAMENTO RECÍPROCO

Nas nossas investigações dos últimos vinte anos sobre redes e democracia descobrimos que existe um condicionamento recíproco (não uma relação de causação) entre o padrão (social) de organização e o modo (político) de regulação de conflitos. Isso modificou nossa visão da democracia.

A democracia – como processo de desconstituição de autocracia – só perdura quando há padrões de rede com significativo grau de distribuição (e, consequentemente, de conectividade e interatividade). E fenece em ambientes hierárquicos (ou com alto grau de centralização).

Deseducamos as pessoas quando repetimos que a política é uma luta para alcançar o poder e nele se manter. A política (propriamente dita, quer dizer, a democracia) é uma experiência de contra-poder (se entendermos por poder a capacidade de excluir nodos e eliminar conexões).

Quando uma pessoa luta para alcançar uma posição de poder, sua luta – mesmo que ela não se dê conta disso – é parte do processo de reprodução de uma estrutura (vertical) de poder. Poder, nesse sentido, é sinônimo de guerra (do ponto de vista democrático, o contrário da política). Mesmo que seja a guerra fria ou a política praticada como continuação da guerra por outros meios (a fórmule-inverse de Clausewitz-Lenin que, a rigor, é antipolítica).

E a guerra, no sentido acima, é a autocracia. Não é, como se pensa, a destruição de inimigos e sim a construção e manutenção de inimigos, reais ou imaginários (tanto faz a Eurásia quanto a Lestásia). O objetivo da guerra não é matar pessoas e sim matar a rede. Aquela mesma rede – feita de nodos e conexões – sem a qual a experiência democrática não pode perdurar. Por isso é tão importante a descoberta de que há um condicionamento recíproco entre rede e democracia ou, inversamente, entre hierarquia e autocracia.

NÃO HÁ MODELO DE DEMOCRACIA

Se estamos tentando entender a barafunda que era a democracia ateniense no século 5 e, pior, no 4 a.C., temos de partir da premissa de que é quase inútil estudar um modelo (e o “modelo” dos atenienses era meio caótico mesmo – ainda bem). A democracia é um processo de desconstituição de autocracia e, assim, só pode ser aprendida pelo avesso.

Para tanto, na era clássica, seria preciso começar estudando Esparta (e também Creta e Siracusa) para entender por que a democracia é fundamental. E depois teríamos de estudar o tribalismo patriarcalista dos dórios e, recuando no tempo, suas nebulosas origens indo-europeias. Mas se quiséssemos encontrar as raízes originais da tirania então seria preciso recuar ainda muitos milênios para investigar os deuses patriarcais (sobrenaturais) como se fossem programas (em especial os deuses sumerianos; e também os egípcios e de outros povos de predadores e senhores – que são diferentes versões do mesmo programa hierárquico-autocrático). Estes, entretanto, são temas para outros trabalhos.

Mesmo assim, estamos obrigados a estudar a experiência concreta dos atenienses da era clássica.

UMA CRONOLOGIA DA DEMOCRACIA ATENIENSE

Uma cronologia da experiência ateniense voltada para captar o genos da democracia, deve mais excluir do que incluir. Sim, temos de excluir muita coisa para nos concentrarmos no fundamental: quais foram, realmente, os eventos marcantes do século 5 a.C. Uma tentativa nesse sentido poderia ser a seguinte:

508 Reforma de Clístenes

492 Morte de Clístenes (data incerta)

499-449 Guerras com os persas

462 Reforma de Efialtes

462 Morte de Efialtes e início do protagonismo de Péricles

462-432 Apogeu da experiência democrática e da atividade dos sofistas

444 Associação de Protágoras com Péricles (data simbólica)

445 Associação de Aspásia com Péricles

431-404 Guerra do Peloponeso

429 Morte de Péricles

422 (415) Morte de Protágoras

411 Primeiro golpe (dos 400) contra a democracia

404 Segundo golpe (dos 30) contra democracia

401 Terceiro golpe (frustrado) contra a democracia e morte de Aspásia

O que veio depois, importa, sim, mas não é tão fundamental para quem quer captar, como foi dito, o genos da democracia.

Aqui há algo não trivial. A primeira democracia foi ferida de morte um século antes do seu desaparecimento (em 322 a.C.). Foi a Guerra do Peloponeso (431-404 a.C.) que matou a rede social que possibilitou o incrível florescimento dos trinta anos de ouro da democracia (462-432 a.C.). Foi ainda durante a guerra que vieram os dois golpes oligárquicos – com o apoio da aristocracia militar espartana – contra a democracia (em 411 e 404 a.C.). A democracia floresceu no entre-guerras: entre o final das guerras com os persas e o início da guerra com os espartanos. Como já foi dito, o propósito da guerra não é matar pessoas (um efeito colateral) e sim matar a rede social. E sem uma rede social suficientemente distribuída, a democracia não pode perdurar.

Outra descoberta não trivial é que somente meio século depois da reforma de Clístenes – que instituiu uma centena de poleis distritais para substituir o poder do genos pelo poder do demos – a democracia começou a viger para valer. Nos primeiros cinquenta anos depois da reforma de Clístenes os oligarcas da aristocracia fundiária costumavam ganhar todas as eleições, nas várias poleis instituídas e, sobretudo, no Areópago. Ninguém sabe quando foi adotado o sorteio no lugar da eleição no Areópago – mas foi isso que preparou o caminho para o apogeu da democracia a partir da reforma de Efialtes (retirando do Areópago suas funções políticas). Significativamente, o primeiro golpe dos oligarcas contra a democracia ateniense, instaurando a Ditadura dos 400 foi, na verdade, um golpe contra o sorteio. Os membros autocratas da aristocracia fundiária nunca temeram eleições e sim o sorteio que, em 411, substituíram pela nomeação.

UMA NOTA SOBRE AS FONTES DOS SÉCULOS 5 E 4

Infelizmente não é possível ir às fontes para dirimir nossas dúvidas, simplesmente porque as fontes sumiram.

Dos escritos da época (do século 5) encontramos de realmente fundamental:

472 Ésquilo Os Persas

440-430 Heródoto Os nove livros da História

431 a 424 Pseudo-Xenofonte A Constituição de Atenas

424 Eurípedes As Suplicantes

430-404 Tucídides História da Guerra do Peloponeso

Os principais, digamos, protagonistas da democracia não deixaram nada escrito (ou, se deixaram, seus escritos desapareceram): nada de Clístenes, nada de Efialtes, nada de Péricles, nada de Aspásia e nada (a não ser fragmentos) de Protágoras e de outros sofistas.

Do século 4 temos muito mais registros, porém menos fundamentais. Alguns exemplos dos textos mais importantes:

395 Xenofonte Constituição dos Lacedemônios

369 Xenofonte Memoráveis

360 Xenofonte Apologia de Sócrates (data incerta)

380 Platão A República

379 Platão O Político

347 Platão As Leis

336 Aristóteles A Política

329 Aristóteles (atribuída) A Constituição de Atenas

Com exceção de Heródoto e Tucídides, de Ésquilo e de Eurípedes, toda a literatura que sobrou da época (salvo alguns fragmentos dos sofistas e de outros) ou foi escrita por pessoas que não entenderam bem a democracia (como é o caso de Aristóteles) ou por pessoas que eram francamente contrárias à democracia (casos do Pseudo-Xenofonte, de Xenofonte e de Platão).

Depois de Os Persas, de Ésquilo (472 a.C.) – na célebre passagem, referindo-se aos atenienses: “eles não são súditos, nem escravos de ninguém” – talvez a única nota positiva à democracia que nos restou em algum escrito do século 5 foi a passagem de As Suplicantes de Eurípedes (424) em que há uma alusão clara ao funcionamento da democracia ateniense no século 5 (governo do demos, rotativismo anual nos cargos públicos, igualdade de direitos para ricos e pobres):

ARAUTO: “Quem é o rei? A quem devo anunciar?… TESEU: “Antes de mais começaste o discurso por uma falsidade, estrangeiro, ao procurar um tirano em Atenas que não está sob a chefia de um só, mas é uma cidade livre. O povo governa, alternadamente, por rotações anuais. Neste país ao rico não se concedem privilégios e o pobre goza de iguais direitos… Nada é mais nocivo à polis do que o tirano. Sob o seu domínio não existem leis válidas para todos: apenas um homem detém o poder, instituindo-se em lei própria. Desse modo nunca há igualdade”.

Claro que há relatos anteriores a Eurípedes em Heródoto (440-430) e possivelmente contemporâneos em Tucídides (430-404) que mencionam a democracia (além de fragmentos de textos dos sofistas) – mas são de outra natureza (são mais registros históricos do que livres opiniões favoráveis à democracia). Se não fosse, talvez, pelas obras de um dramaturgo e de um poeta, não teríamos nenhum texto inteiro com uma defesa clara da democracia escrita no século 5 (justamente o século do seu apogeu).

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