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Três artigos importantes sobre a guerra de Putin na Ucrânia

Três artigos, publicados anteontem e ontem (04 e 05/03/2022) na grande imprensa, são muito importantes para entendermos as repercussões, no Brasil, da agressão militar de Vladimir Putin à Ucrânia. Seguem reproduzidos abaixo.

Na longa mesa de Putin

Demétrio Magnoli, Folha de S. Paulo (04/03/2022)

Ultradireita e esquerda petista subordinam relações internacionais a preferências de natureza ideológica

Bolsonaro sentou-se à longa mesa de Putin para expressar “solidariedade” à Rússia, às vésperas da invasão da Ucrânia. Depois, quando as cidades ucranianas enfrentavam bombardeios, o Itamaraty conferiu substância à palavra do presidente. Simultaneamente, a bancada de senadores do PT reproduziu as cínicas justificativas do Kremlin para a guerra de agressão. Só ingênuos incorrigíveis ficaram surpresos.

A ultradireita brasileira cindiu-se em duas facções. Uma, autenticamente “olavista”, posicionou-se contra a Rússia, devido à aliança entre o Kremlin e os odiados chineses. A outra, com a qual se perfilou Bolsonaro, escolheu o lado de Putin, curvando-se às simpatias de Trump e às estreitas ligações do líder russo com partidos da extrema direita europeia.

O PT não se dividiu, mas exercitou os esportes da simulação e da ofuscação. A nota putinista dos senadores foi apagada e revertida após um pito da direção nacional. Os gênios que a escreveram, operando em modo automático, esqueceram de considerar seus previsíveis efeitos sobre a campanha eleitoral de Lula. Mas ela expressava a posição genuína do partido – e, não por acaso, Lula alinhou-se a Bolsonaro na negativa de condenar a invasão de uma nação soberana.

O Brasil oficial cobre-se de vergonha. Há quase duas décadas, na hora da invasão americana do Iraque, a representação brasileira na ONU juntou-se à França e à Alemanha na justa condenação da guerra de escolha –e isso quando a nação agredida vivia sob a ditadura sanguinária de Saddam Hussein. Agora, porém, o governo brasileiro optou pela solidariedade com o agressor.

A China absteve-se na votação das Nações Unidas. O Brasil votou pela resolução condenatória, mas apenas para inglês (digo, americano) ver. Na prática, o Itamaraty criticou as sanções à Rússia e a entrega de armas à Ucrânia, pedindo um cessar-fogo. A ilusória “neutralidade” bolsonarista forma o roteiro dos sonhos de Putin: sem sanções dissuasórias e enfrentando um país carente de armas, a Rússia completaria mais facilmente o assalto militar e imporia um cessar-fogo baseado numa capitulação versalhesa da Ucrânia.

A nota dos senadores e os artigos assinados por quadros do PT indicam que, se Lula já ocupasse a cadeira de Bolsonaro, a postura brasileira seria essencialmente a mesma. Por meio das acrobacias retóricas habituais, o Brasil da esquerda também ofereceria amparo às mentiras emanadas de Moscou. No lugar da Constituição, que define o respeito à soberania e autodeterminação das nações como pilares da política externa nacional, a ultradireita e a esquerda petista subordinam nossas relações internacionais a preferências de natureza ideológica.

João Pereira Coutinho, perspicaz, atribuiu a confraternização entre esquerda e direita à “doença” da “nostalgia” (Folha, 28/2). Contudo, no caso brasileiro, há mais que a utopia de restaurar o passado perdido da URSS ou do Império Russo. A política externa do governo Bolsonaro não é formulada em Brasília, mas na Flórida, em Mar-a-Lago, base de Trump. Já a política externa do PT é delineada lá perto, em Havana, o que também explica o apoio inarredável a Maduro e Ortega.

As narrativas de guerra fabricadas no Kremlin seguem ecoando, bem além da Rússia. A Folha publicou diversos artigos dos papagaios de Putin –e sem nenhum protesto do comitê de Jornalistas pela Censura Virtuosa (Jocevir), que só ergue sua caneta vermelha para vetar as opiniões de críticos antirracistas das políticas identitárias.

Tudo que é de interesse público e não viola as leis brasileiras deve ser impresso. Os textos dos escribas putínicos são de interesse público pois descortinam a extensão da miséria política nacional. Funcionam como provas documentais do encontro, na mesa imperial de um anti-imperialismo de araque, da ultradireita bolsonarista com a esquerda petista.

A Rússia é culpada, sem adversativas

Carlos Alberto Sardenberg, O Globo (05/03/2022)

Como não dá a menor atenção a questões ambientais, sociais e de sustentabilidade, o presidente Putin não percebeu a enorme mudança ocorrida nas corporações privadas ocidentais: a era da responsabilidade social. E, assim, cometeu o maior erro de cálculo de seu ataque à Ucrânia: não imaginou que as grandes multinacionais, envolvidas em negócios bilionários com o governo e empresas russas, pudessem aderir de maneira avassaladora às sanções contra o país.

Todas essas multinacionais estão perdendo muito dinheiro. A Embraer informou que não prestará mais assistência aos 30 aviões que voam na Rússia. Nem assistência técnica, nem fornecimento de peças. Logo, deixa de receber dólares por um serviço.

A BP simplesmente cancelou sua participação no capital de empresas petrolíferas russas — assimilando uma perda patrimonial de US$ 25 bilhões e perdendo acesso a importantes reservas de óleo e gás.

Por que fazem isso? Porque, no mundo corporativo contemporâneo, contam muito os valores éticos, a responsabilidade com o público e a sociedade.

Muita gente dizia que isso de ESG — environmental, social and governance — era puro marketing. Uma enganação para parecer politicamente correto. Mas o verdadeiro cancelamento que as multinacionais impuseram aos negócios com a Rússia teve efeitos devastadores. As ações das 11 maiores empresas russas listadas na Bolsa americana Dow Jones viraram pó. Uma queda de 98%!

Perderam riqueza empresas e pessoas russas, mas também empresas e pessoas do mundo ocidental.

As sanções de governos eram esperadas. Mesmo assim, foram mais fortes do que se imaginava e podem escalar com a proibição total de importação de petróleo e gás russos. A adesão tão completa das multinacionais — às vezes, mais forte que as governamentais — é a parte nova desta história.

O isolamento global imposto à Rússia é uma atitude ao mesmo tempo geopolítica e moral. É para dizer: não, a Rússia não pode invadir a Ucrânia e ponto final. A Rússia é a criminosa; a Ucrânia, a vítima. E a ordem jurídica internacional, tal como definida na Carta da ONU, também é vítima. A Rússia viola escandalosamente o princípio de integridade territorial.

São inteiramente equivocadas as análises segundo as quais a Rússia se sentiu ameaçada pelo avanço da União Europeia e da Otan na direção do Leste Europeu, dos ex-satélites soviéticos. Sei que gente bem-intencionada diz isso. Ainda assim, é um grave equívoco. E, sim, equivale a dar razão a Putin.

A Rússia não estava sob nenhuma ameaça militar. O que estava e está se desfazendo é a ideologia sustentada por Putin, segundo a qual os valores ocidentais — liberdade individual, direitos de minorias, imprensa e partidos livres e o modo ESG — estavam em colapso.

A tremenda reação do Ocidente provou o contrário. Assim, pessoal, nada de adversativas, nada de “mas, porém”.

Compreendo que muita gente não gosta de ver que o Ocidente está do lado certo desta vez. Como Lula. Ele disse no México que os presidentes “envolvidos” deveriam cessar a guerra. “Envolvidos” — eis uma expressão marota, para dizer o mínimo. A Ucrânia está envolvida na guerra… como vítima. É o cúmulo do mau-caratismo pedir que ela, Ucrânia, cesse a guerra. E entregue tudo para o agressor?

Aliás, Bolsonaro também não condena a Rússia.

Também é equivocado — e maneira indireta de dar razão a Putin — dizer que é perigoso acuar o ditador russo. Trata-se do contrário: é perigoso para o mundo deixar que Putin execute seu imperialismo criminoso sem nenhuma oposição.

Os países do Leste Europeu que aderiram ou estão aderindo à União Europeia e à Otan o fizeram livremente. Nem precisa pensar muito para entender por quê. Você preferiria aliar-se a uma Europa democrática e rica ou a uma ditadura imperialista?

As sanções geram uma inflação mundial. Mas, como disse o presidente Zelensky, um dólar a mais no preço da gasolina não parece caro diante do crime cometido contra o povo ucraniano.

Só as sanções podem levar o povo russo a deter Putin.

O Brasil na vanguarda do atraso

Ricardo Rangel, Revista Veja (09/03/2022)

A guerra no Leste Europeu revela onde Bolsonaro e Lula estão

Vladimir Putin fez uma agressão não provocada à Ucrânia, país soberano e pacífico. Mentiu que a Ucrânia não existe como Estado independente. Mentiu que o governo ucraniano é neonazista. Mentiu que seu objetivo é proteger os habitantes de Donbass (por que a Rússia está bombardeando Kiev, do outro lado do país?). Mentiu que foi uma ação para impedir que a Ucrânia entre para a Otan: não havia perspectiva de inclusão da Ucrânia. E, se fosse assim, por que Putin concordou com a entrada das repúblicas bálticas na Otan em 2004? E que argumento é esse de que se pode invadir um país soberano para impedi-lo de fazer acordos internacionais?

O mundo não comprou o lero-lero de Putin e repudiou em peso a invasão. No Brasil, entretanto, nada é simples. Os bolsonaristas ficaram confusos, sem saber se a Rússia é o monstro-­comunista-inimigo-da-civilização-cristã, como disse a máquina de fake news durante anos, ou se Putin é “conservador”, conforme Bolsonaro agora o descreve. Para complicar, Putin tem o apoio de outros monstros comunistas, como China, Cuba e Venezuela.

Na dúvida, siga o líder. Bolsonaro — que visitou a Rússia às vésperas da invasão e declarou “solidariedade” aos russos — recusou-se a condenar o ataque e avisou que o Brasil é “neutro”. O Itamaraty faz o que pode para botar o país no lugar certo, mas todo mundo sabe onde Bolsonaro está.

Faz sentido que Bolsonaro, que defende ditadura e tortura, apoie Putin, um ditador fascista e homofóbico que acredita na lei do mais forte, mata inimigos e massacra populações, como fez na Chechênia e faz agora. E que quer recriar um passado idealizado e glorioso (o Império Russo). Ou seja, é o modelo acabado do que Bolsonaro quer ser.

A esquerda brasileira também ficou tonta. A visão geopolítica tradicional de nossa esquerda tem três linhas básicas: 1) contra os Estados Unidos; 2) a favor de ditaduras de esquerda; 3) contra ditaduras de direita. Até o fim da Guerra Fria, era fácil conciliar as três linhas, hoje é impossível. Grande parte da esquerda, PT e penduricalhos incluídos, optou pelo antiamericanismo, que é supremo.

O PT condenou a “política de longo prazo dos Estados Unidos de agressão à Rússia e de expansão da Otan” — nem uma palavra sobre a agressão da Rússia à Ucrânia. O ex-chanceler petista Celso Amorim é “contra as sanções” (mas não contra a Rússia) e “a favor do diálogo” (mas não da Ucrânia).

Lula tuitou que “ninguém pode concordar com ataques militares de um país contra o outro” — não mencionou Rússia nem Ucrânia. Depois, falou da Rússia, mas antes criticou o Ocidente: “Foi assim que os Estados Unidos invadiram o Afeganistão e o Iraque e que a França e a Inglaterra invadiram a Líbia; é assim que a Rússia está fazendo com a Ucrânia”. Esqueceu que a Ucrânia é democrática e pacífica; o Afeganistão, dominado pelo sanguinário Talibã, protegia o terrorista Bin Laden; a Líbia era uma ditadura em sangrenta guerra civil e a intervenção foi determinada pela ONU.

O mundo inteiro está unido em defesa da Ucrânia, mas as principais lideranças brasileiras são incapazes de defender a democracia com firmeza. Nós somos a vanguarda do atraso.

Diplomacia democrática é defender a democracia

O artigo de Putin sobre a Ucrânia