Por que os intelectuais de esquerda não entendem o modo petista de fazer política?
O modo petista de fazer política segue a máxima autocrática: você não faz política com seus amigos e sim com seus inimigos. Melhor se puder fabricar esses inimigos e gerenciá-los. Melhor ainda se puder internalizar esses inimigos, não para transformá-los em amigos e sim em inimigos íntimos. O próprio PT, nas suas instâncias máximas, é uma reunião de inimigos íntimos. É uma coabitação de inimizades: o melhor exemplo disso é a relação entre Lula e Dirceu.
São conhecidas (por quem conhece o assunto – o que não é o caso da maioria dos jornalistas e dos acadêmicos que querem ajudar o partido) as quatro medidas básicas do modo petista de fazer política.
1 – A primeira medida é fabricar e gerenciar a própria oposição. O PT fez isso com o vacilante, leniente e conivente PSDB durante anos a fio. Os tucanos forem feitos de escada e oposição providencial para a manutenção do petismo. Melhor exemplo: foram eles que salvaram Lula em 2005.
2 – A segunda medida é trazer qualquer potencial oposição do mesmo campo para dentro do partido externo (tem que ler Orwell para entender a diferença entre Partido Externo e Partido Interno). O PT treinou isso longamente, com a luta interna entre muitas tendências.
3 – A terceira medida é tentar capturar elementos da oposição funcional como linha auxiliar do comando lulopetista. Lula fez isso com Aécio em 2003 e ele (esperto como um “malandro agulha”) até chegou a acreditar que seria o seu enfant gâté e possível sucessor. De outro modo e em novas circunstâncias, está fazendo a mesma coisa agora com Alckmin.
4 – A quarta medida (mas na verdade uma medida que vem antes da primeira) é separar claramente o partido interno (de quem manda de fato) do partido externo (no qual pode caber qualquer um, desde que não ameace a liderança máxima, em função da qual se erige a verdadeira hierarquia partidária).
O que os intelectuais de esquerda – e muitos analistas políticos, inclusive – não entendem é que tudo isso beira à antipolítica, revela concepções e práticas autocráticas, não democráticas. Porque tudo isso faz parte de um complexo de comportamento hegemonista.
O PT simula, na sua vida partidária regulada pela luta interna, o mundo exterior que quer conquistar. É assim que o petismo treina seus agentes reprodutores: ninguém precisa dizer-lhes o que fazer; por exemplo, como conquistar um aliado para ficar mais forte e matá-lo ao final, ou como conciliar um discurso generoso pela emancipação dos pobres e pela igualdade social com uma política praticada como continuação da guerra por outros meios. Tudo isso é alcançado sem adestramento explícito, apenas pela configuração do ambiente adversarial em que eles passam a conviver. E aí esses comportamentos hegemonistas são reproduzidos por cloning: na luta interna um imita o outro para não sucumbir ou ser cancelado, o que garante sua reprodução.
É claro que, ao adotar medidas como essas, alguém até poderá ter sucesso na sua vida política, mas se transformará num espalhador de inimizade no mundo. Isso não tem nada a ver com a democracia como modo-de-vida. É o contrário. Mas não pode parecer que seja.
Enquanto os dirigentes cuidam da realpolitik neomaquiavelista, a racionalização gramscista fica por conta da ajuda dos universitários. Sim, é necessário fornecer um sentido altruista a todo esse experimento de criar organismos voltados à guerra (ainda que, como dizia Mao definindo a política, a guerra “sem derramamento de sangue”).
Imagine-se o que Hannah Arendt não desvendaria se tivesse a oportunidade de conhecer por dentro o PT.
“O importante para os movimentos totalitários é, antes mesmo de tomarem o poder, darem a impressão de que todos os elementos da sociedade estão representados em seus escalões: o fim último da propaganda nazista era organizar todos os alemães como simpatizantes” – escreveu Arendt (1951) em Origens do totalitarismo.
Claro que não se está comparando aqui o partido nazista com o PT. Não se pode negar, entretanto, que o objetivo ou a consequência objetiva do hegemonismo é organizar toda a população como simpatizante da causa. É isso o que significa conquistar hegemonia sobre a sociedade a partir do Estado aparelhado pelo partido.
A questão é que há isomorfismos entre todos os movimentos autoritários, sejam quais forem. Há traços de totalitarismo em qualquer movimento autoritário. Mesmo quando movimentos totalitários não conseguem se organizar. Mesmo quando governos totalitários não conseguem se instalar. Estudar os totalitarismos nazista e stalinista é fundamental para identificar a presença desses traços nas alternativas antidemocráticas atuais.
Também é claro que o PT não é uma alternativa antidemocrática. O partido aderiu sinceramente à via eleitoral para chegar ao poder e nele se manter e, assim, tornou-se uma força política democrática eleitoral. O problema é que não é uma força política democrática liberal, já que escoimou de seu repertório muitas matrizes liberais que poderiam neutralizar ou amenizar suas tendências hegemonistas, estatistas e populistas.
Por exemplo, o PT tem uma visão muito positiva do poder político o que se contrapõe ao princípio liberal da democracia, que se caracteriza não pela capacidade de governar e sim de controlar o governo e o que aponta para uma visão negativa do poder político. Para a visão liberal não é o Estado o grande demiurgo que deve transformar a sociedade, conquistá-la para sua causa, educá-la para entender seus propósitos e sim o contrário.
De um ponto de vista conceitual, ser democrata liberal não é aderir a uma corrente político-ideológica. Não se define pela adesão ao capitalismo ou ao socialismo, nem pelo fato de um ator político ser considerado de direita ou de esquerda. Ser democrata liberal é um comportamento político, não um credo. Esse comportamento decorre da observância do que Lührmann, Tannenberg e Lindberg (2018) chamaram – no artigo Regimes of the World (RoW): Opening New Avenues for the Comparative Study of Political Regimes – de princípio liberal da democracia:
“O princípio liberal da democracia enfatiza a importância de proteger os direitos individuais e das minorias contra a tirania do Estado e a tirania da maioria. O modelo liberal adota uma visão “negativa” do poder político na medida em que julga a qualidade da democracia pelos limites impostos ao governo. Isso é alcançado por meio de liberdades civis constitucionalmente protegidas, forte domínio da lei, um poder judiciário independente e freios e contrapesos efetivos que, juntos, limitam o exercício do poder executivo”.
Angela Merkel era democrata-cristã (dita de centro-direita) e Olaf Scholz social-democrata (dito de centro-esquerda, ele havia sido vice-presidente da União Internacional da Juventude Socialista). Mas ambos são democratas liberais e o regime em que governaram e governam a Alemanha é uma democracia liberal. Infelizmente o Brasil não é, segundo qualquer classificação internacional de regimes políticos, uma democracia liberal e sim uma democracia (apenas) eleitoral.
Como uma força política populista (ou neopopulista dita “de esquerda” do século 21 – na linha de Chávez, Correa, Evo, Lugo, Funes e felizmente não na linha de Ortega e Maduro, que viraram ditadores), o PT é majoritarista e i-liberal e isso compõe uma característica autoritária da qual o partido jamais conseguiu se desvencilhar. Justamente nessa medida, cabe, portanto, a referência à Arendt.


