A última pesquisa Datafolha (22/09/2022) traz alguns dados curiosos. Apesar de tudo, da sua ruindade e da campanha concertada por intelectuais, artistas, influencers ou formadores de opinião, jornalistas e analistas políticos dos maiores meios de comunicação contra ele, Bolsonaro sobe entre quem ganha mais de 2 salários mínimos.
Lula só vence em razão da sua imensa vantagem na faixa de renda de quem ganha até 2 salários mínimos. Se perder a vantagem que tem nessa faixa – ou seja, se empatar nessa faixa com Bolsonaro – empata (ou quase) nos votos totais com ele.
Se não fosse nossa imensa pobreza, Lula não ganharia nenhuma eleição. Com efeito, ele terá mais votos onde a renda per capita, o IDH e todos os demais indicadores de qualidade de vida são menores. Sempre foi mais ou menos assim.
Claro que esses números podem mudar se houver uma grande onda arrastando votos para Lula na reta final da campanha. Mas isso será, se acontecer, uma comoção pontual e eventual nas correntes que formam a opinião coletiva, uma perturbação no campo interativo que não altera a constatação atual e as séries históricas das pesquisas.
Você, que está lendo este artigo, provavelmente está na faixa de renda dos que, majoritariamente, preferem Bolsonaro. Aliás, não só você, mas a imensa maioria dos jornalistas e analistas políticos, dos donos de meios profissionais de comunicação, dos chamados influencers (antigos formadores de opinião) e, a rigor, de quem sabe ler (e entender o que leu) e escrever.
Qual é o problema? O problema é que a maior parte da nova PPA (população politicamente ativa) está nas faixas de renda dos que ganham mais de 2 salários mínimos.
Lula será eleito por uma população, em sua maior parte, politicamente passiva, que só vota e comparece a comícios, mas não profere opiniões na esfera pública, não entra em debates, não se articula para persuadir outras pessoas, nem se organiza em prol de um projeto político.
As pessoas que, em sua maioria, votam em Lula, votam porque se sentem representadas por ele, quer dizer, esperando que Lula faça tudo isso por elas. O protagonismo da liderança substitui a sua ação. O neopopulismo lulista é popular, sim, mas porque, nele, o líder substitui o povo.
Isso está de acordo com a visão que Lula tem – e não é de hoje – do significado de sua própria liderança. Em 21 de fevereiro de 2018, ele tuitou:
“Eles estão lidando com um ser humano diferente. Porque eu não sou eu, eu sou a encarnação de um pedacinho de célula de cada um de vocês”.
Ou seja, em outras palavras, o líder já é a síntese do povo. Mas se é assim, para quê o povo? Para o populismo, o povo não é a população e sim apenas a coleção dos que estão sintetizados pelo líder e, por isso, o seguem. A conclusão é meio obvia: o povo só existe se existir o líder. É uma substituição mesmo.
Aliás, a palavra ‘povo’ usada e abusada pelos populistas, tem origens suspeitíssimas. Hannah Arendt (c. 1950) nos seus fragmentos póstumos sobre o O que é política? escreveu:
“No caso dos romanos a política começou como política externa; portanto, exatamente com aquilo que, segundo o pensamento grego, estava situado fora de toda a política. Também para os romanos o âmbito político só podia surgir e existir dentro da coisa legal; mas esse âmbito surgia e se multiplicava ali onde diferentes povos se encontravam entre si. Esse encontro é guerreiro, e a palavra latina populus significava originalmente “mobilização para o exército” (Altheim), mas essa guerra não é o fim, porém o começo da política, ou seja, de um espaço político novo, surgido do tratado de paz e de aliança” (1).
Em geral diz-se que a palavra ‘democracia’ significa ‘poder do povo’. Mas o ‘demos‘ (δῆμος) – que compõe a palavra δημοκρατία: o poder (κράτος) do demos – se referia originalmente aos distritos implantados a partir da reforma de Clístenes (508 a.C.). Sim, foi uma reforma distrital, que substitiu o poder do ‘genos‘ (os aglomerados das grandes famílias da aristocracia fundiária) pelo poder do ‘demos‘ (as novas circunscrições que agregavam pessoas por base territorial, sem ordem de filiação). Na democracia ateniense não havia esse conceito (populista) de ‘povo’ para designar a parte da população que vivia em piores condições socioeconômicas (hoje, grosso modo, nos cortes das pesquisas, os que têm renda familiar igual ou inferior a 2 salários mínimos).
Pior do que isso, entretanto, é interpretar a democracia como soberania popular. Imaginando que democracia seja, fundamentalmente, soberania popular, o neopopulismo dito de esquerda faz um raciocínio simples, primário e incorreto: se nós somos os legítimos (ou mais legítimos) representantes do povo, o “verdadeiro povo” (the true people – composto pelos que seguem o líder), então nós somos a verdadeira democracia (traduzida como uma sociedade menos desigualitária e mais justa). Ou melhor, uma sociedade menos desigualitária e mais justa só poderá se estabelecer quando nós hegemonizarmos todos os processos da vida social, a começar pelas instituições estatais, passando pelos corporações sindicais e movimento sociais, até chegar às diversas formas de sociabilidade.
Mas a democracia não é o poder de um (monarquia), dos melhores (aristocracia), de uma minoria (oligarquia), da maioria ou de todos (majoritarismo e tirania da maioria) e sim o poder de qualquer um. Como notou Jacques Rancière (2005), isso quer dizer: “a indiferença das capacidades para ocupar as posições de governante ou de governado” (2).
Na cabeça de cada populista encontra-se o gérmen de uma ideia de raiz autocrática: a ideia de soberania. Para a democracia nenhuma pessoa, nenhuma parcela da população (nem mesmo a abstração chamada ‘o povo’ para se referir aos mais pobres ou à maioria), nenhum governo, nenhum partido, podem ser soberanos. Só a lei (democraticamente aprovada) pode ser soberana.
Referências
(1) Cf. ARENDT, Hannah (c. 1950). O que é política? (Fragmentos das “Obras Póstumas” (1992), compilados por Ursula Ludz). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.
(2) Cf. RANCIÈRE, Jacques (2005). O ódio à democracia. São Paulo: Editorial Boitempo, 2014.




