Sabemos que, apavoradas com as investidas do ex-governo Bolsonaro contra a democracia, muitas pessoas passaram a acreditar que o maior imperativo do universo é fazer o atual governo “dar certo”. Mas o caminho que escolheram – além de incerto – não leva a isso.
Por exemplo, não é apoiando Haddad contra Gleisi que produzirão esse milagre. O PT não funciona assim. Não se pode esperar que uma “luta externa” vá influenciar o partido. Mesmo porque há um Lula. Se ele pudesse se afastar dos dirigentes e militantes que ainda vivem na guerra fria dos anos 60-90, já teria feito isso.
E ele não quer fazer isso. Porque a sua cabeça também ainda funciona na guerra fria. E por mais pragmático que seja, não vai agora, ao final da vida, mudar radicalmente de orientação. Por isso, seu namoro com as autocracias (como as que estão nos BRICS) não é acidental e sim, digamos, “estrutural”.
O alinhamento de Lula e do PT com Rússia, China, Índia, Irã (e certa simpatia dos seus militantes por Hezbollah e Hamas), Cuba, Venezuela, Nicarágua e Angola é consequência de um ‘antiliberalismo estrutural’. Ou seja, esse apoio preferencial às autocracias – contra as democracias liberais – não tem razões conjunturais (geopolíticas ou econômicas) embora isso seja frequentemente usado como biombo para esconder opções políticas. É uma expressão do seu caráter político estruturalmente antiliberal.
Vejamos um exemplo desse antiliberalismo estrutural. No final de março passado, coincidindo com a viagem meio secreta de Celso Amorim para se encontrar com Putin, em nome de Lula, o PT enviou uma delegação à Rússia, para participar de um evento promovido pelo Rússia Unida (o partido de Putin). Isso dias depois de o Tribunal Penal Internacional (cujas decisões o Brasil formalmente acata) ter emitido um mandado de prisão contra o ditador russo por crimes de guerra cometidos na Ucrânia.
Chefiando a delegação oficial do PT foi o Romênio Pereira, membro do Diretório Nacional do PT, da Executiva Nacional do PT, da tendência majoritária do PT (a de Lula e Dirceu) e atual secretário de relações internacionais do partido. A delegação brasileira também se reuniu com autoridades do ministério do Exterior russo. O tema do encontro era –pasme-se – o imperialismo americano e o neocolonialismo europeu. Eis o seu discurso (degravado do vídeo reproduzido abaixo) no dia 30 de março de 2023:
“Antes de mais nada, quero agradecer, em nome do meu partido, o Partido dos Trabalhadores, o partido do presidente Lula.
O declínio da hegemonia dos Estados Unidos [foi] causado principalmente pela consolidação da China como potência mundial, bem como [pela] sua aliança estragégica com a Rússia.
Diante desta dinâmica, os EUA adotam medidas cada vez mais agressivas. Devem ser lidos por essa lógica o cerco contra a revolução bolivariana na Venezuela, o bloqueio contra Cuba, o apoio à derrubada de Evo Morales na Bolívia e o golpe contra Dilma Rousseff.
Nesse contexto também há a base da guerra entre Rússia e Ucrânia. Com o fim da União Soviética e o Pacto de Varsóvia, muitas pessoas honestas assumiram que os EUA e seus aliados desmontariam a OTAN. Mas não foi isso que aconteceu. A OTAN não apenas continuou existindo, mas também ampliou sua composição e a abrangência de suas atividades.
É público que a OTAN tinha como objetivo incorporar de fato ou de direito a Ucrânia. Por isso patrocinaram o golpe de Estado que ocorreu na Ucrânia em 2014, com participação pública aberta de paramilitares que proclamavam-se adeptos do nazismo. Por isso esta guerra está enraizada em um contexto mais amplo.
Portanto, mesmo que prevaleça a disposição de uma saída negociada que faça a OTAN recuar e garanta a autodeterminação e neutralidade a Ucrânia, devemos lembrar que esse episódio não é um raio que caiu do céu. É uma parte integrante do período histórico que começou com a crise de 2008, um ano marcado por uma grande instabilidade, crises recorrentes, guerras brutais, mas também luta feroz contra o imperialismo e o colonialismo moderno. E é preciso que nossos povos, nossos partidos, nossos governos, estejam à altura dessa luta.
Muito obrigado”.
A frase final dessa infeliz repetição de alegações da máquina de propaganda da autocracia russa é uma declaração de que o Brasil, na concepção do PT, deve se preparar para entrar numa segunda grande guerra fria, ao lado das autocracias contra as democracias liberais (os EUA, que seriam imperialistas e os países europeus, que seriam neocolonialistas). Claro que isso nunca será assumido assim. Para se alinhar com as piores ditaduras do planeta contra as democracias liberais, o governo Lula falará sempre em nome da paz e adotará – até onde for possível – uma posição de (falsa) neutralidade (como está fazendo no caso da guerra de agressão de Putin contra a Ucrânia – ver matéria abaixo).
Esse exemplo é importante porque ele é chave para entender o caráter do PT. A política externa do governo é a política externa do PT. E a política externa do PT é o PT. É nela que tudo se revela.
Recusa do Brasil em vender armas para a Ucrânia se transforma em problema para Zelenski
André Spigariol e Jack Nicas, The New York Times | O Estado de São Paulo (12/04/2023)
Governo Lula se recusou pelo menos duas vezes a vender armamentos para Kiev
Enquanto o Brasil se preparava para a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016, comprou 34 canhões antiaéreos da Alemanha para se proteger durante o evento. Então, depois que a Rússia invadiu a Ucrânia, o governo alemão começou a enviar à Ucrânia aquelas mesmas armas de canhão duplo, que podem derrubar uma aeronave a mais de cinco quilômetros de distância. Assim, as autoridades alemãs pediram ao governo brasileiro no ano passado que devolvesse a munição não utilizada. Mas a resposta do Brasil foi clara: não se fosse para a Ucrânia.
O maior país da América Latina se encontra em uma posição complicada. Sob o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o Brasil pediu paz e, em declarações cuidadosamente formuladas, criticou a invasão da Rússia. Mas o país, que depende da Rússia para fertilizantes e combustível, também deixou claro que não enviará nenhuma arma destinada às linhas de frente e, em vez disso, está pressionando para mediar as negociações de paz.
A Ucrânia fez pelo menos dois pedidos ao Brasil para comprar uma longa lista de armamentos que incluía veículos blindados, aeronaves, sistemas de defesa aérea, morteiros, rifles de precisão, armas automáticas e munições, de acordo com correspondência obtida pelo The New York Times por meio da lei de acesso a informação. O Brasil ignorou amplamente os pedidos.
Brasil negou dois pedidos de Kiev para compra de armamentos
As negativas dos países são motivadas por uma série de fatores: política doméstica, políticas internas que os impedem de armar países envolvidos em conflitos e sua dependência da Rússia para importações cruciais. No entanto, eles também podem ser parceiros críticos para a Ucrânia.
O Brasil, em particular, é um produtor importante de aviões de guerra, muitos fabricados pela fabricante brasileira de aeronaves Embraer. De acordo com especialistas em armas, Kiev precisa de aviões e países em desenvolvimento como o Brasil possuem sistemas de armas que são mais baratos de operar e manter.
“Prejudica a Ucrânia porque ela se torna excessivamente dependente dos suprimentos da Otan, que são doados, mas são extremamente caros de manter, porque vêm de países ricos que possuem e fabricam armas extremamente sofisticadas”, apontou Sandro Teixeira Moita, professor de estratégia militar da Colégio de Comando e Estado-Maior do Exército Brasileiro. “Os países do sul global têm sistemas de armas mais adequados às suas realidades.”
O Brasil diz que seu princípio orientador de política externa há muito é permanecer amigo de todos.
Brasil já vendeu armamentos para países em guerra
Ainda assim, o país se mostrou disposto a vender para outras nações em guerra. Desde o início da Guerra do Iêmen em 2014, o Brasil forneceu à Arábia Saudita e aos Emirados Árabes Unidos mais de 21.000 toneladas de armas e munições no valor de US$ 680 milhões, incluindo munições cluster condenadas internacionalmente, segundo dados comerciais.
De acordo com documentos que foram vazados do Pentágono, a Ucrânia está cada vez mais desesperada por armas para conter as tropas russas, especialmente o tipo de defesa aérea que o Brasil pode fornecer. Com o esgotamento das armas no Ocidente, a Ucrânia e seus aliados estão pressionando algumas nações que evitaram se envolver no conflito para que cedam e enviem ajuda.
Mas em um sinal preocupante para a Ucrânia – e, por extensão, uma vitória da política externa para a Rússia – alguns desses países dizem que pretendem ficar de fora.
O presidente da Colômbia, Gustavo Petro, disse em janeiro que rejeitou os pedidos americanos para enviar as armas do país de fabricação russa aos Estados Unidos, que planejavam entregá-las à Ucrânia, porque a constituição colombiana exige que ele busque a paz. Ele acrescentou que a América Latina não deve escolher lados. “Não estamos com ninguém”, disse Petro.
A Coreia do Sul também se recusou a oferecer assistência letal à Ucrânia, citando sua política de não enviar armas a um país em guerra. Os documentos vazados do Pentágono sugeriram que altos funcionários em Seul temiam a pressão de Washington para enviar munição para a Ucrânia de qualquer maneira. O governo sul-coreano contestou a precisão dos documentos.
Brasília depende de Moscou para comprar fertilizantes
O Brasil, um dos maiores produtores de alimentos do mundo, também depende da Rússia para um quarto de seus fertilizantes. Em 2022, quando a Rússia atacou a Ucrânia, o Brasil comprou mais de 8,8 milhões de toneladas de fertilizantes russos, abaixo dos 10,2 milhões em 2021. O Brasil é o principal comprador de fertilizantes russos e a Rússia o principal fornecedor dos agricultores brasileiros.
O ex-presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, manteve um relacionamento caloroso com o presidente Vladimir Putin da Rússia, chegando a visitar o Kremlin seis dias antes de a Rússia lançar sua invasão no ano passado. Mais tarde, Bolsonaro elogiou a visita em sua campanha fracassada de reeleição, dizendo que o fez para garantir fertilizantes e combustível necessários.
“Economicamente, é uma vitória fácil para os dois países que eles não querem arriscar”, disse Andrés Gannon, pesquisador militar do Conselho de Relações Exteriores, sobre o Brasil e a Rússia. O Brasil também há muito busca um assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas, disse Gannon, portanto, manter-se neutro pode evitar a divisão dos votos de russos e americanos sobre sua composição.
Autoridades ocidentais esperavam que a vitória de Lula nas eleições do ano passado, considerado mais próximo dos líderes ocidentais do que Bolsonaro, abriria as vendas de armas do Brasil para a Ucrânia. Mas a neutralidade é uma das poucas questões em que Lula e Bolsonaro estão alinhados.
Poucas semanas depois de assumir o cargo em janeiro, Lula rejeitou outro pedido de munição da Alemanha para equipar os tanques Leopard que está enviando para a Ucrânia.
Em vez disso, o presidente brasileiro impulsionou um plano diferente: ele quer intermediar a paz.
Em reuniões com o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, o chanceler Olaf Scholz da Alemanha e o presidente Volodmir Zelenski da Ucrânia, Lula apresentou um plano para um grupo de nações neutras mediar as negociações de paz.
Zelensky disse que as negociações de paz não são possíveis até que a Rússia retire suas forças da Ucrânia, enquanto o Kremlin diz que qualquer acordo deve levar em conta o território que a Rússia agora ocupa.
Lula disse que apresentaria seu plano de negociações de paz à Rússia e à China. Ele deve se encontrar com o presidente Xi Jinping da China em Pequim na sexta-feira.
Os documentos vazados do Pentágono diziam que, de acordo com a inteligência dos EUA, o Ministério das Relações Exteriores da Rússia apoiou o plano de Lula de “estabelecer um clube de mediadores supostamente imparciais para resolver a guerra na Ucrânia”.
Os países ocidentais temem que o Brasil esteja se inclinando para a Rússia, afirmaram quatro altos diplomatas europeus no Brasil, que falaram sob condição de anonimato por causa da delicada diplomacia envolvida. As autoridades citaram o recente alinhamento do Brasil com Moscou no Conselho de Segurança da ONU, incluindo uma votação no mês passado para uma investigação sobre explosões nos gasodutos Nord Stream entre a Rússia e a Alemanha. A Rússia propôs a resolução e apenas Rússia, China e Brasil votaram a favor dela.