Difícil entender como se pode fingir que não está acontecendo nada neste momento no país, assolado por uma crise ética sem precedentes, uma crise política atípica – que vem revelando, como nunca, o apodrecimento de nosso sistema representativo e a inadequação do padrão de relação vigente entre Estado e sociedade – e uma crise econômica que afeta profundamente a vida de dezenas de milhões de pessoas.
Entendo que muitas pessoas – inclusive minhas amigas – não queiram se meter no que chamam de “política”. Também entendo que, dentre estas, haja algumas que prefiram falar de outras coisas, mais ligadas aos projetos bacanas e às ações positivas que estão realizando, já que o sistema foi dado como perdido e sem solução. Mas fico com a impressão de que muitas se comportam assim para não estressar as relações com seus parentes e amigos, com suas tribos e, em alguns casos, com seus empregadores e financiadores. Essas últimas querem se preservar de desgastes que julgam desnecessários. Para quê ficar falando do que não tem jeito mesmo? Bora fazer coisas legais, deixar tudo isso de lado e criar um outro mundo porque este já era.
Quero dizer a essas últimas pessoas, aquelas que não querem ser confundidas com alguma posição política que possa ser mal avaliada por alguns, que esse tempo já passou. Agora é tarde! Não há mais o que preservar. Os que têm motivos para estranhar que critiquemos o que está ocorrendo, estes sim, são um caso perdido. Não merecem ser nossos amigos ou parceiros.
E quero dizer ainda que o problema não está na avaliação dos outros sobre elas. O problema está nelas. Elas resistem a desconstruir suas personas (como querem que os outros as vejam) e, em alguns casos, as suas pessoalidades mesmo. Como vieram de emaranhados sintonizados com posições consideradas progressistas e de esquerda, imaginam que será o fim do mundo se forem confundidas com Bolsonaros e Caiados, Aécios e FHCs, conservadores, neoliberais ou coxinhas.
Ser confundido com a direita? Tudo menos isto! Ainda que “o outro lado” esteja cometendo barbaridades, não importa. Não podemos ser igualados aos que criticam os que lutam por ideais generosos. Foi assim quando se revelaram os crimes de Stalin. Toda uma geração de intelectuais – Sartre inclusive – primeiro fingiram que nada estava acontecendo e, depois, ficaram indignados com o que consideravam ser um ataque reacionário à revolução. Sartre chegou a declarar que os campos de concentração soviéticos não existiam. Por que? Ora, porque criticar o socialismo real era equivalente a se aliar ao imperialismo norte-americano, ao capitalismo internacional ou à barbárie. Hoje importantes intelectuais afirmam que Lula continua sendo um legítimo representante da classe trabalhadora, que nunca usou ternos de Ricardo Almeida e que não tem nada a ver com o triplex de Guarujá ou com o sítio de Atibaia (para não falar do seu papel de capo do esquema criminoso de poder que foi montado no Brasil). Tudo intriga da direita, das elites, dos coxinhas. O problema mesmo seria o Aécio cheirador de cocaína e traficante de drogas.
Meus amigos, aos quais dirijo este artigo, não chegam a este ponto. Mas preferem se iludir achando que vão conseguir atravessar este período fingindo-se de mortos. E é isso que não entendo. Ou não aceito.
O que não aceito é que o juízo da tribo prevaleça sobre qualquer coisa, inclusive sobre o óbvio, sobre o que está na cara. É assim que a antropologia abole a sociologia, desconstitui a política e relativiza a ética. Mas vou dizer uma coisa mais grave: tal rendição também nos desumaniza na medida em que implica uma brutal redução de nossos graus de liberdade.



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