Gente nas ruas pode influenciar o que se passa dentro da redoma parlamentar da Câmara dos Deputados? Se você entender um pouco de rede, verá que pode!
Começando do princípio. Só chegamos até aqui em razão do 17 a 20 de junho de 2013. E do 15 de março, do 12 de abril e do 16 de agosto de 2015. E, é claro, do 13 de março de 2016. O que aconteceu nessas datas? Multidões se constelaram sem comando centralizado. Foi a rede social. Não as mídias, como Facebook, Twitter, WhatsApp, mas a rede social mesmo, as pessoas interagindo (por qualquer mídia, inclusive por telefone e por conversas presenciais em todo lugar).
Swarmings sociais (enxameamentos de pessoas) como os de junho de 2013 e os de março de 2015 e 2016, alteram profundamente os fluxos interativos da convivência social. Seus efeitos políticos não têm propriamente a ver, como em geral se acredita, com suas pautas, com as palavras de ordem que são proferidas por seus participantes. Têm a ver com a desarrumação de caminhos no espaço-tempo dos fluxos.
Qualquer poder se mantém a partir de uma configuração de caminhos (conexões) na rede social, que induz os fluxos a passarem pelos mesmos caminhos e não por outros. Quando ocorre essa fenomenologia da interação chamada swarming (ou flocking, para usar um termo mais genérico), modificam-se os sulcos (creodos) cavados no campo social para fazer escorrer por eles as coisas que ainda virão. Com as conexões embaralhadas, altera-se a topologia da rede (ou seja, a configuração do campo social) e os caminhos de que o poder hierárquico se valia para se exercer (e, no limite, se manter) começam a não responder mais às determinações dos seus chefes.
Em termos práticos, qual é a consequência visível disso tudo? As pessoas – os emaranhados de relacionamentos – mudam de opinião sem necessidade de serem convertidas. Aumenta o número de atalhos “horizontais” entre clusters. As pessoas ficam mais desobedientes, ou seja, têm à sua disposição caminhos inéditos, passam a fazer outros percursos (que, antes, não julgavam que existissem). É por isso que mesmo as manifestações que não têm uma clara pauta política influem decisivamente na aprovação dos governantes (como ocorreu em 2013: as manifestações não foram explicitamente contra o governo e, no entanto, a popularidade da presidente da República despencou). Ou seja, não foi o conteúdo, não foi a proposta explícita de oposição que fez isso e sim a alteração da configuração do campo, a mudança da morfologia e da dinâmica da rede.
Por não entenderem as redes, por não perceberem as correntes subterrâneas que atravessam avassaladoramente o espaço-tempo dos fluxos quando eclodem fenômenos de alta interatividade (como os swarmings), as pessoas costumam não dar a devida importância às manifestações de rua que constelam multidões. Aznar não acreditou no 11 de março de 2004 e seu candidato Mariano foi derrotado horas depois. Mubarak não viu o perigo das pessoas enxameando, no início timidamente, na praça Tahir e caiu em 11 de fevereiro de 2011. O jiahadista Morsi, candidato da Irmandade Muçulmana, nunca imaginou que seu mandato obtido nas urnas seria revogado por 30 milhões de pessoas que enxamearam em todas as cidades do Egito no dia 30 de junho de 2013. Víktor Yanukóvytch desdenhou daquele bando de malucos acampados na Praça Maidan e teve que fugir da Ucrânia no início de 2015.
No Brasil, nem os atores políticos, nem os grupos que passaram a convocar manifestações a partir do final de 2014, entenderam ainda o poder das redes. Alguns imaginam que os protestos de rua são semelhantes às antigas manifestações participativas, organizadas centralizadamente, com carros de som e palavras de ordem previamente concebidas. Esses movimentos seriam, na sua compreensão, uma forma de pressionar as instituições, confrontando os atores estatais com a vontade da população. Sim, elas são isso também, mas não só, nem principalmente. O fundamental é que elas modificam, por assim dizer, o “astral” e ainda que os atores políticos delas não participem, eles passam a se comportar de modo diferente quando elas acontecem. Mesmo que queiram fazer as coisas de seu modo, a que já estão acostumados (por exemplo, cometendo ações contrárias à vontade popular na calada da noite), eles não conseguem mais. Por que? Porque os caminhos que podiam percorrer se embaralharam a tal ponto que seus ardis são neutralizados, não por este ou aquele ator específico e sim pela rede. A influência na rede vem de todo lado (basta que exista conexão). Então é a mulher, o filho, a nora, o cunhado, o amigo, a namorada, o médico, o farmacêutico, o padeiro, que acabam influenciando o ator político de um modo que ele não consegue enxergar e explicar. Assim se exerce o poder das redes, de modo difuso, distribuído, sistêmico.
Por isso é tão importante, em momentos em que as instituições estão diante de decisões graves, que polarizam a sociedade como um todo, que haja fermentação social, como agora, no caso da votação do impeachment de Dilma Rousseff. Não que os deputados que decidirão vão ser diretamente influenciados para mudar seu voto a partir do recado do que chamam de povo. Isso também ocorrerá, mas sua influência é de outra natureza, óbvia e muito menor do que a alteração dos fluxos interativos. Por isso, quem conhece, porque investiga, a nova ciência das redes, pode afirmar que o impeachment depende, fundamentalmente, de gente nas ruas. Gente nas ruas, na verdade, é uma expressão imprecisa. Não é bem nas ruas, mas em todo lugar: nas conversas em grupos nas mídias digitais, nas conversas por telefone, nos lares, nos locais de trabalho, estudo e lazer. Fermentação, sim, este conceito serve como uma metáfora mais reveladora do que realmente acontece nas profundidades do espaço-tempo dos fluxos, ainda que os protestos de rua sejam a parte mais visível, uma espécie de ponta do iceberg.



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