in

Uma pauta para a transição democrática

No dia 21 de setembro de 2014, cerca de um mês antes da última campanha eleitoral, publiquei no Facebook um texto chamado Antiprograma de Governo. O artigo foi escrito para a eventualidade de Dilma perder a eleição. Mas é incrível como permanecem atuais as propostas que foram feitas. Inclusive sobre a operação Lava Jato (ou o petrolão), que ainda não existia (não, pelo menos, com a dimensão que adquiriu). Vou reproduzi-lo abaixo com algumas atualizações [em vermelho itálico e entre colchetes]. Serve perfeitamente para governo de transição que se avizinha ou para quem lhe suceder. É uma espécie de pauta para a transição democrática.

 

ANTIPROGRAMA DE GOVERNO

“Não acredito muito em governos. Por isso tenho um antiprograma e não um programa. Meu antiprograma de governo é da planície e não do planalto. É muito curto, porque não quer engambelar as pessoas com promessas vãs e nem sufocá-las com superavits de ordem estatal, mas apenas protegê-las da sanha autocrática dos soberanos eleitos e ensejar que elas possam defender a democracia que têm para, a partir dela, inventarem as democracias que querem ter.

Meu programa tem apenas três pontos:

1 – Instalar uma operação Mãos Limpas no Brasil

2 – Iniciar um processo de redemocratização do país

3 – Dez propostas sobre o que não-fazer no governo

 

1 – INSTALAR UMA OPERAÇÃO MÃOS LIMPAS NO BRASIL

No Brasil da última década houve uma degeneração generalizada das instituições e uma perversão das práticas republicanas, seja pela corrupção, seja pela privatização partidária da esfera pública, seja pela alocação não-transparente de recursos de toda ordem para financiar ou apoiar projetos (antidemocráticos) de conquista de hegemonia sobre a sociedade a partir do Estado aparelhado. É claro que tudo isso não vai se resolver apenas com uma (eventual) troca de governo. Será necessário começar alguma coisa parecida com aquela operação Mani Pulite (Mãos Limpas), que ocorreu na Itália na década de 90.

Eis uma pauta (óbvia, conquanto incompleta) para começar:

I – Quem ocupou e ocupa cargos de primeiro, segundo e terceiro escalão no governo e no Estado, nas empresas estatais e nas instâncias para-estatais (lista completa dos últimos 11 anos: é a base para as investigações seguintes). [É necessário atualizar para 13 anos e 5 meses].

II – Quais as organizações da sociedade civil que foram objetos de convênios ou termos de parceria nos últimos 11 anos, qual o montante de recursos que foram transferidos a tais entidades e a que título. [Ao que saiba, isso ainda não foi feito, abarcando os últimos 13 anos e 5 meses].

III – Quais as empresas que foram contratadas na última década pelo governo e por empresas estatais (lista completa: apenas de empresas contratadas repetidamente ou de empresas diferentes com os mesmos donos ou acionistas majoritários e para valores acima de 1 milhão de reais). [Uma parte desse trabalho já foi feito pelas operações Lava Jato e Acrônimo, tendo vindo a tona dezenas de empresas associadas ao esquema criminoso de poder, sobretudo empreiteiras].

IV – Quais os veículos da chamada mídia alternativa que receberam recursos públicos por meio de publicidade, patrocínio ou por outros meios, de órgãos do governo, do Estado, de empresas estatais e de instâncias para-estatais e quanto cada um desses veículos recebeu na última década. [Um levantamento sobre a chamada “rede suja” começou a ser feito].

V – Quais as pessoas do governo e das empresas estatais cujos nomes foram envolvidos (ou vieram à tona) em escândalos de corrupção na última década, onde elas estão empregadas atualmente e como vivem. [As operações Lava Jato e outras já avançaram nessa investigação, mas falta muito ainda].

VI – Qual o patrimônio, declarado ou não, ou os bens em nome de terceiros porém usufruídos, das pessoas que ocuparam cargos de primeiro, segundo e terceiro escalão no governo, no Estado, nas empresas estatais e nas instâncias para-estatais, durante a última década. [Acrescente-se agora o patrimônio – declarado ou disfarçado (em nome de laranjas) – do chefe Lula e de sua família, bem como dos principais agentes do esquema petista].

VII – Quais as disparidades entre o patrimônio e o estilo de vida das pessoas referidas no item anterior antes e depois de assumirem os cargos mencionados. [Idem].

VIII – De onde vieram os recursos para pagar os advogados de defesa dos réus no processo do mensalão (e quais foram os honorários cobrados por tais advogados, por acusado). [Acrescente-se agora os réus do chamado petrolão].

IX – Quais os nomes das pessoas que usaram cartões corporativos da presidência da República e da presidência de empresas estatais nos últimos 11 anos, quem foram os beneficiários desses pagamentos e qual foi o montante gasto (por titular do cartão). [Atualizar para 13 anos e 5 meses: isso ainda precisa ser feito, abarcando os períodos dos governos Lula e Dilma].

X – Quem são – e onde estão – os doleiros que mantiveram relacionamentos com funcionários (de primeiro, segundo e terceiro escalão) do governo e de empresas estatais nos últimos 11 anos e quais foram as operações realizadas com a intermediação desses doleiros. [Muitos doleiros já foram descobertos pela operação Lava Jato, inclusive Alberto Youssef, que serviu como ponta do fio para desenrolar a meada. Seguir os doleiros é a chave].

 

2 – INICIAR UM PROCESSO DE REDEMOCRATIZAÇÃO DO PAÍS

Se o PT sair do governo federal é sinal de que a nossa democracia representativa conseguiu reativar (com atraso de um mandato, na verdade de dois) o importante critério da rotatividade ou alternância democrática. É claro que isso não basta. Será necessário realizar um processo de redemocratização do país. Sim, a redemocratização continua, é um processo contínuo. Na verdade nada mais é do que a continuidade do processo de democratização.

Mas falamos em redemocratização por que? Ora, porque houve uma ditadura (1964-1984) e os governos que vieram depois (Sarney, Collor, Itamar, Fernando Henrique, Lula e Dilma) às vezes deram seguimento a esse processo (de redemocratização) e, às vezes, retrogradaram (impulsionando iniciativas de autocratização). Em especial tivemos retrocessos importantes nos governos Lula e Dilma em relação aos governos eleitos anteriores, que precisam ser rapidamente corrigidos. Portanto, trata-se, sim, de redemocratização.

Essa redemocratização teria como pontos críticos:

I – Dissolver os quistos partidários instalados nas instituições do Estado. Instituições reais têm estruturas e dinâmicas próprias, que se materializam em regras, costumes e culturas organizacionais particulares. Tudo isso faz parte da sua natureza; ou seja, sem isso não temos, na verdade, instituições. Se convertemos as instituições em palcos de disputa maioria x minoria, degeneramos tais instituições transformando-as em extensões partidárias. Neste caso, das instituições (públicas) resta apenas a casca: seu funcionamento vira mera encenação de decisões que já foram tomadas em outro lugar (privado). [Esta será a primeira tarefa de um eventual (mas muito provável) governo Temer].

II – Desarticular as tentativas em curso de estabelecer controle partidário-governamental sobre os meios de comunicação (mesmo que disfarçados com o nome de social ou civil), rever o chamado Marco Civil da Internet e iniciar processos de democratização do acesso a tais meios. [Com a saída do PT do governo afasta-se, em parte, este perigo; mas a revisão do Marco Civil deve constar da pauta. Além disso, suspender imediatamente o financiamento público da chamada mídia alternativa – a rede suja de sites, blogs e outras publicações a serviço do PT – seja por meio de publicidade, patrocínio ou por outros meios, por parte de órgãos do governo, do Estado, de empresas estatais e de instâncias para-estatais].

III – Reestatizar as agências reguladoras que foram governamentalizadas para colocá-las à mercê do partido do governo e de seus aliados. [Importantíssima tarefa para o governo  de transição].

IV – Restabelecer a prestação pública de contas para as centrais e outros órgãos sindicais (em tudo que abranja recursos arrecadados compulsoriamente pelo poder público). [Idem].

V – Rever toda a coleção normativa que rege os Fundos de Pensão e o Fundo de Amparo ao Trabalhador de modo a coibir seu uso como aparelhos de organizações privadas para travar lutas em prol do controle do Estado. [Idem-idem, embora talvez não haja tempo hábil nos próximos dois anos para concluir essa mudança].

VI – Rever os critérios de financiamento, fomento, apoio ou patrocínio de órgãos estatais às organizações da sociedade civil. [Na undécima hora o governo Dilma editou o Decreto 8.726 de 27 de abril de 2016, que regulamenta a lei 13.019 de 31 de julho de 2014: tanto a lei quanto o decreto precisam ser revistos pelo próximo governo ou pelo que lhe suceder].

VII – Revogar o Decreto 8.243 (que institui a Política Nacional de Participação Social). [Este decreto “não pegou” em razão da resistência democrática da sociedade. Deve ser agora formalmente revogado].

VIII – Reformar o PNDH 3 – Programa Nacional de Direitos Humanos (no sentido de impedir que os direitos humanos possam ser usados como arma na luta político-ideológica de grupos privados que almejam conquistar hegemonia sobre a sociedade a partir da ocupação do aparelho de Estado). [Idem].

IX – Revogar o Decreto 5.298 (que institui uma Força Nacional de Segurança Pública, chamando-a eufemisticamente de “programa de cooperação federativa”, como organização militar centralizada e subordinada ao governo e não como órgão de Estado) e não permitir a articulação de guardas nacionais de caráter pretoriano (isso deve ser objeto de emenda constitucional). [Este é um desafio mais difícil de ser enfrentado, depois que a oposição dormiu no ponto e deixou que fosse aprovada tal medida – ainda de 2004 – proposta pelo Consiglieri Thomaz Bastos. Mas deve-se alterar a inserção institucional dessa força militarizada, tirando-a do âmbito do governo].

X – Retomar a tradição da política externa brasileira de não-alinhamento ideológico (sobretudo rever radicalmente a atual política de apoio à protoditaduras e ditaduras e repelir qualquer tentativa de formação de blocos político-ideológicos e militares que almejem reeditar a guerra fria). [Tarefa urgentíssima para quem for assumir o comando do Itamaraty no governo de transição. Esta é uma medida que não se pode deixar para depois: tem que ser enfrentada logo após a posse do novo governo].

É claro que esses dez pontos não fazem a democracia avançar (no sentido da democratização da democracia que temos em direção à democracia que queremos). Eles apenas corrigem o retrocesso, recuperam o que foi feito em termos de autocratização da democracia durante a “Era Lula”. [Compreende-se aqui os governos Dilma dentro da “Era Lula”].

 

3 – DEZ PROPOSTAS SOBRE O QUE NÃO-FAZER NO GOVERNO

I – Que o governo eleito não enfreie a democracia que temos: fundamentalmente, que não restrinja a liberdade, que não viole a publicidade (ou transparência), que não fraude a eletividade, que não falsifique a rotatividade (ou alternância), que não descumpra a legalidade e que não degenere a institucionalidade.

II – Que não queira controlar os meios de comunicação e a Internet (tentando disfarçar qualquer controle partidário-governamental ou estatal sobre essas atividades com os nomes de controle “social” ou “civil”).

III – Que não queira voltar no tempo instituindo formas de participação hegemonizadas por organizações hierárquicas e autocráticas travestidas de “movimentos sociais” (mas que funcionam como correias de transmissão de partidos).

IV – Que não queira degenerar a democracia em um regime plebiscitário de tipo chavista (bypassando as instituições para estabelecer uma ligação direta entre o líder – ou a líder – e as massas).

V – Que não pretenda reformar o sistema eleitoral para estabelecer a partidocracia (com voto em lista fechada e pré-ordenada, fidelidade partidária e financiamento exclusivamente estatal de campanha). [Acrescente-se aqui pelo menos dois pontos de uma reforma política necessária e urgente: o voto distrital e o parlamentarismo].

VI – Que não caia na tentação de, a qualquer pretexto, organizar guardas nacionais militarizadas de tipo pretoriano (ou forças nacionais de segurança permanentes subordinadas ao executivo).

VII – Que não dê continuidade a atual política externa ideológica de alinhamento e apoio a protoditaduras e ditaduras.

VIII – Que não participe de qualquer articulação regional (como o bolivarianismo latino-americano), hemisférica (Sul x Norte) ou mundial (sobretudo como a que a neoditadura russa de Putin está tentando capitanear), que pretenda reeditar a guerra fria e a velha política de blocos em nome de combater algum suposto império do mal, o capitalismo internacional, a globalização transnacional etc.

IX – Que não queira, a partir do Estado, educar a sociedade ou reformar a natureza humana para produzir qualquer monstruosidade como um “homem novo”.

X – Que, enfim, não queira conquistar hegemonia sobre a sociedade para conduzir as pessoas para algum lugar maravilhoso: que deixe a sociedade em paz, não coibindo as pessoas de experimentar novas formas mais interativas de democracia, tanto nas suas manifestações de protesto, quando se constelam pacificamente em multidões para mostrar que estão insatisfeitas com o sistema, quanto nos livres ensaios comunitários de vida e convivência social que já estão empreendendo inovadoramente em todo lugar”.

 

COMENTÁRIOS DE MAIO DE 2016

Bom, este foi o texto de setembro de 2014. Em grande parte ele continua atual. O mais interessante é que alguma medidas preconizadas já se concretizaram, mesmo sob o governo Dilma.

É claro que, àquela época, ainda não havíamos presenciado o surgimento de uma vigorosa oposição popular no Brasil (que só veio à luz realmente a partir de 15 de março de 2015). Mas a pauta proposta serve também como plataforma para esse novo tipo de oposição que emergiu da sociedade, que deve continuar exercendo a resistência democrática cotidiana (não apenas contra este ou aquele governo e sim também contra o velho sistema político que apodreceu) no sentido de dar prosseguimento ao processo de democratização que foi enfreado pelo lulopetismo, mas que não deslanchará por si mesmo, sem a voz das ruas, simplesmente pelo fato de o PT ter sido apeado do poder (via impeachment de Dilma). Um governo de transição não poderá levar a efeito uma pauta para a transição democrática como esta sem o decisivo apoio da sociedade.

Deixe uma resposta

Loading…

Deixe seu comentário

Análise política #004 (30/04/2016)

Pauta para a transição democrática