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O desalento dos progressistas regressivos

Meus heróis
Morreram de overdose
Meus inimigos
Estão no poder
Ideologia!
Eu quero uma pra viver
Ideologia!
Eu quero uma pra viver
Setores ditos progressistas estão achando um absurdo o que está acontecendo no Brasil neste momento. Grande parte da intelectualidade (sobretudo universitária e em especial das áreas de humanas), profissionais liberais, jornalistas, artistas – para não falar de militantes e simpatizantes partidários da esquerda, sindicalistas e assemelhados -, mas também ongueiros e ambientalistas, como aquela galera ligada a qualquer tipo de futurismo (e que continuou na vibe da nova era, mesmo quando ela não-era, ou não era mais tão nova assim), espiritualistas descolados e a turma que quer salvar o mundo ou que precisa desesperadamente de uma utopia – ou de ideologia – para viver e passou a se dedicar ao proselitismo de que “um outro mundo é possível” – todo esse pessoal, enfim, vive hoje um estranhamento. Há um desalento. Eles estão se sentido desconfortáveis com o que consideram o fim da esperança anunciada pela chegada de um operário ao poder em 2003. Encaram, assim, os eventos recentes, como um retrocesso e lamentam, como Cazuza lamentava, no fim dos anos 80 (e antes da queda do muro de Berlim):
 
Meu partido
É um coração partido
E as ilusões
Estão todas perdidas
Os meus sonhos
Foram todos vendidos
Tão barato que eu nem acredito
Ah! Eu nem acredito.
 
Não sem alguma razão, reconheçamos, os progressistas ficam incomodados quando veem um pensamento conservador avançar na sociedade e nas instituições de representação, no judiciário, na mídia tradicional e nas mídias sociais, nas ruas… Essa não! Vejam só, logo as ruas que eram o espaço de manifestação da nossa liberdade contra o sistema arcaico… E agora, para piorar tudo, também no governo? Não dá! É desesperador.
 
É inaceitável que voltem agora ao governo as mesmas velhas elites que dominam este país desde Cabral. Elites exploradoras, excludentes, preconceituosas, que desprezam os pobres e só pensam nos seus interesses egotistas.
 
Alguma coisa só pode estar muita errada para que tenhamos chegado a este ponto! E logo após mais de uma década de governo progressista, defensor do povo contra as elites, que resgatou milhões de brasileiros da miséria, permitiu que o pobre pudesse entrar na faculdade e viajar de avião.
 
E como se não bastasse, somos obrigados a assistir um troglodita como Bolsonaro contar hoje com a admiração de cerca de 8% das pessoas, praticamente a mesma quantidade dos progressistas. Ah! Isso é realmente inadmissível.
 
Particularmente sobre esse ponto, Eduardo Wolf, em excelente artigo na última edição da revista Veja (11/05/2016) – intitulado Quem criou Bolsonaro? – mostrou que o crescimento da admiração por figuras patéticas como a de Bolsonaro deve ser atribuído ao comportamento dos “acadêmicos, intelectuais e políticos que, durante todos esses anos, se acovardaram diante do lulopetismo, recusaram-se a enfrentar seus vícios mais terríveis e revestiram-no, muito frequentemente, de uma aura de dignidade social que nem os próprios petistas ousavam mais reivindicar”. Uma vez que as oposições formais renunciaram ao seu papel de fazer oposição ao PT e de criticar as suas tentativas regressivas de “controle da mídia, aparelhamento sistemático da máquina pública, doutrinação partidária no sistema de ensino”, tal tarefa “foi realizada, em parte, por setores da sociedade civil e, obviamente, por radicais histriônicos como Bolsonaro”. Wolf está coberto de razão. Na falta de progressistas progressivos para criticar os progressistas regressivos, sobressaíram-se os regressistas regressivos.
 
Isso merece uma explicação. Os progressistas regressivos – que agora estão revoltados e confusos com o que consideram um retrocesso – são aqueles que, para lembrar a música de Cazuza (1988), precisando de uma ideologia pra viver vão buscá-la em algum lugar do passado, antes da queda do muro de Berlim. Por isso são regressivos e não progressivos. Nas ideologias pré-queda do muro incluamos aquelas que inspiraram o renascimento do populismo ou o neopopulismo. Atenção para o verbete. Neopopulismo é uma forma de populismo da esquerda contemporânea que não assimilou a queda do muro de Berlim e adotou a via eleitoral. O projeto neopopulista usa a democracia contra a democracia. Seu objetivo é vencer eleições sucessivas para assumir governos por tempo suficiente para conquistar hegemonia sobre a sociedade a partir do Estado aparelhado pelo partido e, se possível, nunca mais sair dos governos. Ora, esta é uma via autocrática, quer dizer, antidemocrática, como mostram à farta as experiências do chamado bolivarianismo (ou “socialismo do século 21”), na Venezuela, na Bolívia, no Equador, na Nicarágua; e, até ontem, na Argentina kirscherista; e, até hoje (oxalá) no Brasil lulopetista.
 
Sempre foi muito fácil identificar um progressista regressivo. Bastava lhe fazer duas ou três perguntas, do tipo: você apoia Chávez (ou, depois, Maduro)? Você apoia Cuba? Então quer dizer que você apoia ditaduras desde que elas sejam “do bem” (isto é, contra os exploradores, contra as elites, contra o imperialismo norte-americano)?
 
Escaparam, ainda bem, os tais “setores da sociedade civil” – em número, aliás, muitas vezes maior do que os 8% de progressistas regressivos e do que a mesma quantidade de regressistas regressivos admiradores de soluções antidemocráticas.
 
Nem os progressistas regressivos, nem os regressistas regressivos, entenderam quase nada da tal sociedade civil. E por isso são, ambos, regressivos. Não estão pensando nos múltiplos mundos emergentes da interação social (quer dizer, tecidos pela fenomenologia da rede). Estão pensando em mundos únicos hierárquicos regidos por dinâmicas autocráticas. Os primeiros estão querendo usar o Estado (comandado, controlado e aparelhado por um partido portador da ideologia) para educar (quer dizer, disciplinar) a sociedade e produzir o “homem novo”. Os segundos estão pensando quase a mesma coisa: usar o Estado para colocar ordem na casa, preservar os valores e os símbolos pátrios, a família, a tradição, a propriedade. É claro que diferem entre si no conteúdo do que propõem (por exemplo, no tocante à conservação ou liberalização dos costumes). Mas do ponto de vista da democracia (que não é uma ideologia), eles se equivalem.
 
É claro que o termo progressista é péssimo. Evoca uma noção de progresso que é produtivista ou economicista e tem a ver com algum tipo de imanência histórica. Mas quem acredita nisso, merece.

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