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Uma força obsessora começou a ser exorcizada

Uma força obsessora do social – perigosa e muito agressiva – está sendo exorcizada neste momento pela democracia. Vamos aguardar o final. Aí vamos completar este artigo explicando a metáfora (que talvez seja um pouco mais do que uma metáfora). (Este parágrafo foi escrito ontem, 11 de maio de 2016).

ATUALIZAÇÃO DE 12 DE MAIO DE 2016

A presidente Dilma Rousseff foi afastada na madrugada de hoje. O afastamento temporário precisava apenas de 22 votos no Senado (considerado o quórum existente da sessão iniciada ontem). Teve 55 (mais do que os 2/3 exigidos para o afastamento definitivo em futura votação, considerado o quórum total). Ao que tudo indica, não volta mais.

Mas Dilma, na verdade, foi apenas um produto do marketing político petista. Ela foi uma peça na via quase-putiniana adotada por Lula (que quis dar uma de Putin, escolhendo o seu Dmitri Medvedev para continuar mandando, saindo aparentemente de cena quando fosse conveniente para voltar quando quisesse ou julgasse necessário). Não deu certo. O Brasil não é a Rússia, por certo, mas a explicação é muito mais complexa.

Para entender por que não deu certo, devemos entender primeiro o que aconteceu. Não propriamente no cenário político, mas no universo das conexões ocultas que “produzem” o que chamamos de social. Sim, é o social, estúpido! (é preciso clicar no link para compreender o que chamamos de ‘social’, que não significa coleção de pessoas, população ou, muito menos, assistência social, políticas públicas ou programas governamentais voltados aos mais pobres). O social não é o coletivo dos indivíduos, mas o que está entre eles quando viram pessoas.

Se considerarmos a data oficial de fundação do partido (10 de fevereiro de 1980), o projeto do PT vem durando 36 anos. Mas a sua operacionalização a partir do governo tem apenas 13 anos, 4 meses e 12 dias (Luiz Inácio Lula da Silva tomou posse como o 39º presidente brasileiro em 1 de janeiro de 2003). E o projeto ainda não acabou. Só começará a caminhar para o seu fim quando a chamada pauta das ruas – que emergiu em 15 de março, em 12 de abril e em 16 de agosto de 2015 e em 13 de março de 2016 – for concluída. Esta pauta, como se sabe, era composta por apenas três exigências: impeachment de Dilma, prisão de Lula e cassação do registro do PT.

O projeto do PT foi um projeto de prorrogar os anos 80 do século 20 (leia o artigo linkado), mas como a sociedade mudou radicalmente nas últimas três décadas e meia, a organização privada que comandava o partido – ou o Partido Interno (para lembrar o 1984 de George Orwell) – foi obrigada a fazer uma operação sobre a sociedade para conseguir se manter. Essa operação (uma obra de reengenharia social semelhante, mutatis mutandis, àquela pretendida por Filippo Tommaso Marinetti no fascismo nascente de Benito Mussolini), consistia em fazer alterações nos fluxos interativos da convivência social para preservar as condições ambientais que ensejaram a construção da via neopopulista no Brasil na década de 1980.

Para lembrar aquele alfaiate de Millôr, se a roupa não ficava boa, seria preciso fazer alterações no cliente (a sociedade). O organismo social que foi engendrado precisava do ambiente dos anos 80 para viver e se reproduzir. Mas o tempo continuou passando, entramos nos anos 90 e esse ambiente foi sendo reconfigurado com a emersão de uma sociedade-em-rede. O PT fingiu que não viu (que a década de 90 havia chegado) e, onde pôde, foi cortando aqui e ali pedaços do ‘social’ para fazer a roupa caber: desatalhando clusters, eliminando conexões, excluindo nodos, enfim, obstruindo fluxos. Foi para tanto que atuou como uma força obsessora, como que vampirizando as energias políticas das pessoas para se alimentar.

Tudo começou, como é sabido, nas universidades, em especial (mas não só) nas áreas de humanas das universidades federais e nas várias universidades fajutas criadas por Lula (algumas até em parceria com aparelhos semelhantes inspirados ou mesmo forjados pelo chavismo e pelos bolivarianistas). As universidades atuaram como viveiros de militantes ou verdadeiras madrassas porque era preciso – para o sucesso de um projeto de longo prazo como o do PT, surgido de uma espécie de fusão de neomaquiavelismo (jogar o jogo das velhas elites e aliar-se a elas taticamente, para substituí-las ou matá-las no final) com gramscismo (conquistar hegemonia sobre a sociedade a partir do Estado aparelhado pelo partido) – reproduzir os agentes capazes de deixar sua consciência ser colonizada pela visão da luta de classes. Sim, este é o kernel do programa – na verdade, um malware – que, uma vez carregado em uma pessoa, permite que ela adote o duplipensar. Sem o duplipensar, por exemplo, uma pessoa se dará conta da contradição que há em dizer que o Grande Irmão, o líder máximo do partido que é atacado por ter permitido que pobre viajasse de avião, só ande de jatinho particular (e não tenha a oportunidade de privar da companhia de um pobre em voo de carreira). Sem o duplipensar, para dar outro exemplo, é impossível que uma pessoa razoável não veja que há algo errado, profundamente errado, com o fato de um partido que veio para restabelecer a ética na política ter hoje boa parte da sua direção na cadeia. A luta de classes – quer dizer, a política como continuação da guerra por outros meios – permite isso: os que estão presos seriam apenas guerreiros do povo brasileiro que caíram nas garras das velhas elites. Na verdade, a metafísica de classes, espancando completamente qualquer juízo moral sobre a política (na medida em que existem duas morais: a “nossa” e a “deles”), enseja que a realidade seja substituída pela narrativa. Ora, isso equivale a uma operação de abolição da verdade. Tudo vira narrativa e, a partir daí, não existe mais verdade, mas somente a nossa verdade (aquela constante da nossa narrativa) e a verdade dos outros (que, para nós, passa então a ser mentira, calúnia, farsa ou golpe).

O programa reprodutor não foi inoculado somente nas universidades (e nos professores que vão infectar os seus alunos nas escolas do ensino fundamental e médio), mas também em todos os clusters sob influência do PT e dos partidos estatistas aliados: os falsos movimentos sociais (que funcionam como correias de transmissão do partido e que são financiados com dinheiro público, não raro, com dinheiro do crime), as ONGs (que passam a atuar como organizações neo-governamentais, servindo de caixa 2 para contratação de gente que vai servir ao governo, também sustentadas com verbas governamentais), o movimento sindical (centrais, sindicatos, associações profissionais e assemelhadas, que passam a ser pelegas e também são sustentadas com dinheiro público ou com recursos arrecadados compulsoriamente pelo Estado e que nem precisam desses recursos prestar contas), os setores artísticos e culturais (que passam a ser financiados com renúncia fiscal), a rede suja de veículos de comunicação dirigidos por militantes (financiados com patrocínio de estatais, com verbas de propaganda governamentais e também com dinheiro do crime, como o site Brasil 247 e vários outros, como o Opera Mundi, o Correio do Brasil, a Revista Fórum, a Carta Capital, o Pragmatismo Político, a Rede Brasil Atual, O Cafezinho, o Diário do Centro do Mundo, a Conversa Afiada, o Viomundo, o Brasil de Fato, o Plantão Brasil, o Tijolaço, a Mídia Ninja, o Jornal GGN, a Carta Maior, o Caros Amigos, o Outras Palavra), os escritórios de advocacia da linha do falecido Consiglieri Thomaz Bastos, os cargos de confiança na administração direta, nas estatais, nos governos estaduais e municipais conquistados eleitoralmente pelo PT e pelos demais partidos estatistas aliados. Nesses clusters pode ser encontrado o grosso dos agentes do populismo de esquerda, quer dizer, do projeto neopopulista que, na sua versão brasileira, pode ser chamado de lulopetismo.

Não é, convenhamos, um plantel pequeno de agentes. A atuação militante desse contingente (no espantoso número que foi conseguido após duas décadas de atuação do PT fora do governo e um pouco mais de uma década no governo) é suficiente para operar uma alteração na rede, perturbando o campo social de maneira a deixá-lo desprotegido diante do poder gravitacional do líder (que atua como führer) e da propaganda partidária (pela qual sua narrativa é disseminada para amplos setores, inclusive da mídia, que – emprenhada pelo ouvido – passa a replicá-la gratuitamente). O objetivo é simples: transformar tudo (sobretudo a política democrática) numa questão de lado (um lado contra o outro lado). Impedir que as pessoas possam desenvolver uma capacidade crítica para questionar (as incongruências, as contradições e até os crimes cometidos pelos governantes e pelos dirigentes partidários) pela assimilação do duplipensar. Se isso for conseguido, a partir de certo grau de hegemonização, será praticamente impossível remover o governo por vias eleitorais.

Funciona como uma obsessão, não propriamente sobre indivíduos, mas sobre a sociedade. Pois são as configurações do ambiente social que são alteradas quando se consegue estabelecer uma vibe de guerra civil fria, criando uma clivagem de cima a baixo na sociedade. A perturbação no campo social visa a impedir que uma pessoa divirja sem ficar mal com sua rodinha (seus emaranhados de relacionamentos, sejam familiares, religiosos, de amizade, de prática, de aprendizagem, de projeto, de trabalho ou de lazer). Há uma “pegajosidade antropológica” que desestimula alguém que pertença a algum meio que já foi “hegemonizado” (de um ponto de vista gramscista) a divergir, discordar e, muito menos, se insurgir contra a narrativa recorrente. Assim, uma cultura particular vai reproduzindo comportamentos conformes (esperados e validados por uma espécie de compliance) a partir das circularidades inerentes às conversações que acontecem em cada um desses meios sociais. A pessoa fica capturada, quer dizer, para todos os efeitos, vira paciente de uma obsessão. E é quase inútil tentar demovê-la das crenças que carregou no seu disco rígido a partir de discussões, debates e conversas racionais. Porque não é apenas um conteúdo que foi arquivado e sim um programa (uma maneira de ver e interpretar) executável que se poderia nomear como ‘esquerda_vs_direita.exe.

No Brasil de hoje a força obsessora que promoveu essa formidável violação do social começou a ser exorcizada pela democracia. O exorcismo, por certo, não se completou com o afastamento temporário de Dilma e nem vai se consumar com a sua saída definitiva nos próximos 180 dias. Os agentes do processo continuam atuando em todos os clusters sociais mencionados acima (sobretudo no movimento sindical, nos falsos movimentos sociais, nas ONGs e nos partidos estatistas) e permanecerão infiltrados (meio clandestinamente, mas ainda assim em grande número) nas instituições do Estado.

Isso quer dizer que a resistência democrática deve continuar. Em todo lugar. A começar das ruas (quer dizer, de uma sociedade que – na planície – alcançou altos graus de interatividade) – a quem se deve, aliás, creditar o início desse processo que estamos assistindo de verdadeiro exorcismo, pois se trata de expulsar de um corpo social, que não mais lhe pertence, uma força agressiva e muito perigosa para a democracia.

Mas, a despeito de seus esforços presentes e futuros, parece que não deu (e não dará) certo. O que não deu certo? Em uma frase: os agentes da guerra-fria, exilados nos anos 80 do século 20, não contaram com a nova sociedade do século 21.

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