Toda liberdade é liberdade de ser infiel. Sobretudo infiel à sua origem, cultural ou até biológica. Qualquer organização que exige fidelidade é autocrática
Tenho simpatia por algumas pessoas sufis (que poderia considerar minhas irmãs, se já não o fossem todas as pessoas), mas não pelas ordens (hierárquicas) sufis que querem ser reconhecidas por estarem vinculadas ao Islã (com toda essa exigência de terem documentada sua linhagem e da existência de uma cadeia de mestres que supostamente as conectaria com o profeta Maomé). Aliás, não tenho simpatia por Maomé (pelo que sei dele) e, sobretudo, pelo que a pessoa de Maomé se transformou ao longo dos séculos.
Posso dizer isso em alto e bom som porque não sou obrigado a concordar com o que disse qualquer ser humano – ou com o que disseram que ele disse ou com o que os sacerdotes interpretaram do que ele teria dito. Não existe ser humano superior ou inferior a mim. E, portanto, rejeito toda essa baboseira mistificadora de que não se pode criticar uma religião em respeito ao seu deus ou aos seus fieis. Deus é um assunto sobre o qual ninguém está autorizado a me ensinar nada (além dele, quando está entre nós e não sobre nós). Por isso não aprovo sacerdotes. E não gosto de fieis de coisa alguma, até porque não penso que humanos devam pertencer a rebanhos.
Outra coisa é a liberdade de crença, o que – isto sim – defendo. Mas defender a liberdade de crença do outro não significa ter que concordar com sua crença e, muito menos, se abster de criticá-la. Tudo pode ser criticado. Não acho que as pessoas que professam a religião islâmica sejam responsáveis pelo jihadismo ofensivo que é qualificado atualmente como terrorismo. Mas tenho certeza de que o islamismo – em quaisquer de suas vertentes, sunitas ou xiitas – é, sim, um fundamentalismo patriarcal e que ele fornece, ainda quando involuntariamente, o ambiente propício para a reprodução do jihadismo ofensivo. Penso que enquanto o islamismo não passar por uma reforma capaz de desconstituir esse conceito anti-humano de guerra santa (mesmo que – e talvez até principalmente – no sentido espiritual do termo, pois o problema é sempre a guerra) e os islamitas pacíficos não tomarem uma atitude de condenação radical de toda violência, a começar das mesquitas e madrassas, mas também no âmbito das famílias e das organizações sociais, os ambientes onde se professa o islamismo serão vulneráveis à proliferação de intérpretes da jihad ofensiva. E no seio de 1 bilhão e 500 milhões de islâmicos vamos sempre encontrar, como encontramos hoje, 200 a 300 milhões de jihadistas, ameaçando a paz e a democracia no plano global, nos obrigando a ceder partes de nossa liberdade em troca de segurança e espalhando inimizade no mundo.
Não é um problema imaginário. Conta-se, numa estimativa modesta, a existência de pelo menos 200 milhões de jihadistas (fundamentalistas islâmicos) no mundo atual. As organizações mais conhecidas são: Boko Haram (Nigéria), Al Shabab (Somália e redondezas), Lashkar-e-Taiba (Paquistão e Afeganistão), Al Qaeda (Oriente Médio, África, Ásia e alhures), Talibã (Afeganistão e Paquistão), Hezbollah (Líbano e Síria), Hamas (Irmandade Muçulmana na Palestina) e Estado Islâmico (Iraque, Síria etc.). Mas há também a Gama’at Islamiya (Egito), a Jamaat-e-Islami (Índia, Paquistão, Bangladesh, Sri Lanka, Caxemira), a Jemaah Islamiyah (Indonésia, Malásia, Filipinas, Cingapura, Brunei) e várias outras menores. E uma retaguarda de apoio e financiamento em muitos Estados do Oriente Médio e adjacências, destacando-se a Irmandade Muçulmana (no Egito), o wahhabismo (na Arábia Saudita) e a teocracia dos Aiatolás (no Irã). Esses clusters resilientes, altamente hierarquizados e autocratizados, estão em expansão no momento. Não há qualquer evidência de que vão desaparecer, pelo contrário: poderemos ter em poucas décadas o dobro dos combatentes atuais (ou talvez mais). O islamismo – que não é, em sua ampla maioria, nem terrorista, nem jihadista, mas é o terreno sobre o qual florescem essas seitas guerreiras – é a religião que mais cresce no mundo, contando hoje com 1/5 da população mundial.
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DITADURAS
Da lista atualizada de 60 ditaduras que remanescem no mundo, é fácil ver (em negrito) quantos países têm governos islâmicos ou pró-islâmicos (ou com maioria da população muçulmana). Mas é muito difícil apresentar exemplos de países com governo islâmico ou pró-islâmico que não sejam ditaduras.

01. Afeganistão
02. Angola
03. Arábia Saudita
04. Argélia
05. Azerbaidjão
06. Barein
07. Belarus
08. Brunei
09. Burkina Faso
10. Burma (Mianmar)
11. Camarões
12. Camboja
13. Cazaquistão
14. Chade
15. China
16. Comoros
17. Congo (Kinshasa | Brazzaville)
18. Coréia do Norte
19. Costa do Marfim
20. Cuba
21. Djibuti
22. Egito
23. Emirados Árabes Unidos
24. Eritreia
25. Etiópia
26. Fiji
27. Gabão
28. Gâmbia
29. Guine
30. Guiné Equatorial
31. Guiné-Bissau
32. Irã
33. Jordan
34. Kuwait
35. Laos
36. Líbia
37. Madagascar
38. Marrocos
39. Nigéria
40. Omã
41. Palestina (Faixa de Gaza sob controle do Hamas)
42. Qatar
43. República Centro Africana
44. República Democrática do Congo
45. Ruanda
46. Rússia
47. Síria
48. Somália
49. Suazilândia
50. Sudão
51. Sudão do Sul
52. Tajiquistão
53. Togo
54. Turcomenistão
55. Turquia
56. Uzbequistão
57. Venezuela
58. Vietnam
59. Yemen
60. Zimbábue
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TEM SEMPRE UMA MESQUITA E UMA MADRASSA
Os ataques diários – em plena segunda década do século 21 – do terrorismo muçulmano vão conseguir tornar o mundo insuportável: para nós (que somos, segundo eles, os infiéis) e para os próprios muçulmanos. É evidente que – como já foi dito – os seguidores do islamismo em geral não são responsáveis pelas ações dos assassinos que agem em nome de Alá. Mas a esta altura já é impossível deixar de ver que tem sempre uma mesquita e uma madrassa que fornecem – voluntária ou involuntariamente – algum tipo de apoio operacional e servem de lugar de encontro, de recrutamento ou de formação de novos combatentes.
Quem quiser procurar achará, sem grande dificuldade, um sacerdote e um professor envolvidos – seja por ação ou omissão – nas ações do jihadismo ofensivo, quando não abençoando ou explicando a matança em nome da guerra santa, mesmo que se declarem pacíficos e que digam que a verdadeira jihad pregada por Maomé é apenas espiritual. Pois aqui, já se disse, está o problema: toda hierarquia anti-humana é espiritual mesmo. Não querer ver – como fazem os propagandistas do termo-vacina “islamofobia” – que o islamismo é um fundamentalismo religioso (uma cultura patriarcal em estado quase puro) que dá base ao fundamentalismo político dos grupos estatistas, autocráticos e malignos que agora vão infernizando o mundo e violentando as sociedades, é um erro gravíssimo que poderá custar, mais cedo ou mais tarde, parte considerável da nossa liberdade (dos que vivemos em países democráticos).
A questão é que pode haver, sim, islamismo não-violento. Mas não pacífico. O conceito de jihad (mesmo tomado no sentido espiritual) impede isso. É claro que é preciso entender que guerra não é violência. Guerra é uma maneira de configurar o cosmos social para reproduzir um modo de vida patriarcal. Só existe guerra propriamente dita no patriarcado. A guerra é um engendramento social que visa construir inimigos como pretexto para erigir hierarquias regidas por modos autocráticos de regulação de conflitos. E a guerra está no DNA do islamismo. Por isso pode-se afirmar que ou o islamismo se reforma, ou o terrorismo islâmico não terá fim.
Sim, porque o islamismo não se tornou no fundamentalismo que é por qualquer tipo de desvio ou de re-infestação tradicional (como aconteceu com a comunidade de pessoas que se formou em torno de Jesus de Nazareh, dando origem depois ao cristianismo, que – como religião associada ao Estado (e até um pouco antes, com Inácio de Antioquia, o inventor da expressão Igreja Católica) – importou padrões míticos, sacerdotais, hierárquicos e autocráticos patriarcais que nada tinham a ver com as conversações recorrentes dos chamados primeiros discípulos). Não! O conceito de jihad (guerra santa) está no seu DNA porque o islamismo – como também outros monoteísmos patriarcais – é uma religião da guerra. Outras religiões ou sistemas espirituais (com exceção do budismo, do taoismo e do zen – que nem se pode chamar propriamente de religião) – também tinham no seu DNA (dadas as condições patriarcais em que surgiram) a guerra (a guerra cósmica, a guerra espiritual, a guerra do bem x mal), mas todas elas, de um modo ou de outro, passaram por reformas. O islamismo não. Nunca foi reformado e permaneceu conduzindo, até hoje, padrões patriarcais quase em estado puro.
A primeira pessoa a me chamar a atenção para isso foi Humberto Maturana (1993), no texto Conversações Matrísticas e Patriarcais, primeira parte do livro, escrito com Gerda Verden-Zoller (1993) intitulado Amar e Brincar: Fundamentos esquecidos do humano, traduzido e publicado no Brasil pela Palas Athena Editora (São Paulo: 2009). Escreveu Maturana:
Como nem todas as formas de patriarcado têm um núcleo cultural matrístico na infância, nem todas elas incluem um fundo de conversações matristicas que permitam um emocionar adulto, no qual as conversações democráticas podem ser vividas como algo que faz sentido como um modo naturalmente legítimo de coexistência. Tal acontece, por exemplo, nas formas patriarcais mais puras, como aquelas dos povos que vivem sob as diferentes ramificações da religião muçulmana. As pessoas que cresceram originalmente no seio das conversações patriarcais muçulmanas devem primeiro modificar algumas dimensões de seu espaço convencional e orientá-las de modo matrístico, para que as conversações democráticas façam sentido para elas como geradoras de um espaço de coexistência legítimo e desejável.
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A QUESTÃO DO ESTADO ISLÂMICO
O terrorismo do Estado Islâmico – que mais atemoriza o mundo na atualidade – aproveitou a tecnologia da Al Qaeda e está adotando uma estrutura distribuída. Com o desalojamento de suas bases territoriais no Iraque e na Síria, esses agentes do fim do mundo (como eles próprios se apresentam, os militantes jihadistas do Daesh) podem se espalhar pelo mundo (e isso sem qualquer vínculo formal com o tal autonomeado califa Abu Bakr al-Baghdadi e sua hierarquia de combatentes). Uma ideia maligna pairando sobre o mundo e sendo transmitida pela deepweb e pelas government-less internets não pode, a rigor, ser suprimida ou reprimida. O maior perigo para as liberdades não está, entretanto, nos ataques terroristas promovidos pelos loucos que aderem ao movimento e sim nas reações dos Estados e nos procedimentos de segurança que seremos obrigados a adotar para evitar atentados que, em sua imensa maioria, provavelmente nunca se realizariam. A paranoia da guerra fria, defesa-defesa-defesa, agora convertida em segurança-segurança-segurança, vai acabar enfreando a democracia, muito mais do que as consequências efetivas de alguns assassinatos e explosões de prédios cometidos por esses malfeitores. Este, aliás, é o seu objetivo: os atos terroristas são, antes de qualquer coisa, ações de propaganda para infundir o medo, não ameaças reais de tomada do poder (a menos em regiões já conflagradas belicamente, como o Iraque e a Síria e, talvez, a Líbia). É assim que eles esperam vencer por dentro. Obrigando as sociedades livres a se tornarem menos livres.
Não adianta também matar esses militantes (o que só deve ser feito diante da ameaça concreta e iminente de um atentado à vida de pessoas). Eles esperam a morte mesmo (que faz parte da teologia de seu projeto teocrático). Fora das zonas de guerra, o combate ao terrorismo deve ser policial, não militar (pois o que eles querem é exatamente isto: levar a guerra ao mundo todo, ou pior, colocar o mundo todo em estado de guerra). Trata-se, para eles, de uma localização do global que não tenha possibilidade de se encontrar com a globalização do local, impedindo ou dificultando ao máximo – pela generalização do estado de guerra – a conexão local-global. É o projeto de um mundo pulverizado com caciquias isoladas entre si e só acessadas a partir do alto (uma espécie de Arábia Saudita global e não é a toa que a base – a Al Qaeda – do terrorismo sunita mais virulento se configurou lá).
É claro que as causas que fazem uma pessoa qualquer a aderir ao projeto apocalíptico do ISIS devem ser combatidas. Mas elas não poderão ser removidas por programas assistenciais supostamente voltados à inclusão social ou por aconselhamento psicológico ou pelo soerguimento da família, pelo pleno emprego e a distribuição da renda. Não têm a ver com a pobreza ou com a fome (basta constatar o número crescente de seus adeptos em países de primeiro mundo, como a França ou a Bélgica – e não apenas entre os imigrantes que se sentem excluídos nesses países). Têm a ver com exclusão, por certo, porém mais com a reação de inconformidade, de ressentimento, de desejo de vingança contra um sistema que é visto com estranhamento e que, por sua vez, não consegue mais se manter evitando malfunctions na base do comando-e-controle. São subprodutos do patriarcado porque a origem do estranhamento é a resiliência de padrões patriarcais em um mundo que está deixando rapidamente de ser patriarcal.
Em certo sentido é a emergência de uma sociedade-em-rede que está açulando as reações violentas dos terroristas islâmicos, que são apenas combatentes patriarcais vivendo em outras regiões do tempo. Sim, é como se eles tivessem entrado num túnel do tempo, tendo ido parar do século 7 diretamente no século 21.
Para entender isso é necessário entender o que é um padrão. Padrões se replicam em outras regiões do tempo. Diz-se que um padrão é a maneira pela qual uma informação entra no cérebro. Mas é bem mais do que isso. É uma invariância numa configuração de rede, que permanece “viva” a despeito do fluxo. Como se sabe a mente não é o cérebro, mas uma nuvem social (de computação, lato sensu). O cérebro é algo assim como uma interface. É por isso que padrões de interpretação-interação arcaicos – como o Olho de Hórus, por exemplo – podem perdurar por milênios… E é por isso que não devemos estranhar que entidades conformadas em situações remotas, de repente – quando configurações semelhantes se constelam – possam ser novamente evocadas e reemergir. O regime político que Erdogan está autocratizando neste momento na Turquia pode, sim, evocar o monstro otomanista. Como a sombra de Dario (a entidade anti-humana Dārayavahush que se formou entre 550 e 486 a.C., no Império Aquemênida) perdurou em Os Persas de Ésquilo e muito além (assombrando até hoje a democracia). Do mesmo modo, as formulações de Maomé e de seus intérpretes, recuperadas por uma leitura literal do Estado Islâmico, podem se transformar, hoje, numa das principais ameaças à liberdade em mundos que não têm mais nada a ver com as condições que estavam presentes na sua formulação original. Como as ferramentas usuais da análise política acadêmica são impotentes para revelar essas coisas, é fundamental trabalhar com reconhecimento de padrões autocráticos.
Diante do que está acontecendo as pessoas livres do mundo não-islâmico devem instar os seguidores islâmicos não-violentos, com os quais ainda se possa conversar, para que abandonem o fundamento da guerra santa, em quaisquer de suas interpretações (as malignas, como a do jihadismo ofensivo e também as ditas benignas, como a do jihadismo espiritual). Guerras promovidas contra eles por Estados não adiantarão, pelo contrário. É uma ação que só pode ser levada a cabo pelas sociedades (quer dizer, pela rede social: onde houver atalho entre clusters islâmicos autocráticos e não islâmicos democráticos, deve-se aproveitar a conexão para insistir nesse ponto, até que as próprias sociedades islâmicas consigam dar origem, endogenamente, a novos padrões e novos fluxos interativos da convivência social possam fluir).
Enquanto as mesquitas e as madrassas, espalhadas pelo mundo todo, não sofrerem essa pressão continuada do seu entorno social, a ponto dos seguidores do islamismo se sentirem tão desconfortáveis que comecem, eles próprios, a questionar seus sacerdotes e professores, nada feito. Ou eles reformam sua matriz patriarcal, ou o terrorismo não só não terminará, como aumentará.
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EU SOU INFIEL
Para tanto, porém, as pessoas não islâmicas devem mostrar, por palavras e atos, que não há nada de errado em ser infiel (kafir) e que esse conceito não faz o menor sentido (e tenham mesmo coragem de declarar: Eu Sou Infiel) posto que todos nós – islâmicos e não-islâmicos – somos uma grande família (e já que eles valorizam tanto a ideia de filiação biológica, pode-se dizer que está provado pela genética que quase todos nós, os terráqueos, somos primos até o grau 50).