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Por que ando escrevendo sobre o passado

Por que ando escrevendo sobre conservadores e liberais e liberais-conservadores? Certamente não é porque, nesta altura da vida, descobri uma súbita vocação arqueológica. Para além do interesse teórico que ainda poderia ter por essas correntes de opinião dos séculos passados, há uma questão política envolvida, que considero muito relevante para a democracia.

Ocorre que, com a derrocada do PT, também começaram a perder terreno suas explicações sobre o mundo social, ensejando que o espectro ideológico ficasse mais complexo. Antes havia uma predominância quase total – nos meios intelectuais, artísticos e organizacionais da sociedade civil – do pensamento dito de esquerda, progressista, politicamente correto, socialista e de base marxista. Não é que não houvesse quem discordasse das narrativas hegemônicas dos petistas e de seus aliados estatistas nesses ambientes. Havia, sim. Mas não havia propriamente uma militância disposta a defender suas ideias heterodoxas (na verdade, mais ortodoxas do que as ideias dominantes) publicamente: basta dizer que quase ninguém tinha coragem de se declarar neoliberal, conservador ou de direita.

Mas no bojo da movimentação pelo impeachment de Dilma, que introduziu na política enormes contingentes de pessoas que não davam a mínima para o assunto, também foram ressuscitadas algumas correntes de pensamento que muito pouca influência tinham na sociedade brasileira contemporânea, pelo menos entre os considerados bem-pensantes, os moderninhos ou descolados da hora. Essas correntes existiam em clubes privados, clusters fechados e com poucos atalhos e eram até ridicularizadas pelo entorno da turma do bem: os defensores dos pobres, dos explorados e oprimidos pelo sistema (considerado como sistema capitalista).

Todavia, quando começou a transparecer que o discurso igualitarista era, em muitos casos, uma roupagem para esconder praticas corruptas e criminosas e que “guerreiros do povo brasileiro”, como Dirceu, Lula, Delúbio, Vaccari e centenas de outros, eram apenas bandidos, as minorias ideológicas que ousavam discordar do discurso dominante tomaram coragem para aparecer à luz do dia. Deu-se então uma coisa que nunca aconteceu no Brasil recente: algumas pessoas – e não tão poucas assim – começaram a se declarar de direita, anticomunistas, conservadores ou liberais. Até aí tudo bem, poder-se-ia dizer: uma sociedade democrática deve ser plural mesmo e todas as concepções merecem conviver ou, ao menos, coexistir.

Ocorre que não está tudo tão bem assim. Porque os que precisam de mega-narrativas totalizantes (que pretendam explicar o mundo todo social e mais um pouco) para justificar a sua posição e a sua ação políticas, diante da defensiva dos arautos do pensamento de esquerda, em vez de se esforçarem para formular novos argumentos teóricos para sustentar seus pontos de vista, foram buscar no século passado velhas ideologias para anunciar. E o pior é que, ao fazer isso, recuperando do arquivo-morto antigas polêmicas de meados do século 20, assumiram também, por enantiodromia, comportamentos de seita muito semelhantes aos dos estatistas de esquerda que criticavam.

Assim, por incrível que pareça, encontramos hoje – saída não se sabe bem de onde – uma legião de seguidores de von Mises, Hayek, Rothbard, Hoppe e outros congêneres defensores do individualismo (dito, em algumas vertentes, “metodológico”), esgrimindo com seus adversários pela prevalência de suas narrativas. Jovens que se dizem libertários, andando prá cima e prá baixo com o Atlas Shrugged de Ayn Rand debaixo do braço. E encontramos também uma turma que se declara conservadora, defendendo os valores da civilização ocidental cristã, a tradição, a família, a propriedade, as mudanças graduais que preservem nosso patrimônio moral em contraposição às propostas revolucionárias, elogiando os whigs e citando Edmund Burke, Michael Oakeshott, Roger Scruton e Russel Kirk.

À primeira vista, tudo parece correto. Seria, como dissemos acima, uma democratização do espaço público das ideias que, finalmente, livra-se da asfixia da doutrinação marxista, marxista-leninista, marxista-gramscista, marxista-foucaultiana, para contemplar o pluralismo. Mas não! Em plena segunda década do século 21, no dealbar de uma sociedade-em-rede que está (ainda bem) fragmentando as grandes narrativas, destronando os grandes pensadores e tirando a razão para a constituição de séquitos em torno de luminares, nos transformando, todos, felizmente, em pequenos pensadores, há alguma coisa errada em querer ressuscitar o velho padrão das escolas de pensamento e reeditar as controvérsias ideológicas em que se consumiam.

Mas o grande – e preocupante – problema que essa nova configuração coloca é que tanto os estatistas de extração marxista (em quaisquer de suas vertentes), quanto os que agora se lhe opõem abertamente com ideias antigas (liberais-econômicas, conservadoras e liberais-conservadoras) apoiam-se em correntes de pensamento que não se dão muito bem com a democracia ou que reduzem a democracia a uma mera forma política de administração do Estado-nação, encarando como um disparate as tentativas de democratizar as famílias, as escolas e as universidades, as igrejas, as corporações e os partidos, as organizações sociais, empresariais e estatais.

Ora, todos os estatismos (sejam considerados de esquerda ou de direita) são antidemocráticos. E todos os liberalismos-econômicos (que não compreendem o liberalismo-político, à la Spinoza, que nunca chegou a ser uma doutrina, com um credo codificado, e com a possível exceção daquele libertarianismo, stricto sensu, dos anarquistas originários, não colonizados pelo marxismo, dos quais dificilmente se encontram ainda exemplares) reduzem na prática a democracia à esfera do Estado, descartando ou não apostando na continuidade do processo de democratização da sociedade. E não raro a combinação de um pensamento conservador com um pensamento liberal-econômico, diminui a importância do Estado democrático face ao Estado de direito, gerando uma ideologia legalista que prega (ou insinua) que basta obedecer as leis que tudo irá bem.

Ou seja, nada de inovação. Nem de inovação política, nem de inovação social. E uma nova geração de democratas criativos (para lembrar o título de um discurso visionário de John Dewey em 1939: Democracia criativa: a tarefa diante de nós), que deveria estar florescendo neste terceiro milênio, corre o risco de ficar imprensada na luta política e ideológica encardida entre correntes de pensamento emboloradas que não têm muita intimidade e apreço pela democracia e que se comportam mais ou menos da mesma maneira: exigindo alinhamento de posições em vez de liberação para o trânsito do pensamento, buscando consensos em vez de ecologias de diferenças coligadas e guerreando, guerreando sem parar entre si.

Essa é a razão de eu estar escrevendo tanto sobre o assunto. Ando escrevendo sobre o passado, porque o passado anda, nos tempos que correm, com o péssimo costume de nos visitar.

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